Sentada na calçada, Leila lia ao O Mestiço, de Zola, quando Pérola-Flor chegou e contou uma anedota engraçada. Um amigo, disse Pérola-Flor, estava organizando um bloco com as canções da banda Ludovic para sair no carnaval. Um segundo amigo então lhe sugeriu jocosamente que empregassem como nome do bloco um dos versos da banda, "assim como meu pai".
- Por que um nome tão grotesco?, questionou Leila.
- Por ser sexual e burlesca, bem ao espírito do carnaval,. Mas claro, ninguém aceitou a proposta indecente.
Depois de muitos ensaios, desfilaram com um bloco chamado "meses de fevereiro", que fazia referência a outra famosa música do grupo. Leila não conhecia o pessoal que organizava o desfile. Eram conhecidos de Pérola-Flor, que no dia convidou ela para ir junto.
Muita gente bebendo e fumando. Barulho de bateria, cavacos e metais tocando alto. As pessoas cantarolam as músicas que sabem.
- A história, como tudo, se converteu em mais uma grande mitologia capitalista, dizia um rapaz alto para Leila. A quantidade de filme e de prêmio Nobel entregues às trágicas memórias da Grande Guerra... Todos anos, muitas lágrimas em honra das histórias de extermínio e violência. Os cinemas estão lotados de pessoas querendo assistir ao sofrimento dos oprimidos.
Leila já estava enfadada do discurso daquele tipo francês (seu nome era Marcelus Pierre). Por isso deu uma desculpa qualquer e foi juntar-se a Pérola-Flor, que conversava com duas mulheres. Ela entra no assunto, e em alguns minutos, graças aos poderes do álcool, já estava enturmada. Contava um caso:
- No último encontro eu estava meio bêbada e sem querer meti a mão no cacto. Passei o resto da noite tentando tirar os espinhos de meus dedos. Enquanto isso, o pessoal estava discutindo suas crenças no oculto. Falavam sobre a cabala, a filosofia hermética, wicca, essas coisas... Eu permaneci em silêncio, ouvindo seus agradáveis discursos. Quando estava desatenta, perguntaram sobre o que eu afinal acreditava. Bebi um gole de cerveja e tentei desconversar, rindo, dizendo que não sabia direito... Às vezes tenho receio de falar sério".
Incrédula, Pérola-Flor questiona se Leila realmente não acredita mesmo em nada.
- Com algumas cervejas a mais teria feito a piada seríssima de confessar que gosto muito de ler filosofia francesa, disse Leila , rindo.
Então as duas foram para o apartamento de Leila. Beberam algumas cervejas e ficaram discutindo sobre os filósofos até amanhecer. Dormiram juntas.
Leila teve pesadelos naquela noite, e na manhã relatou o seguinte para René:
Estava correndo, desesperada. Mal percebia o cheiro do esterco dos cavalos imperiais misturando-se ao de urina, álcool e suor dentro de minhas narinas. Um enorme dragão verde-esmeralda ocupava quase todo o espaço da rua apertada e escura.
As pessoas não lembram, mas as ruas de antes da revolução eram todas assim, miseráveis e sujas. E nos dias de festa a multidão bêbada vinha dançando e cantando seus hinos e odes populares.
