sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

DISCURSO SOBRE A INIMIZADE


esse trecho escrito por theodore holmes bullock me parece esclarecer alguma coisa sobre o estranhamento que as mentes chamadas "analíticas" sentem diante das "continentais". bullock, um especialista em fisiologia da próspera universidade da california sentia-se desconcertado com a maneira que o austríaco konrad lorenz escrevia sobre biologia. de cara, admite não compreender a conceitualidade referida por lorenz. 

para esse biólogo da califórnia, a perícia da observação da natureza de lorenz se contrapunha, como o claro e o escuro de um quadro, a esse excedente conceitual que lhe parecia apenas enrolação ou tagarelice. Claro que um tanto espirituosa, mas que certamente poderiam ser abreviadas ou até suprimidas para que o leitor chegasse de uma vez à experiência que toda ciência permite desvendar.

bullock lia impaciente esses trechos palavrosos, sempre ansioso para a chegada do momento que lorenz fizesse aquele excedente conceitual começar a fazer sentido por meio de sua primorosa arte de relatar os acontecimentos. 

claro que bullock, muito educadamente, se rebaixaria à posição de ignorante, para fazer de suas críticas um pouco mais indolores: "estas limitações" - é assim que se refere a essa sua sede que lhe fazia correr dos obscuros trechos conceituais e que chegasse logo à sabedoria clarividente dos exemplos - eram contudo limitações de sua própria pessoa, "um leitor-fisiólogo relativamente dependente de exemplos". 

depois desse breve episódio de humildade, em que apequena sua capacidade de entendimento aos preceitos de sua rude formação de naturalista, passa novamente a deflagrar estocadas contra o autor que, no entanto, mantém o dever do elogio que esperamos haver em prefácios. como todo elogio no entanto também comporta a crítica - na retórica científica da imparcialidade essa ambivalência contribui para a moral do autor como justo ou injusto, mas justo ou injusto até mesmo com os amigos: ninguém está isento dos juízos de seu entendimento -. de qualquer maneira, bullock não esperava, afinal, era apenas um simplório leitor-fisiólogo, que mesmo décadas e décadas de exaustivas sessões de estudo ainda não eram capazes para que se desconcertasse perante de uma obra particularmente estranha. passa então a pontuar essas "estranhezas" que ele, um leitor-fisiólogo, encontrava na prosa de um biólogo austríaco como lorenz: (1) novamente, retoma ao excesso metalinguístico do texto, perdido em devaneios conceituais (diz que não esperava um discurso biológico em que "todo termo familiar" precisasse, no entanto, ser repetidamente "definido"; (2) e ainda,  declara bulloc, "nem esperava que palavras fortes fossem evitadas ("nunca", "nenhum", "demolido")". 

que lorenz tivesse parcimônia em seus juízos demonstra menos que evitava a inimizade (na verdade, é impossível que se evite absolutamente as inimizades), mas sim que escrevia retoricamente

que se escreva retoricamente, para qualquer mente razoável, deveria soar uma tautologia, mas para um sujeito analítico como bullock, a aparição de tal consciência em que mesmo o discurso mais literal da ciência cometia os jogos teatrais dos tribunais, somente poderia resultar em tal estranhamento, e mesmo repulsa, como aquela que fazia-lhe correr dos excessos conceituais típicos das mentes continentais. a experiência da vida ordinária e pragmática, afinal, já não havia se encarregado de demonstrar como a linguagem funcionava perfeitamente? ora, que o mundo pudesse funcionar tão bem a despeito de tamanhos luxos conceituais, por que, afinal, nesse exato mundo ordinário e pragmático, estamos todos brigando continuamente? qual a origem dessa perpétua inimizade que parece dominar a vida humana, mesmo em seu ocorrer mais ordinário e pacato?  

talvez bullock ou qualquer um poderia imaginar que os conceitos (e toda arte que se associa a eles) sejam problemas metafísicos, ou inventados por intelectuais em suas estúpidas picuinhas, que a inimizade entre "analíticos" e "continentais" deveria ser abolida em favor do entendimento universal. ora, não é o idioma da razão universalmente suprido por toda e qualquer experiência? 

