sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

arrebol quadrado 777# viagem ao estrangeiro do cabo marcos e seu encontro com alencastro e tímpano

o falatório interminável. música alta de altos falantes. tímpano, marcos e alencastro caminhavam pela passarela. a selva de pedra de lojas enormes e toldos a fazer sombra. o bafo quente de uma cidade construída com os mais precários recursos nos vales profundos e semi-áridos do sertão de dali. tímpano, que era músico, perguntou para alencastro qual era o seu estilo favorito de música. ela respondeu que era o bolero, e os três ficaram discutindo bem alto sobre as mais belas cantigas 

Tímpano passava o dedo no copo.

— Agustín Lara maior que Lucho Gótica? É absurdo.

Marcos inclinava-se na cadeira, polindo o cabo de sua baioneta com um pano velho.

— Lara escreveu para o México. Lucho é uma voz universal, uma emoção crua e humana. Não tem comparação com um caipira de província recitando cantigas sobre bois.

Alencastro, sentado com as pernas cruzadas, olhava as unhas recém-feitas.

— Vocês esquecem de Toña La. Ela é rainha.

Tímpano se indignou:

- Não fale assim! Ela é boa, mas bolero é um gênero masculino. Vozes graves, melancólicas. Não tem espaço para exagero.

Alencastro rebateu:

— É disso que vocês gostam, então? Homens tristes, abandonados?

Aparece alguém para entregar panfletos religiosos e interrompe:

— Benção, irmã.

— Já sei, porque nosso criador é, etc etc. Não acreditamos em Deus. Saia de nosso caminho.

Marcos pigarreou, secamente, enquanto seguiam.

— Bolero é só música. Muita palavra pra pouca nota.

Tímpano levantou o copo, brindando as palavras sábias do militar. Era sem estudo mas tinha a sabedoria pragmática da vida.

Chegaram na padaria e Marcos deu um salto ao ver as vitrines abarrotada de mercadorias. Marcos olhava para tudo, confuso. Pães dourados, pães brancos, pães grandes, pequenos, com sementes, sem sementes. A boca dele começou a encher de saliva. Ele se aproximou do balcão.

— Quanto é o pão mais barato?

A atendente respondeu sem levantar a cabeça.
— Dez centavos cada.

Marcos quase gritou:

— Dez centavos?!

Ele pediu cinco, comeu ali mesmo, sentado entre Tímpano e Alencastro. Falava de boca cheia, farelos caindo sobre o uniforme.

— Lá em casa não tem isso, não. Pão é coisa rara. É caro demais. Não dá pra comprar.

Ele mastigava rápido, engolindo entre frases. Os outros olhavam em silêncio, até que Alencastro o abraçou pelos ombros. Tímpano fez o mesmo, segurando o braço de Marcos. O soldado olhou para eles, surpreso, mas continuou mastigando. 

Deixaram Marcos na entrada de uma rua mal iluminada. Ele acenou com a mão e desapareceu. No carro, Alencastro estava calado, o olhar fixo na estrada. Tímpano dirigia, tamborilando no volante.

— Tímpano, — disse Alencastro, depois de um longo silêncio. — Preciso dizer uma coisa.

— Diga.

— Eu estou apaixonada por Marcos.

Tímpano riu, mas o riso foi curto.

— Você sempre gosta de quem não te percebe.

Alencastro virou o rosto para a janela, a respiração curta.

O carro seguiu pela noite, sem mais palavras.


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