O dia havia esgotado a constituição física de Nina Rodrigues. Apagou as duas lamparinas que haviam acesas sobre a escrivaninha, deitou sobre o chão empoeirado de seu laboratório, fechou os olhos e alongou a base da coluna. Sentia muita dor nessa região, depois das muitas horas passadas sobre os livros, jornais e cartas. Sem falar nas posições pouco ergonômicas que mantinha no curso de seus experimentos científicos. O resultado não podia ser outro fora aquela série lesão por esforço repetitivo. A causa era muito simples, pensava Nina Rodrigues, e não varia de ser outra coisa fora um excesso de força feita sobre os músculos da região. O peso de sua enorme coluna vertebral, além de toda a gordura acumulada nos fartos seios de fêmea, que despencavam sobre seu abdômen e aumentavam consideravelmente a força feita contra a sua musculatura.
Enquanto Nina Rodrigues pensava em possíveis exercícios destinados ao fortalecimento da constituição feminina, a porta do laboratório se abriu. Era a criada, Maurília, carregando uma vela e rompendo a escuridão.
- Oh, minha senhora, já estava indo realizar minhas higienes para ir dormir, conforme a senhora me ensinou ser o correto para a minha saúde. Estava lavando meu rosto com aquelas poções, e tomando os remédios que me instruiu. Ainda não senti nenhuma melhora. Quer dizer, acho que tenho acordada com mais disposição, mas mesmo assim. É que minha cabeça anda lá na minha terra. Recebi notícias de que minha mãe adoeceu e que pode ir dessa para melhor.
- Que houve com ela, Maurília? Adoeceu simplesmente? Ninguém adoece assim, simplesmente, sem causa alguma. Sua mãe não era velha, era?
- Tem menos de trinta anos, senhora Nina.
- E sua mãe é bem cuidada?
- Até que é, o senhor gosta muito dela por conta das suas artes de cozinha. A sinhá também gosta de mantê-la por perto, para que ouça seus exercícios ao piano. Como vocês sinhás gostam de tocar ao piano. Onde está seu piano, senhora Nina?
- Não tenho piano.
- Não aprendeu a tocar piano quando menina?
- Aprendi, mas nunca fui muito boa. Minha irmã era quem tocava o piano. Nasci da mesma célula que Lira, mas somos completamente oposta. Ela somente se dedicava às coisas que lhe eram espontâneas. Tocava o piano porque nasceu sabendo tocar piano. Mamãe lhe dizia para fazer isso, e ela fazia, porque era tudo natural para Lira. Eu, no entanto, contrariava todos os desejos de minha família, porque tudo que desejavam era que eu fosse outra pessoa que nem eu. Sou a ovelha negra, Maurília. Não toco o piano.
- Mas não gosta das canções? Elas são tão bonitas. Outro dia aquele violeiro, que anda para cima e para baixo cantando sobre a vida alheia, e a quem admiram o talento de seu espírito afiado e veloz, que inventa os ditos no mesmo momento que canta. Tudo de improviso, senhora Nina.
- E a voz, como é?
- É divina, minha senhora!
- E de corpo, como é?
- Ele é assim, assim. Não é muito ajeitado, mas é porque é pobre. Se tivesse dinheiro iria consertar os dentes.
- Qual o nome dele?
- Damião Experiente. Porque dizem que trabalhava antes como faroleiro, e que era o mais velho de toda a região portuária. No entanto, aos trinta e poucos deu-se com a vida isolada em alto mar. Desentendimento com um colega de trabalho também. Saiu do farol, entregou o cargo público e passou a viver das troças e pilhérias que faz com a viola.
- E como sabe um faroleiro cantar e tocar viola assim?
- O tempo que passou no farol, que segundo me contou, era infinito, somente passava com a companhia de seu violão.
- Ele te contou? Então já estão conversando.
- Assim, assim.
- Me conte, Maurília. O que planeja fazer com esse homem?
Ela riu-se toda e respondeu:
- Nada, minha senhora.
- Nadinha?
E Nina então caiu na gargalhada. Maurília, que na verdade pensava esse tempo todo na mãe, também riu, mas talvez dissimulasse. Seguiu um silêncio desconfortável, em que Nina Rodrigues sentiu as costas doerem e Maurília pensou na morte de sua mãe.
A campainha tocou.
- Eu atendo!, disse Maurília, e imediatamente saiu da sala.
Nina Rodrigues foi até a mesa, arrumar os livros e os papéis para que pudesse receber a inesperada visita. Enquanto marcava os livros e os devolvia para a estante, passou os olhos no relógio e verificou que já eram mais de duas da manhã. Quem seria a essa hora?, pensou, enquanto devolvia as penas aos seus tinteiros. Ouviu o barulho de passos e correu para o espelho, imaginando que seu cabelo estaria desarrumado. Maurília disse para ela que era o senhor Azevedo Diniz com uma pequena comitiva composta por um jovem seminarista, uma senhorita com ares da vida, e um estrangeiro ilustre mas que ela desconhecia. Nina Rodrigues ajeitou suas vestes e mandou que deixasse eles entrarem.
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