Por que estamos afinal brigando? Por que o leitor tem raiva do que escrevo, ou desdém, ou qualquer gênero de repulsa que faz pensar o tempo todo que estou errado, ou que não é exatamente isso que importa, ou que sou estúpido e que estou falando nada com nada? Linguagem eficaz nenhuma parece possível de dar fins a tais antagonismos.

De qualquer forma, que Lorenz buscasse continuamente a definição dos termos que empregava para sua ciência, um autor californiano como Bullock a considerava como uma extravagância. Ora, e a experiência não comprova tão bem que as palavras funcionam sem esse estúpido jogo de explicações? Por que não passamos logo ao relato da experiência, ao exame da realidade empírica - esse é o fim da ciência, não? - e nos esqueçamos dessa tagarelice abstrata de uma vez? 

De minha parte, me ocorreu uma censura a esse leitor-fisiólogo. Certamente, redigindo seu saber universal desde a cosmo-pólis californiana, haveria de estar perfeitamente convencido de que sua experiência havia lhe habilitado a entender a natureza. Para que tantas definições se eu já aprendi a me comunicar de maneira tão eficiente por meio de minha educação universal de cientista americano? Ora, passemos logo aos objetos da ciência, não compreende que já estou em posse dos conceitos adequados para compreender tudo e qualquer coisa? Ora, basta que me entregue a matéria empírica, e se eu tiver tempo suficiente, certamente irei entendê-la. 

A ordem desse comportamento não é outra fora desse egocentrismo que funda sua própria experiência como suficiente para a compreensão de toda e qualquer experiência. Ora, muita coisa sobre saber consiste precisamente na capacidade de criticar a própria experiência, a própria moral, a própria existência, e por isso não me parece improvável que a filosofia seja mais o discurso dos enfermos do que dos perfeitamente sãos. A filosofia envolve essa experiência de destruição das categorias basilares da própria experiência. O que, certamente, não implica em uma simples desordem comportamental, embora essas não sejam impossíveis ou mesmo desrrecomendadas. 

Deve existir no saber, imagino eu, uma dimensão experiencial que busque condições para essa grandiosa experiência da (auto-)crítica, da (auto-)dialética, do (auto-)entendimento, ou qualquer outra forma de iluminação com que os sujeitos filósofos narram as suas histórias de conversão à sapiência. 

Toda ciência, mesmo aquela mais empiricamente experiencial e objetiva, afinal, cedo ou tarde atinge esse estágio de discurso do método. Mesmo os mais restritos, como um Bullock, sentem que chegou o momento das confissões, e passam a relatar sobre como eles próprios afinal obtiveram algum entendimento. E esse Bullock, ao invés de discutir a realidade empírica do fisiólogo, passa a relatar seu "caminho para o entendimento". 

Um deles foi facilitado por  Lorenz: com o estrangeiro, Bullock aprendeu a a importância de representar, no seu discurso científico, não somente a "visão correta", mas também a "visão dos adversários", de maneira a abrir o próprio sistema a esse outro capaz de desafiá-lo. 

nessa querela que antagoniza os "analíticos" e "continentais", certamente, temos muito o que aprender uns com os outros. é muito bela a humildade e todo o fair play intelectual que os intelectuais norte-americano cultivam por gente de todo mundo. qualquer um que conheça um historiador brazilianist sabe o como são gratos ao que se produz por aqui (e suas universidades são tão gratas pela nossa gente que fazem a gentileza de tomar algum jovem cientista da terra para ir produzir lá o discurso universal). é sempre muito nobre pensar que podemos aprender com tudo e todos, e que mesmo o pior dos inimigos pode se tornar fonte de sapiência. como irei descordar, se para a sapiência, até mesmo os tweets mais lixos são meios? por que então o sistema da verdade não está realizado, se todos podemos tão bondosamente aprender com os inimigos e com tudo e qualquer coisa? ora, me furto a respostas mais longas, porque seria entrar em polêmicas, e já estou por aqui de escrever na internet. por enquanto, termino escrevendo sobre a importância absoluta de ter inimigos: não de defende-los como quem está a armar uma arapuca contra os limites da própria razão, - o que é boa ideia da parte de Bullock - mas porque não somente de laços de amizade nasce o pensamento. 

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