terça-feira, 6 de agosto de 2024

cena de seriado

ela despertou em um comodo pequeno e apertado. a única mobília era uma mesa de metal de boteco. numa extremidade, a porta escura, de metal, trancava-a para dentro. confusa, foi tateando pelas paredes de carpete azul-marinho com desenho geometricos cor de verde musgo até suas mãos pálidas, sem sangue, sentirem o metálico da maçaneta. constatou estar trancada a maçaneta e virou-se. foi então e percebeu haver um aparelho de rádio, sua tomada ligada na única tomada da parede, em cima da mesa. 

seus sentidos estavam ainda fracos quando ela chegou no aparelho de rádio. será que estou drogada?, perguntou-se. a luz estava forte, principalmente o verde e o escuro. as coisas eram definidas ora com extrema clareza, ora de uma forma opaca, cuja indeterminação da forma fazia parecer ser mil coisas distintas. nessas silhuetas frágeis formadas em sua visão, ela encontrava, com clareza, as mais variadas criaturas. assim que, por um instante, acreditou ver na mesa a forma de uma embarcação. estava com a proa apontada para o lado, o casco visto em sentido horizontal, como se a barca passasse diante de sua vista. pensou por um instante que estava diante do mar, mas no instante seguinte já havia percebido tratar-se de somente uma mesa de metal com estampa de cerveja. 

devagar, sua mão avançou na direção do aparelho de rádio: haviam quatro botões em formato de setas, um para ajustar o volume e outro para mudar a frequência de rádio. depois de procurar o inexistente botão de ligar, teve a ideia de aumentar o volume. lentamente, cresceu a voz de um locutor. ele falava de modo galante e divertido:

- você finalmente acordou! olá, estranho. como vai?

ela não fez nada, só piscou.

- olá? está aí?

- estou, finalmente respondeu.

- olá, estranho, como vai?

- vou bem... e você?

- eu vou muito bem. meu dia está maravilhoso. 

- fico feliz. 

- mas e você?

- não sei bem como cheguei até aqui, pra falar a verdade.

- como se chama? 

- me chamo... 

ela constatou não saber como se chamar. 

- não lembro. 

- não lembra?, disse a voz, tentando parecer simpática.

- não lembro.

- se quiser, posso te ajudar.

- quem está falando?, e ela começou a revirar o rádio procurando algum microfone, mas não encontrou nada.

- posso te ajudar se quiser, disse novamente a voz do locutor. ela procurava nas paredes da sala, mas não encontrava câmeras escondidas. será que era o rádio que falava?

- me chamo marcos, sou o secretário da advogados mandrake & hernane, e caso desejar, posso iniciar o serviço de cadastro do senhor. 

- advogados...? 

- advogados mandrake & hernane, dois dos melhores advogados desse distrito, trabalhando à preços sociais. 

- pode me dizer onde estou?

- somente se a senhora fizer nosso cadastro.

ela deu um pulo para trás e começou a revirar os cantos da sala, mas fora a porta, não havia nada. olhou então as próprias mãos, e depois para os seios, esfregou entre as virilhas e constatou haver uma vagina. 

- como sabem que sou mulher? por onde estão me vendo?

- não quis parecer rude, percebi pelo tom de voz mais agudo. 

- me diga onde estou.

- que impaciência! você precisa tanto assim de saber o lugar onde está para viver? por que não vive sem essa necessidade de determinação geográfica? toda a natureza é habitável. o ser humano antes da civilização pode viver bem em qualquer ambiente. por que insiste em saber onde vive, se poderia ser feliz sem saber? 

- que eu não soubesse sequer por onde ando? se eu não me preocupasse minimamente com minha vida?como poderia andar sem saber aonde ando? as ruas não são seguras. o mundo não é bom. como não me introduzirei nas necessidades da civilização se já vivo em uma civilização? que a civilização não é um estado de espírito que se aprende porque foi condicionado a aprender, mas é a própria realidade em que vivemos. 

- não lhe parece que poderia ser mais feliz se não soubesse onde está?

- me diga onde estou. 

- somente depois do cadastro, senhora. 

por um segundo ela pensou em arrancar o rádio da tomada, mas se freio. 

- me diga o que fazer.

- muito bom, senhora. tenho certeza que não se arrependerá de ter contratado o serviço da advogados mandrake & hernane. 

- nada, pode me dizer agora o que preciso para o cadastro?

- me diga primeiro seu nome.

- me chamo..., e ela percebeu não saber como se chamava. 

- seu nome, senhora. 

- eu... não me lembro? 

- a senhora diz que não lembra de seu nome?

- talvez..., mas ela não conseguia lembrar de nada.

- posso cadastrá-la como "anônima"? 

- pode... pode... 

- a partir de agora irei chamá-la de anônima. caso deseje modificar seu nome de cadastro, precisará nos enviar uma solicitação. poderia agora nos informar onde a senhora nasceu?

mas, novamente, ela não sabia a resposta. 

- eu não sei onde nasci..., ela disse, mais para si mesma do que para o secretário. 

- perfeitamente, cadastraremos como "desconhecido". agora, mais uma pergunta: pode nomear o nome da sua mãe ou de qualquer cidade que já tenha vivido?

- eu não sei onde vivi e... não sei o nome de minha mãe. 

- irei cadastrar "desconhecido" nos dois campos, portanto. agora, última pergunta: "deseja contratar os serviços de representação da advogados mandrake e hernane a partir das condições de facilidade social, em que a senhora recebe um empréstimo do banco big money inc. para arcar com os custos iniciais e só começa a pagar a primeira parcela daqui a três meses, ou deseja pagar imediatamente?

- eu... não acho que tenha algum dinheiro comigo.

- excelente, disse o secretário. 

- pode agora me dizer onde estou?

- ainda não estou autorizado, anônimo. retornarei em breve, quando pudermos iniciar a prestação de serviço. muito obrigado. 

o rádio ficou mudo. ela tentou aumentar o volume, procurou outra estação, mas não encontrou mais nada naquele aparelho. 


 

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