"O evento se torna parte da própria subjetividade", disseram hoje para se referir ao entrelaçamento entre memória e trauma.
Não seria justamente o trauma a incapacidade do sujeito de imaginar-se sem essa tal parte, que lhe parece constituinte? O trauma não seria a neurose de recontar obcessivamente essa memória distante?
E no interim entre acontecimento e relato, o sujeito talvez já não se transformou absolutamente? Ao analisar seu discurso, poderemos perceber tantas variações, mesmo que ainda mantida a obsessão original, aquela onde ele projeta a própria fantasia, uma rubrica que persegue toda sua fala, o lugar desde onde grafa seu próprio ser no mundo.
A psicanálise típica aposta que um tal acontecimento pretérito explicaria a ordem discursiva de hoje, como se determinado evento fosse a causa de um trauma, perpetuamente representado e reencenado em seu discurso; mas poderia também se perguntar pelo inverso, de como o discurso contemporâneo redistribui as coordenadas do trauma dentro de novas superfícies semânticas.
O que estou chamando vagamente de trauma, antes de mais nada, é essa espécie de mitologia privada desde onde engendramos nossa história. Suas leis não são a de um passado que ocorre e permanece, em repetição infinita, mas de um passado que ocorre e que imediatamente se dissipa, se transforma, se faz um outro.
Nessas circunstâncias, até acredito na psicanálise como esforço teórico: de encontrar não simplesmente o rumor da repetição - que é somente, digamos, a metodologia de pesquisa, o indício de alguma coisa, pois sobre a identidade da repetição (de um nome) subjaz séries de diferenças -.
A pobreza da repetição, digamos, muitas vezes não é apenas do paciente, mas do analista, que não percebe as maneiras que a mesma figura pode se redistribuir em outras.
Claro, que sobre toda fala atua uma espécie de controle, e o paciente, tão logo insinua uma variação, um deslocamento, sentindo o perigo que essa diferença evoca (o perigo de ser um outro, de talvez ter que se reimaginar por inteiro), tão logo ameaça tal possibilidade, e vislumbra vagamente um novo destino, ele imediatamente, provavelmente, irá oscilar, regredir, repetir, confirmar a espécie de regra ou máxima que caracteriza a boa neurose. Voltar, portanto, ao trauma: reencená-lo mais uma vez.
O trauma não é o que está por baixo, oculto pela fantasia: o trauma é a própria fantasia.
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