terça-feira, 31 de janeiro de 2023

CG&S, p. 160.

O ANIMAL: Ao mesmo tempo que é homem, o ser humano também passa a partilhar do animal. Quando o homem se animalizou? Sempre? Ou a animalidade possui tempo e lugar?

Antes de tudo: o que vem a ser o animal em Freyre (e da antropologia pretérita)?

• desregulamento da atividade sexual; incesto

• função genésica e evolução como teleologia

• descarga dos sentidos

O animal é uma máquina libidinal: sua energia está orientada para a reprodução sexual da espécie. As necessidades fisiológicas - e em nível mais elaborado, complexo, civilizado, as paixões - são parte da razão da natureza, da razão sexual que governa todo animal em direção à reprodução.

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O parentesco representa a entrada da natureza - a reprodução, o sexo - dentro do mundo da cultura: mundo da restrição, do regulamento, da disciplina, do controle daquilo que se considera o impulso livre, libido nua e crua, do animal. A civilização é essa estranha tecnologia moral que promove a domesticação do que é natural no humano.

Lévi-Strauss irá estabelecer o parentesco como ponto de passagem: o lugar primeiro em que a cultura domestica a natureza, seu fluxo selvagem libidinal. O simbólico dobra o real: por meio do controle do parentesco - controle dos corpos das mulheres, diz Rubin Gayle - a libido é organizada e se converte na política - política dos homens, diz também Rubin Gayle -. 

O tabu do incesto interdita o sexo, e dessa interdição que nasce a família e o parentesco. Por onde a cultura nasce por entre as pernas da natureza está as duas mãos do poder: primeiro o que interdita a relação sexual entre corpos relacionados; segundo, o poder que distingue entre homens e mulheres, e faz delas um objeto de troca entre os primeiros. 

O sexo se controla por meio do controle ao feminino, e toda uma economia política nasce da observação de Lévi-Strauss a respeito do parentesco como passagem da natureza para a cultura. Pois a cultura não é nada mais nada menos do que uma organização do real pelo simbólico; a torção da energia libidinal, livre, louca, passional da máquina animal, e segundo a arquitetura de alguma razão. Essa razão pelo menos desde Maus e mais proeminentemente em Lévi-Strauss é assegurar as relações de reciprocidades mútuas, formar a rede de aliança - o contrato - que assegura o nascimento da sociedade, e também regular a forma de sua reprodução segundo essa ordem a priori a que estamos chamando de poder.

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Uma genealogia entrelaça Kant e Marx a Foucault e Lévi-Strauss: a ordem dos meios de produção que produz o a priori a que se chama episteme, as categorias do pensamento. 

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o sexo é só mais um das armas de guerra para nos manter sob controle.


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Em Gilberto Freyre, os limites entre natureza e cultura não estão articulados, mas ainda assim se pressentem.

CG&S, p. 162: ressalta-se as restrições, tabus e impedimentos entre os índios brasileiros: "criar um estado social bem diverso do de promiscuidade ou de deboche". Esclarece-se que a vida dos primitivos não se tratava da de "livre animal imaginado pelos românticos"; que tinham medos e preconceitos. Expõe-se o mito do caipora e diz-se que ele ainda sobrevive na vida psíquica do brasileiro.

Os medos e preconceitos dos povos indígenas sobrevivem no brasileiro de hoje: transfigurados em outras formas. "Desapareceram os pajés, deixando atrás de si primeiro as 'santidades' do século XVI, depois várias formas de terapêutica e de animismo, muitas delas hoje incorporadas, junto com sobrevivências de magia ou de religião africana, ao baixo espiritismo..." (p. 163).

Os estudos desenvolvidos em CG&S nos oferecem uma historiografia calcada na continuidade e na herança, na identidade entre o presente brasileiro e o passado colonial - e às vezes, em exercícios que em outros trabalhos Freyre chamaria até mesmo de "futurologia", do porvir -.

Aqui já estamos em uma escritura distinta da típica antropologia física, da maquinação libidinal, dos instintos sexuais e de reprodução, em que as heranças são sobretudo genéticas e/ou técnicas, e adentramos a uma antropologia já articulada ao simbólico, à continuidades ditas psíquicas, e cuja expressão teórica mais bem-acabada talvez seja o estruturalismo de Lévi-Strauss, especialmente n'O pensamento selvagem.