Em todo canto via-se aos nativos, e também muitos estrangeiros, todos vestidos das formas mais pitorescas, desfilando com longos chapeus, vestidos véus e estranhos adornos. Também muitos homens e mulheres descamisados, ostentando tatuagens no peito e barriga. Apressada, desviei de um casal de amarelos e de olhos puxados com um salto, mas na hora de aterrissar tropecei. Minha sapatilha voou para fora de meu pé, mas eu continuei correndo. Na frente espelhada de um prédio em que passei em frente vi minha fisionomia morena passando correndo, os cabelos curtos e loiros, a testa alta, que sempre pensei ser grande demais, o rosto iluminado pela luz das lâmpadas fluorescentes, meu pulôver escuro de mangas curtas, a saia jeans, o pé direito sem a sua sapatilha, a meia três quartos branca em contato com o chão imundo. Mais cedo tinha chovido forte. O chão estava cheio de lama misturada à merda dos cavalos. Virei a esquina, me sentindo exausta, ou próxima da exaustão. Ao virar esbarrei com alguém, mas não tive tempo para parar. Ainda correndo, olhei para trás, por cima do ombro, e vi um velho mandarim de meia idade bêbado e sonolento, sentado no chão e me xingando em sua língua. Mergulho para dentro da multidão, desviando ora de casais de namorados, ora de barracas de frutas ou qualquer outra vendinha. Atravessei a rua para fugir por uma outra esquina, mas uma enorme locomotiva interrompeu o meu caminho. Além de impossibilitar qualquer passagem, a máquina reproduzia em looping uma música infantil, de filme americano. Lá de cima, tocando instrumentos de sopro e objetos percussivos, a banda de músicos executava seu trabalho indiferentemente, e eu diria até que burocraticamente, com enfado. Os milhares de corpos reuniam-se e obstruíam toda a rua, amontoados diante da locomotiva. Era impossível voltar. Ao meu redor os nativos pulavam, sorridentes e bêbados, soltando fogos de artifício , atirando serpentina um no outro, cantando e dançando aquela peculiar coreografia que até as crianças sabiam. E puxada por touros com enormes chifres pintados de ouro, a locomotiva avançava vagarosamente, quase parando. Olhei para trás, e encontro uma esquina livre, e me pareceu possível chegar até ela se me espremesse entre os corpos, mas quando tento voltar fui imediatamente impedida pelo fluxo da multidão, que empurrava na direção oposta. Como uma tábua largada na praia, fui arremessada de volta aonde estava, aos gritos de “licença”, “por favor”, “preciso sair daqui”, todos ditos na língua nativa, claro, e todos também perfeitamente ignorados.. Esperei então, mesmo que impaciente, ansiosa, os nervos à mil, que passassem uma boa porção de segundos, segundos vagarosos que custaram a passar. A locomotiva ainda passava, mais lenta que uma lesma. Para relaxar, meti nervosamente a mão no bolso e cheirei um pino inteiro, o que depois me pareceu um erro, pois logo em seguida olhei para trás e vi a cabeleira loura de Freda vindo em minha direção, tentando atravessar o mar de gente. Meu coração quase saiu pela boca. Sentindo a úlcera queimar meu estômago, com meu cérebro prestes a desfalecer por conta do esforço nevrótico, limpei o suor de minha testa e bebi um gole de minha garrafa d’água. Olhei para a locomotiva, ainda atravessando, e pensoeique só mais um pouquinho e seria o suficiente para que eu atravessasse. Se demorasse um pouco mais do que demorei, eles teriam me alcançado. Se demorasse um pouquinho mais, estaria perdida. E então a locomotiva passou. Empurrei uma mulher para que saísse da minha frente e me meti a correr pelo trecho recém-aberto da rua. Tentei correr, mas era impossível, tamanho o número de gente na rua. A todo instante era preciso desviar de alguém, mas os choques eram inevitáveis, seja com as pessoas, seja com os objetos e animais que abundavam em todo canto, as carroças em que vendem bebidas e comidas, os papagaios que as crianças empinam, as lamparinas acesas e penduradas na fachada dos prédios, os enormes bonecos de papel que trazem presos por cordas, e eu quase caí ao tropeçar em um gato vira-lata. Quando me recuperei do golpe, vi que sombra crescia no chão à minha frente. Ao me virar e olhar o céu azul-claro vi um boneco de cartolina bloqueando a luz do sol. Era enorme, e estava sustentado por uma locomotiva enorme. A figura representada nesse carro alegórico era um estranho macaco de três olhos, nove braços e segurando três bastões, que os mandarins adoravam. Lentamente me aproximei do enorme macaco, me agarrando à protuberância de sua cauda para escalar. Enquanto subia, por cima do ombro VI que estavam atrás de mim. Vou subindo e quando dou por mim estou no topo da cabeça do macaco. Lá dentro, uma banda toca a seus instrumentos de sopro e percussão. Veem eu entrar com ar de tédio, e continuam executando seus movimentos como se eu não estivesse ali. Saio correndo pela janela e pulo na direção de um enorme toldo roxo, que embora abafe minha queda, não impede que sinta a lancinante dor que afligia ao meu pé direito. Mas, pelo menos, nenhum sinal de ninguém, fora claro, os milhares de nativos que cantavam e dançavam pelas ruas da cidade imperial. Naquele tempo, muitas vilas tinham entradas em múltiplas ruas. Vi uma porta aberta para um cortiço, e pensei que poderia ser essa a minha grande oportunidade de fugir: poderia despistá-los pelos casebres caindo aos pedaços. Talvez pudesse até parar para dormir em um quarto. Entrei pelo cortiço e fui procurar um quarto para dormir.
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