terça-feira, 6 de agosto de 2024

ai, minha fama de maldito. PARTE VI. o encontro.

 o chefe estava furioso. descia as escadas com os olhos vermelhos de raiva. chegou até a mesa de fernando, o escrivão, e berrou na sua cara:

- homem, por que ainda não me entregou o relatório?

- mas chefe, ainda tenho duas horas para...

- não importa! quero agora na minha mesa!, e saiu assim, puto da vida. fernando, irritado, queixou-se a praxerdes: 

- esse filho da puta é um merda, um merda. acabou de chegar na empresa e acha que pode falar assim com os outros. 

- sim, homem, disse praxerdes sem virar o rosto de suas planilhas.

o que está fazendo, praxerdes?

fernando foi espiar as planilhas de praxerdes e viu que ele estava falando com uma mulher casada de mais de sessenta anos. 

- ainda está falando com aquela senhora janice?

ele abriu rápido suas planilhas e disse, sem olhar par fernando:

- eu estou sim. 

- achei que ela tinha te dado um fora. 

- fizemos as pazes. 

- entendi. 

no seu íntimo, condenou as escolhas de praxerdes. praxerdes, seu idiota. não vê que essa mulher só atrasa sua vida? está gastando seu tempo para agradar uma viúva excêntrica? que banca sua vida de pratos caros, leva-o à tira colo para museus da frança e fez-lhe conhecer toda a grande sociedade? se ao menos fosse bonita..., mas não, a velha estava acabada. e havia ainda seus filhos, da mesma idade de praxerdes. ah, pobre praxerdes, precisando conviver com a inimizada da família dela. sendo hostilizado por trabalhar em um simples escritório. como se submete a tudo isso, por tão pouco? 

fernando homem era um escriturário de ares inquisitivo. em sua opinião meticulosa, condenava as pessoas ao seu redor a uma existência de miséria. diagnosticava os fracassos de cada um com a propriedade de quem conhece todos os pormenores e fatos. no entanto, geralmente, se antecipava na conclusão. assim, desde o início partindo da premissa equivocada, construía argumentos complexos que provavam a veracidade de seu equivoco. a evidência produzida por fernando era formidável, e capaz de enganar, ao menos, ele próprio, a acreditar que sua premissa primeira era verdadeira. 

na semana seguinte, fernando publicou seu primeiro livro, chamado filosofia primeira, em que provava, logicamente, como toda visão de mundo estava fundada em alguma coisa: logo, concluía, toda mentira é de alguma forma verdadeira, e somente aguardava que lhe desvendassem a verdade. 

ninguém de seu trabalho foi prestigiar o lançamento, porque ninguém sabia que fernando escrevia livros de filosofia. na verdade, a edição foi custeada pelo próprio, e na festa de lançamento oferecida pelos editores foram alguns colegas do tempo da faculdade de filosofia, sua mãe, dona eunice, e david, seu amigo de infância.

quando todos foram embora, ficaram só david e sua mãe com ele, tomando cerveja e discutindo o lançamento em um botequim à luz do luar.

- achei aquela menina uma abusada, disse david.

- que menina?, quis saber fernando.

- aquela de decote.

- a pamela? 

fernando não podia acreditar, já que pamala era como uma heroína de romance antigo. apesar de seus defeitos, era virtuosa. 

- o que ela fez?, quis saber a mãe, a senhora eunice. tinha cabelos brancos e usava óculos fundo de garrafa. enquanto os demais sentavam em cadeiras de metal, ela repousava, sob mantas, em sua cadeira motorizada. 

- ela me perguntou o seguinte...

David olha para Fernando e para a senhora Eunice. Em seu rosto, uma expressão de perturbação. Depois de alguma hesitação, disse:

- Ela me perguntou: "Você tem medo do castelo?"

A voz de David saiu trêmula. Fernando franziu a testa, confuso.

- Medo do castelo? Que castelo?, quis saber. 

Sua mãe iria responder, mas foi interrompida pelo barulho de uma máquina de escrever, misturando-se com os sussurros quase inaudíveis de uma voz feminina. Atrás deles, haviam se sentado uma mulher e um homem barbudo. Senhora Eunice reparou no tipo desagradável do advogado, que fumava maconha, e embora irritada, se controlou. Ajustou os óculos para disfarçar e olhou para seu filho com uma expressão séria.