O livro de Lévi-Strauss inicia-se querendo desafiar a teoria antropológica vigente, que para diferenciar entre a razão das sociedades ocidentais daquela considerada primitiva, selvagem, preteria aos segundos como inaptos para o pensamento abstrato (sobre tal inaptidão, convém a leitura de A mente primitiva, de Lévi-Bruhl: "o conjunto de hábitos mentais que exclui o pensamento abstrato e o raciocínio propriamente dito parece ser encontrado em um grande número de sociedades inferiores e constituir um traço característico e essencial da mentalidade dos primitivos" (p. 11); "a mentalidade primitiva não se preocupa em procurar saber o que chamamos de causas dos fenômenos" (p. 36); a obra será diretamente referenciada por Freyre em seu estudo sobre os indígenas brasileiros como forma de compreender as particularidades da psicologia do selvagem), de forma que Lévi-Strauss desenvolve uma complexa teoria para compreender as razões desse a priori com que se orienta a apreensão da experiência selvagem, sua lógica e pensamento, sua ação e mesmo a sua história.

Não é nosso interesse esmiuçar a obra em muitos detalhes, senão tomar dela o que parece adequado para a compreensão de nosso argumento à respeito da obra de Gilberto Freyre, especialmente no que se refere às transformações que o brasileiro atribuiu à mentalidade primitiva, e à sua herança ao povo brasileiro. 

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Grande parte de CG&S está concentrada em discussões teóricas oriundas da antropologia da época. Muitas vezes o livro se parece a um redemoinho antropológico, com distintas correntes postas em paralelo. Uma massa que em seus momentos de delírio argumentativo não nos oferece mesmo qualquer síntese, pelo menos não sínteses que satisfaçam pela sua clareza.

Ou são insatisfatórias a nós, que já desejamos antecipadamente que as discussões de Freyre cheguem a um determinado lugar, como se ainda esperássemos da razão pretérita algum pendor progressista, aperfeiçoador, que lhe obrigue a pensar dentro das categorias que pensamos, como se a razão futura já estivesse escrita em toda e qualquer razão, e não como se toda razão abrisse múltiplas linhas do tempo, e o desenvolvimento da história da teoria não fosse somente uma das direções em que certo consenso progrediu? Pois ao progresso que atribui-se ao desenvolvimento da Razão, postula-se, em paralelo, as ruínas de todas as outras, soterradas, recalcadas, expulsas, da historiografia vigente. Nós, que destruímos as sandices do evolucionismo, da antropologia física, esperamos simplesmente sermos conduzidos para fora do labirinto argumentativo de Freyre pela prometida porta da antropologia cultural que o próprio autor nos prometeu, e nós também permanecemos sempre frustrados, quando ao fim e ao cabo as questões não se resolvem, as diferentes hipóteses se acumulam e se contradizem, uma enorme colcha de retalhos de citações que se acumulam, e que Freyre simplesmente administra, indo de uma para a outra, modestamente, por meio de seus "ao contrário...", "entretanto...", "pelo menos...", "e...", "quanto a isso...", "aliás...", "contra a ideia geral...", "embora...", "parece-nos que..."...

A sensação é que Freyre está de fato manejando contrários - pesando distintos argumentos - e muito embora não se furte exatamente de decidir ou indicar preferências, essas preferências muitas vezes se contradizem... Como se um único sujeito permitisse diferentes predicações, como se um argumento pudesse ser seguido pela sua refutação... A sensação provocada pelo seu ensaísmo não é  de exposição lógica, não é o silogismo que irá resultar em sínteses conceituais e elegantes, mas uma colagem de diferentes textos que antes de mais nada produzem o aspecto cubista a que o próprio Freyre evoca em outros lugares, e que também evocaa aos filósofos de Tlon, que conjugam da verdade a existência múltipla e contraditória, e em Tlon os livros de filosofia comportam dois livros, a tese e a sua antítese...

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Os asteriscos, recorrentes em CG&S, e que parecem sugerir a chegada nem de uma aporia e nem a chegada ao fim de uma seção, mas simplesmente a incapacidade do discurso continuar a se desenrolar, da necessidade de provisoriamente anunciar um fim, apenas para que se possa recobrar as palavras e começar novamente o mesmo argumento.

O aspecto musical da ensaística de Freyre: após os asteriscos, geralmente faz-se o ritornelo - e volta-se ao tema -. 

p. 167: surgem os três asteriscos e encerra-se a fala sobre a cor vermelha (cor profilática, cor tonificante, cor da felicidade, cor erótica, cor de sangue.... a síntese freyreana antes engloba e acumula todas as anteriores, uma visão de um todo simultâneo...). Em seguida, retorna-se a um dos temas de CG&S: o "choque das duas culturas".

