quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

anotações de RAÍZES DO BRASIL, de SÉRGIO BUARQUE DE HOLLANDA

3331. feitorização X colonização
           exploração econômica extrativista X aperfeiçoamento do modo produtivo da natureza pelo espírito
            
        A distinção entre feitorias e colônias parece colocar uma distinção de valor, entre uma cultura mais primitiva, isso é, de tendência nômade, abandonada aos limites dos recursos produtivos naturais, e uma cultura mais adiantada, que se caracterizaria pelo cultivo sedentário da terra. A diferença entre o nomadismo puro e a feitoria parece se dar a partir da introdução do comércio: os recursos encontrados in natura são destinados não ao consumo, mas à troca. 

3503. semeador x ladrilhador

    A construção de cidades é prova de como a vontade humana foi capaz de impor à natureza o seu próprio fim. 
    Poderíamos falar de Raízes do Brasil como uma história do antropoceno? De como o ser humano, destinado à conquista da natureza, podendo, pela técnica, remodelar seus fins, instauraria uma nova época da história natural? 
    Para Sérgio Buarque de Hollanda, os fins do homem e da natureza são colocado como concorrentes; a humanidade somente impõe seu domínio pela ordenação do espaço bruto e virgem da natureza ("ordenar e dominar" pelo "traço retilínio" as "sinuosidades e asperezas" da natureza. A geometria, a perfeição das formas, somente é possível pela arte humana do trabalho. Não que a natureza precise ser rebaixada: pela sua produtividade natural e lei espontânea de sua evolução, foi capaz de sustentar populações muito vastas, que realizaram feitos muito belos ao longo de suas eras. O ser humano, no entanto, sonha com a geometria: a primitividade da natureza é rústica demais diante do retilínio racional do humano. 

  3113. 
       A relação do ser humano com a natureza é a de guerra. Sérgio Buarque fala nas cidades como verdadeiras tecnologias bélicas que devem "ordenar e dominar" o espaço sinuoso e irracional da natureza pela força de suas retas. Ao elogiar a colonização espanhola (pelo menos durante certa fase sua) como uma empreitada de ladrilhador, em oposição ao do reles semeadores, Sérgio Buarque parece ter em vista sobretudo os interesses superiores que conduziria aquela empreitada: menos a exploração econômica do que a criação de uma civilização. Ao contrário dos portugueses, que se limitavam a extrair as riquezas de suas feitorias, os espanhóis procuravam realizar, naquela terra inóspita, as leis e modo de viver de sua terra natal. 

    O humano, para a história natural, talvez seja como os cometas ou dilúvios que outrora destruíram toda a ordem cósmica. Essas desastres, ao promover verdadeiras revoluções na organização da vida, provocaram verdadeiras descontinuidades que os historiadores da natureza procura desvendar. 
    Trataria-se de imaginar os desastres naturais como a causa da extinção de muitas populações, incapazes de sobreviver em meio às novas condições de existência. Essa situação de perigo e desequilíbrio - verdadeira crise econômica da vida - seria a base para a sua continuidade, que de modo geral, obdeceria às leis evolutivas de seleção de caracteres benéficos.
    Se tivermos em vista o apocalipse climático que cientistas anunciam, parece que o antropoceno, que iniciou-se com a descoberta do fogo, invenção de ferramentas, de linguagens complexas, divisão do trabalho, família, leis e morais, religião, etc, precisará se colocar à prova diante de um enorme desastre natural. Como que as alterações climáticas transformaram a vida humana e inumana, ainda resta a ser esclarecido. O fato é que, como escreve Sérgio Buarque, é do humano "intervir arbitrariamente [...] no curso das coisas"; diz ainda que "a história não somente 'acontece', mas também pode ser dirigida e até 'fabricada'".

Quando Sérgio Buarque distingue entre os acontecimentos que simplesmente acontecem daqueles que são fabricados, remete-se ao que poderia se chamar poderes do homo faber, aquele ser natural facultado na fábrica, no engenho e na indústria, e que por tais necessidades espirituais, de bens não simplesmente oferecidos pela terra, se sente profundamente desamparado ou carente. O homo faber, esse ser natural que, no entanto, descontente com a natureza, "projeta fabrica objetos para responder a suas próprias necessidades" (PPP, p. 74). A distinção posta por Sérgio Buarque entre acontecimentos que simplesmente acontecem e acontecimentos fabricados remete entre dois modos produtivos diferentes, aquela dos acontecimentos naturais, que orienta a contínua agregação da natureza, e aqueles acontecimentos fabricados por finalidades e intenções humanas. Diderot iria distinguir entre todos compostos por agregação, e aqueles constituídos por montagem como forma de evidenciar as diferenças entre um organismo e um mecanismo. O homo artifex, especialista em sua arte, tenderia a ver o mundo como este também fosse um produto dessa sua técnica. Ao criar objetos, o homo artifex se põe a imaginar como a natureza foi criada, e por A + B, conclui que deve haver também um criador de todas essas extensões. É contra tal teologia de que o mundo seria design de uma inteligência que Diderot sustenta que, se aplicada à natureza, "a noção de harmonia é metafórica", menos por ser equivocada, do que somente ser concebido a um homo artifex. (PPP p. 198) 


"reproduzir na terra a ordem cósmica", como faria o semeador, é arte do português. Conforme Antônio Vieira, em sermão sobre como dar sermão, seria mais conveniente às artes do homem que seguissem não o traçado ideal e geométrico de sua imaginação, mas o desrregramento e deus-dará que se observa na composição da natureza.