- Castelos não deveriam causar medo, Fernando, mas fascinação. Você não lembra de quando fomos para Disneylândia? Você deixou sua foto com o Pateta no seu porta-retratos até depois de grande. 

Depos olhou para David e tentou defender Pamela: 

- Talvez ela esteja falando sobre algo mais profundo, algo dentro de você.

David olha em volta, como se esperando que algo ou alguém apareça. As luzes piscam brevemente e, perto de um poste sem luz, uma figura indistinta surge, observando-os silenciosamente. Ela se aproxima: é Pamela, de vestido longo e vitoriano, contrastando com o ambiente suburbano. Sua presença é ao mesmo tempo reconfortante e perturbadora.

- Acho que David não entendeu o que eu quis dizer, não é? , diz Pamela, amigável.  David exibe uma expressão de irritação e medo. E com a graça de uma deusa renascida das cinzas do tempo, sentou-se à mesa, com seus movimentos lembrando os passos de uma dança antiga.

Ao avistar a mulher da outra mesa, Pamela exclamou:

- Morgana! Não esperava te ver aqui, após tantos anos.

Os olhos de Morgana brilharam com o reconhecimento. Pamela, envolta em memórias, começou a contar uma história antiga:

- Lembra-se daquela viagem, quando éramos adolescentes, puras e ingênuas, estudantes daquela rígida escola católica? Durante as férias, nosso ônibus quebrou no meio da floresta amazônica. Perdidas e desesperadas, avistamos uma cabana, o único sinal de vida na vastidão verde.

Os olhos dos presentes se arregalaram, atraídos pelo relato como por uma tapeçaria rica em detalhes. Pamela prosseguiu:

- Naquela cabana, encontramos um velho decrépito, um filósofo existencialista chamado Azevedo Diniz. Ele era uma figura sombria, à beira da morte. Deitado imóvel em seu catre, nos observava com seu olhar especulativo. Era aleijado desde um acidente com um cavalo. Uma sobrinha bondosa, Clarissa Plínio, lhe dava banho e comida. Suas opiniões eram controversas: ele defendia o suicídio como um direito e acreditava na legitimidade filosófica da violência e da escravidão. O velho, com voz fraca mas penetrante, contou-nos que, após seu acidente de cavalo, adquirira o dom da memória absoluta. Podia lembrar-se de cada detalhe de sua vida, desde o menor suspiro até o mais insignificante olhar. Sem conseguir dormir, devido ao esforço constante dos nervos, enquanto contava carneirinhos, depois do número setecentos e cinquenta e oito, se entediou e começou a montar um sistema numérico particular, em que cada numeral, correspondia ao nome de um animal. Com o tempo, os animais lhe pareceram muito simples, e para cada número, passou a compor um verso dedicado a uma espécie distinta. Estava já no número dois mil e trinta e cinco quando, antes das onze horas da noite, novamente se entediou, e desde então estava começando a se dedicar à composição de aforismos filosóficos, e que, segundo constava sua memória, já estava no número mil e um quando batemos em sua porta. Ficamos todas encantadas por essas palavras. Ouviríamos sua prosa para sempre, se Clarissa não entrasse com o telefone e o interrompesse, dizendo que a linha estava sem funcionar. Sem comunicação, fomos forçadas a passar a noite na propriedade do filósofo. A cabana era pequena, mas repleta de caixas de papelão fechadas com fita adesiva. E quando o velho finalmente dormiu, dois dias depois, você abriu uma delas. Lembro que dentro estava, junto de algumas revistas esotéricas, sobre drogas, espiritualidade e magia, um frasco de fio dental e romances do século XIX, uma pequena estatueta de um jaguar, esculpida em madeira negra e com olhos de pedra de jade.

Nesse momento, Mandrake, com sorriso fácil e olhos calculistas, se aproximou. Se apresentou a Pamela como advogado, inclinando-se em uma reverência  teatral.