Essa noção sangrenta, darwinista, que compõe um dos eixos da escritura em Freyre, é também o fundo escritural em que se desenvolve a antropologia (pelo menos) da primeira metade do século XX. Mesmo  Lévi-Strauss, considerado tipicamente como aquele quem fez a antropologia abandonar de vez uma teoria antropológica naturalista em prol de uma simbólica, teve sua obra analisada por Althusser nos seguintes termos: "Lévi-Strauss é obrigado a pensá-las [as relações de produção] ou em relação ao "espírito humano", ou em relação ao "cérebro" e ao seu princípio formal comum (binário), ou em relação a um inconsciente social que assegure as funções da sobrevivência na sociedade" (p. 201). 

Os estudos de Lévi-Strauss, seja sobre o parentesco, seja sobre os mitos, poderiam ser caracterizados a partir da necessidades mínimas para a sobrevivência desse ser social: a reprodução dos laços de aliança e reciprocidade, no caso do parentesco, e a reprodução da linguagem, no caso dos mitos, que dão continuidade ao social ao longo do tempo e do espaço, permitem a sua reprodução, sua sobrevivência.

As perguntas de Althusser sobre a obra de Lévi-Strauss: "mas por que esse possível?, e não um outro, é que ocorreu, é portanto real?" (p. 201). De fato, a antropologia de Lévi-Strauss é quase sempre dócil; não que não aluda a conflitos, disputas; mas a tendência de sua teoria é por uma visão, antes de mais nada, capaz de integrar as diferenças culturais em um todo diferente, porém, igualitário, em perfeita consonância com as diretrizes do multiculturalismo do pós-guerra.

"É preciso bastante egocentrismo e ingenuidade", escreve Lévi-Strauss contra Sartre, "para crer que o homem está, todo inteiro, refugiado em um só dos modos históricos ou geográficos de seu ser, enquanto que a verdade do homem reside no sistema de diferenças e de propriedades comuns desses modos" (p. 284). 

A crítica contra o evolucionismo, em Lévi-Strauss, leva-o em direção a uma espécie de ideologia pacifista da cultura, que subestima seus dentes e garras, e para voltar ao termos de Althusser, se desinteressa da pergunta: mas por que o real? Talvez a forma com que Lévi-Strauss minimize a ciência histórica seja parte da sua panaceia contra o evolucionismo, contra a hierarquização entre culturas e povos, mas de qualquer maneira, acaba por lhe trair nesse pequeno ponto cego: como que realidades suplantam outras, como sociedades não só se reproduzem, mas nascem, morrem e matam?

Na página 185 do Pensamento Selvagem Lévi-Strauss tangencia o problema ao se referir a um grupo de 900 sobreviventes de uma trintena de tribos australianas cujo sistema mitológico foi desagregado pela imposição dos modos de vida (da linguagem...) dos ocidentais: "Reagrupados de qualquer maneira num campo governamental, que compreendia (em 1934) umas quarenta casas, dormitórios vigiados e separados para moças e rapazes, uma escola, um hospital, uma prisão, casas de negócio, e onde missionários (ao contrário dos indígenas) podiam viver à farta: num lapso de quatro meses, viram-se desfilar não-conformistas, presbiterianos, Exército da Salvação, anglicanos e católicos romanos..." E na página seguinte: "Em consequência, e se bem que a organização social esteja reduzida ao caos em virtude das novas condições de existência impostas aos indígenas e das pressões leigas e religiosas que sofreram, a atitude especulativa subsiste. Quando não é mais possível manter as interpretações tradicionais, elaboram-se outras, que, como as primeiras, são inspiradas por motivações (no sentido saussuriano) e por esquemas. Estruturas sociais, outrora simplesmente justapostas no espaço, são postas em correspondência, ao mesmo tempo que as classificações animais e vegetais próprias de cada tribo. [...] [as diferentes tribos então] procuram formular regras de equivalências. Não há dúvida que, se o processo de deteriorização viesse a interromper-se, este sincretismo não pudesse servir de ponto de partida a uma nova sociedade, para elaborar um sistema global, cujos aspectos todos se encontrariam ajustados". (p. 186 - 187).

Deteriorização, sincretismo, ajustados: Esse léxico, curiosamente, nos devolve ao universo escritural freyreano, aos seus estudos sobre as interações entre culturas distintas. Se nos estudos de Lévi-Strauss esse processo de interação está recalcado por essa espécie de ideologia multiculturalista, que se contenta com pensar culturas idealmente a-históricas, separadas do devir histórico, Gilberto Freyre irá se aproximar consideravelmente daquilo que Althusser disse estar ausente da antropologia estruturalista: a descrição da realidade material, dos meios de produção. Não apenas referimos à ênfase freyreana naquilo que, em sentido marxista, por excelência representa as análises dos meios de produção da sociedade colonial brasileira: o latifúndio escravocrata e açucareiro - mas também a um aspecto a que poderíamos nos referir como modo de destruição: o "contato dissolvente", diz Freyre, "entre as populações nativas da América, dominados pelo colono ou pelo missionário, a degradação moral foi completa, como sempre acontece ao juntar-se uma cultura, já adiantada, com outra, atrasada".

