sábado, 10 de agosto de 2024

ai, minha fama de maldito. PARTE VII. a instalação da sonda

esteva dormindo na sarjeta. usei muitas drogas e caí. eu mesmo não sabia se estava consciente ou não. o certo é que delirava. ouvia vozes de pessoas que não existiam, via paisagens imaginárias, sentia dedos me fazendo cócegas e pássaros roçando em minha pele. se como sujeito, eu não era para a realidade, eu não era para essa existência que as críticas de emanuel kant desejavam provar, era no entanto ainda seu objeto. para mim a realidade não existia, mas eu seguia existindo na realidade. as pessoas que passavam pela calçada viam meu corpo atirado na calçada, a perna cabeluda toda suja da água preta que fica rente ao meio fio, às vezes se mexendo, como uma barata que acabou de ser morta por um chinelo. se eu não entendia com clareza o que se passava ao meu redor, e para todos efeitos dos sentidos, o mundo que vivia era o de minha pura imaginação, que todos os dados do mundo processavam das formas mais fantasiosas possíveis, para o mundo externo, contudo, o que eu fazia se percebia com clareza, muito embora as palavras que eu falasse não fizessem nenhum entendimento. 

as pessoas pensavam muitas coisas, a maioria delas se assustaria ou teria pena ou raiva de um drogado, mas dois homens foram na minha direção. eram negros e fortes, e me levantaram, cada um por um braço, e me carregaram para algum lugar. não sei porque passei a cooperar com eles, depois que entendi que minhas pernas podiam andar. acreditava que eram enfermeiros de um asilo mental, que depois das ameaças de minha psiquiatra, eu enfim havia sido internado. senti muito alívio, saber que não precisava fazer mais nada, que meu destino enfim havia sido selado. ficaria internado, tomaria remédios, ficaria sóbrio. essa era a salvação que eu precisava: o poder médico legal para me manter preso em um quarto. abençoei esses dois anjos que me levavam, e disse obrigado. eles disseram que não era nada, que somente realizavam a missão que jesus, nosso senhor, deu para eles. 

- pois veja, filho, me disse um deles, poderia ser uma pessoa ruim a passar por você, e cometer alguma maldade com um rapaz assim desorientado.

- sim, disse, eu dei muita sorte.

- deus está te dando uma chance.

- vocês são de que igreja?

- somos dois apóstolos do reino dos céus. 

- obrigado, de verdade. 

- agradeça a jesus, meu filho.

- amém. 

me levaram até uma igreja que parecia um consultório de dentista. a sala estava iluminada por velas. distinguia a silhueta de algumas pessoas. homens vestidos com roupas sociais e mulheres de vestido. me levaram para o altar e fizeram uma oração para mim. 

acordei já de manhã, com o barulho que fazia um homem ao abrir a porta metálica de sua loja. ele olhou para mim, com raiva, e entrou. percebi que estava somente de cueca e que todos meus pertences haviam sumido. em casa, ao me ver no espelho, vi que havia uma cicatriz no meu ventre: haviam me aberto.


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