— Que história fascinante, minha querida Pamela. Permitam-me juntar-me a vocês, disse ele, puxando uma cadeira sem esperar resposta. Morgana, sem ser convidada, também se juntou a eles. 

Conforme a noite avançava, os copos enchiam e esvaziavam rapidamente. O álcool soltava línguas e inibia reservas. Mandrake passou a lançar olhares insinuantes para Pamela, sua voz carregada de charme calculado.

— Você tem um ar de mistério que me intriga, Pamela. Contar-me-ia mais sobre suas aventuras? — disse, com a mão ligeiramente tocando a dela sobre a mesa.

Pamela sorriu com um misto de diversão e desdém. Mandrake, conforme a noite se aprofundava, ele se tornava mais ousado. Tentou beijá-la, inclinando-se para ela com uma confiança arrogante. Pamela, recusou, afastando-se delicadamente.

— Não esta noite, Mandrake, disse ela, seus olhos brilhando com uma combinação de diversão e aviso. Morgana, que até então havia escutado em silêncio, de repente soltou uma risada sarcástica.

— Sempre a mesma história, não é, Pamela? Fazendo-se de misteriosa e especial — disse Morgana, seu tom carregado de irritação. — Talvez você devesse contar a eles como realmente foi.

Pamela a encarou, surpresa com a agressividade.

— E o que exatamente você acha que eu deveria contar, Morgana?, respondeu Pâmela, sua voz agora fria.

— Como você sempre gosta de ser o centro das atenções, inventando histórias — retrucou Morgana. — Talvez você devesse contar a verdade sobre o que aconteceu naquela noite na cabana.

— Você está bêbada, Morgana — disse Pamela, tentando manter a calma. — Não sabe do que está falando.

— Estou falando que você sempre foi uma mentirosa! — gritou Morgana. — E uma puta também!

A tensão na mesa aumentou, e os olhares se voltaram para Mandrake, que assistia à cena com um sorriso divertido, apreciando o drama que se desenrolava.

— Chega, Morgana — disse Pamela, levantando-se. — Se você não pode se comportar, é melhor ir embora.

Morgana se levantou também, tropeçando ligeiramente nos próprios pés.

— Não vou a lugar nenhum. E você, sua vadia, devia aprender a ser honesta.

Pamela respirou fundo, tentando controlar a raiva.

— Foi por insistência de Leila que abrimos as caixas — disse Pamela. Ela sempre teve essa curiosidade insaciável, um desejo de desvendar segredos. E naquela noite, na cabana do velho filósofo, ela nos convenceu de que não havia nada a temer.

Enquanto o álcool continuava a fluir e as conversas ao redor da mesa se desenrolavam, a noite se desdobrava em um emaranhado de desentendimentos e confissões. A questão do castelo, que havia surgido antes como uma referência velada, agora voltava à tona de maneira mais direta.

— Pamela — começou David, sua voz carregada de frustração. — Você falou sobre aquela cabana e o que encontramos lá. Mas e quanto ao castelo? O que você realmente acha disso?

Pamela, que estava tentando se recompor depois do altercado com Morgana, olhou para David com uma mistura de cansaço e desafio.

— O castelo? — repetiu Pamela, ajustando-se na cadeira. — O que você quer saber sobre o castelo?

David parecia estar se preparando para um confronto.

— Não é o castelo em si que me intriga, mas o que ele representa. É a ideia de um poder que está sempre fora de alcance, um controle invisível que influencia nossas vidas sem que possamos realmente vê-lo.

Fernando, observando a cena, percebeu que a conversa estava voltando a temas que lhe eram inconvenientes.  Fez um gesto de irritação, seus olhos brilhando com uma centelha de descontentamento.

— Você realmente acha que está tudo bem, Pamela? Não estamos falando de um castelo metafórico, estamos lidando com uma realidade material objetiva. Não seja uma idealista.

Pouco depois das três da manhã, Lucrécia chegou, de braços dados com Mallarmé, e se aproximou da mesa.