3123. 
    Essa ordem desrregrada da natureza seria o modo produtivo que possibilitaria a organização de feitorias; o regime extrativista e militar, que assegurava o monopólio comercial aos capitalistas da coroa, é distinguida por Sérgio Buarque enquanto uma espécie de fase produtiva primária e natural, anterior e condição a priori para uma fase produtiva humana e superior. A "exploração comercial" do português, assim, seria inferior ao "prolongamento orgânico" do espanhol pelo poder de impor sua "vontade criadora" à natureza. Por isso, tais colonizadores não se detiveram no literal, e somente iniciaram seus assentamentos quando, já no interior do continente, encontraram as condições climáticas similares a de sua terra natal. (3152). 

3172.
    Sobre Raízes do Brasil, acrescenta-se ainda que seja um tratado de bio-política, já que medita sobre os princípios para o cultivo demográfico de populações. Quando reflete sobre os tempos da conquista, Sérgio Buarque se demora em cogitações sobre a história americana desde o ponto de vista da povoação europeia, de como os portugueses se mantiveram presos ao litoral. Sua colonização, mesmo depois de terminado o regime de feitorias, seguia dirigida pelos interesses exclusivamente comerciais, e como convém a proximidade com o mercado externo europeu, os portugueses vão se deixando cair em torno da costa. Deixam, contudo, na profundeza do território, uma área enorme de terra despovoada e improdutiva, abandonada à lei da natureza. 
    Perceba-se que as considerações bio-políticas de Sérgio Buarque se colocam no nível da produtividade econômica: é do interesse do Império Português "fomentar a povoação da costa" e "evitar as contendas sem fim" com os nativos, que alterariam a "paz tão necessária ao desenvolvimento da terra". (3191) O que o autor tem em vista é que o projeto colonial português se limitava a retirar da quela terra riquezas capazes de sustentar os gastos do próprio Estado. Para isso, não deixou de calcular as vantagens da proximidade de suas indústrias agrículas com o oceano atlântico: menor a distância, menor o tempo, menor o trabalho, menor os custos.... E se os portugueses se fixaram nas regiões costeiras por conta de tal cálculo econômico, foi por meio da aventura bandeirante (3219) que guerrearam contra o nativo e ampliaram a fronteira agrícula. A guerra e escravidão contra o indígena, aliado a outras atividades comerciais, foi verdadeiro acúmulo primitivo para a expansão da indústria agrícula. Sérgio Buarque, em sua história demográfica, elogia as bandeiras como a primeira iniciativa verdadeiramente povoadora do Brasil.

3274. 
    O tupi como tecnologia econômica política: a língua geral para indermediar as trocas, acordos e leis. 

3296. 
    Sincronicidade entre territórios tupis e o desenvolvimento da ocupação portuguesa; fronteira da guerra como limite ao desenvolvimento.

3338. 
    mercantilismo e dependência: transferência da riqueza da colônia para a metrópole.

3317. a fisionomia mercantil e semita da colonização (amor X exploração)

3357 aversão congênita do português a qualquer odenação impessoal da existência
    aversão às "normas regulares e abstratas", isso é, fabricadas desde a razão humana, e não aquela engendrada pelo tempo natural da experiência. 
    A crítica de Sérgio Buarque ao espírito português (ou seja lá em que termos seria mais adequado à se referir a essa "aversão congênita") envolve, por um lado, uma crítica à razão econômica enquanto fim imediato e valor em si mesmo, associado ora ao luxo dispendioso da corte, ora ao hábito comercial das culturas semitas, e por outro, uma crítica a certa incapacidade de tal razão fabricar um pensamento especulativo, capaz de transcender a experiência imediata. 

3450.
    A obra de Sérgio Buarque é crítica em relação à colonização portuguesa. A verdade é que aquela nação grandiosa cantada por Camões era um mito, e que há muito o povo português havia perdido a nobreza de outrora. [citar]
    Essa decadência parece associada a uma passagem de uma nobreza guerreira para uma nobreza ociosa, que quando muito, estava ocupada dos negócios do Estado e da Igreja. De outra parte, a atividade guerreira das cruzadas e reconquistas foram substituídas pelas relações pacíficas e comerciais, que fizeram crescer grandemente o tesouro do estado. [3420] Esse enriquecimento, possibilitado pelas virtudes burguesas, segundo Sérgio Buarque, teria favorecido a ascensão de uma nova nobreza, de origem comercial, mas que, por forças de títulos, teria suprido suas carências genealógicas e até mesmo o aviltamento de sua família ter trabalhado com as mãos. 

O que Sérgio Buarque tem em vista é que não obstante a transformação produtiva provocada pela expansão marítima, os negócios eram empregados para a reprodução da vida portuguesa na metrópole. A nobreza guerreira, que um dia retomou as terras dos mouros, agora exercia profissões administrativas e literárias. As armas trocam-se pelas letras, e a guerra se luta por meio de legislações. [3483] A velha prudência portuguesa se afrouxa em preguiça e lanssidão;  [3496] a razão cede aos impulsos mais imediatos e baixos, instintivos e sentimentais, que não alcançam o trabalho da razão, e por isso, jamais atinge o produto das elevadas especulações.

3470.
    Há, na obra, a delimitação de diferentes psicologias, ou ainda, diferentes formas de antropologias práticas, isso é, práticas características da experiência de cada costume e povo. O semeador português, quase sempre, parece pior que o ladrilhador espanhol, pela sua incapacidade de impor uma ordem superior, humana, à natureza. 

  

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