— Fernando, querido! — exclamou, indo diretamente em sua direção. Ela o cumprimentou com um beijo suave na bochecha. — Lembra de mim? Aquela noite na festa? Você estava tão relaxado com óxido nitroso, e acabamos fumando um baseado enquanto discutíamos um filme que você amava. Foi inesquecível!

Ela caiu na gargalhada. Fernando sorriu timidamente. 

— Claro, Lucrécia. Como poderia esquecer?

Lucrécia lançou um olhar a Mallarmé, que estava um passo atrás. Com um aceno, ela e Mallarmé se juntaram ao grupo na mesa, puxando cadeiras para se acomodar entre as pessoas.

— Parece que estão discutindo o caso do castelo — comentou Lucrécia, olhando para os rostos ao redor da mesa com curiosidade. 

— Ah, o castelo — disse Mallarmé, com um sorriso — É sempre fascinante discutir esses conceitos abstratos. Eles têm a capacidade de nos revelar tanto sobre nós mesmos quanto sobre o mundo ao nosso redor.

David não gostava do tipo de Mallarmé. Foi o primeiro a ir embora, alegando já estar quase de manhã. A noite prosseguiu até pouco depois das sete horas da manhã, quando o garçom disse que o bar ia fechar e recolheu as mesas e cadeiras.

Fernando Homem acordou no dia seguinte com a cabeça cansada depois de tanta cerveja, noites mergulhado em discussões filosóficas online e papéis que carimbava repetidamente no escritório. Foi, sem saber porque, ao Museu de História Natural. O local, envolto em penumbras, era um templo para os segredos da natureza, e naquela noite ele estava prestes a descobrir um segredo ainda mais profundo.

Mallarmé estava lá. Se interessava profundamente pela filosofia empirista britânica do século XIX, mas não por razões puramente acadêmicas. Na verdade, ele estava envolvido na defesa de um fantasma de um filósofo anglo-paquistanês do século XIX, chamado Ashraf Anwar

Ashraf Anwar era um filósofo cujas ideias tinham sido marginalizadas em vida, mas que só agora sua obra encontrava a justiça de boas leituras. Ele acreditava que suas contribuições para a filosofia empirista haviam sido injustamente esquecidas e distorcidas. Mallarmé, intrigado pela causa, aceitou defender Ashraf Anwar.

Mallarmé e Fernando foram juntos até a sala de exposições de fósseis, cercados pelos vestígios petrificados de eras passadas. Ficaram em silêncio. Mallarmé estava absorto em um manuscrito, seus olhos brilhando com uma luz quase sobrenatural. Fernando fingindo observar os ossos de uma enorme preguiça. As respirações estavam pesadas. Em algum momento, Fernando ajoelhou-se diante de Mallarmé e chupou seu pau. 

Depois daquele encontro, Fernando passou a ver o mundo de maneira diferente. É isso um homossexual verdadeiro, aquele cuja vida sofre uma reviravolta incrível por fazer sexo com um homem? O fato era que Fernando passou a se encontrar com Mallarmé. Descobriu que o julgamento de Ashraf Anwar seria realizado logo mais, no tempo da eternidade. 

Certa noite, enquanto jantavam comida chinesa, Mallarmé explicou para Fernando que via a empiria não apenas como a própria essência do ser, mas um corpo de doutrina para que se construam histórias sobre a essência do ser. Para ele, os filósofos britânicos, como John Locke e David Hume, ofereciam uma visão ou observação da natureza como realidade objetiva.

— A natureza, as florestas e relevos, os climas e impressões não são apenas um cenário para a experiência humana, Fernando — explicava Mallarmé. — Ela é a origem do conhecimento, mas como a linha é a origem do tecido. Cada folha, cada pedra, cada ser vivente é uma manifestação não da verdade, mas das histórias que conhecem sobre a verdade: as histórias da ciência natural.

Fernando, agora mais do que nunca, estava determinado a seguir os passos de Mallarmé. Juntos, eles mergulharam nos escritos que passaram a categorizar como "naturalistas", buscando entender como a observação meticulosa da natureza se tornou a verdade mais profundas da existência. Mallarmé usava esses insights para construir a defesa de Ashraf Anwar, buscando provar que suas contribuições filosóficas eram fundamentais e mereciam reconhecimento.

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