Darwinismo cultural violento, e também brutal em sua percepção de realidade dos contatos entre culturas: "mesmo que se salvem formas ou acessórios de cultura, perde-se o que Pitt-Rivers considera o potencial, isto é, a capacidade construtora da cultura, o seu élan, o seu ritmo". (p. 167-8).

 

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O capital como cultura no exato sentido imperialista dos jesuítas e missionários que vieram à América e sufocaram a espontaneidade indígena: "o imperialismo econômico da Europa burguesa antecipou-se no religioso dos poderes da S.J., no ardor europeizante dos grandes missionários..." 


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pág. 169: história bicéfala: primeiro, ponto de vista da Igreja - PORÉM (para efetuar a passagem para outra visão do evento) - ponto de vista dos indígenas. 

Responsabilidades; retórica judicativa.


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O imperialismo como dupla destruição da cultura: não apenas no sentido dado por Lévi-Strauss - destruição mitológica, das categorias a priori do pensamento - mas uma destruição materalizada na prática: das instituições, modos de produção e de vida.

O materialismo de Freyre se articula com o de K. Marx, mas sobretudo com o discurso médico e sanitarista: "agentes disgênicos (...) que lhe alteraram o sistema de alimentação e de trabalho, pertubando-lhes o metabolismo; os que introduziram entre eles doenças endêmicas ou epidêmicas; os que lhe comunicaram o uso de aguardente de cana". (p. 170). 

Trata-se de um materialismo que, antes de mais nada, é um estudo da fisiologia física e moral, pois ambos estão associados: a doença se apodera da carne e também do espírito. A moral como extensão do físico, os costumes que apodrecem e se degradam como um defunto exposto ao sol. 

É nesse espaço da antropologia física que se inscreve a economia política de Freyre. A economia escravista e açucareira produz não apenas sintomas sociais, mas sintomas estritamente fisiológicos - físicos e morais.


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A vida que se multiplica desde os meios de produção. O engenho como coração dessa sociedade viciosa. O órgão que alimenta - que gera o ganho, o excedente, capaz de multiplicar os modos de vida colonial. Capaz de espalhar feito um vírus, de destruir os corpos incapazes de adaptar-se a sua presença. 

Freyre instaura um princípio de guerra biológica desde o engenho. E não nos referimos apenas às doenças que atribui ao contato entre raças distintas> não só a destruição dos corpos, mas dos modos de vida. Da cultura. Completo remodelagem do território. Remodelagem também da língua e costume dos povos originários. A história desses povos estavam escrita nos signos dos seus mundos (cf. Lévi-Strauss). Destruir seu mundo é destruir a possibilidade de contá-la.

A máquina de guerra do engenho - que alimenta poderes, que escraviza negros e índios, que se apossa da mata, as bandeiras multiplicando suas artérias para confins geográficos mais distantes, destruindo tudo e reimplantando em seu lugar organismos invasores, que tomam gradualmente posse de seu hospedeiro, e como um cancro mortal, multiplica-se cada vez mais rápido, em progressão geométrica, até que se atinja os limites da geografia, os limites da economia, até que o vírus atinja um nível de equilíbrio com seu hospedeiro.


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Freyre trata demoradamente de pratos à base de mandioca (p. 180-1). Diz que da índia brasileira aprendeu-se diversos quitutes: e ao visitar a Amazônia, área de cultura brasileira mais impregnada de influência cabocla, apesar da primeira impressão da culinária sugerir o exótico, ao tocar-lhes com a língua de imediato reconhecemos um gosto familiar: "sentimos o muito que nos ficou de fundamentalmente agreste no paladar (...); o muito que nos ficou dos nossos antepassados tupis e tapuias" (p. 181)

Como nos Sertões, de Euclides, o avanço virulento da civilização trava combate com a natureza, com as zonas inóspitas e impenetráveis, e ali formam-se espécie de ilhas de história, onde a história universal parece deter-se, contornar-se, e como na Galápagos de Darwin, a natureza pode seguir um curso distinto, uma segunda linha do tempo. Que graça sentem os antropólogos ao adentrar nesses tempos remotos, intocados pela civilização! E onde Lévi-Strauss planeja encontrar a outridade total (ver Tristes Trópicos), Freyre goza do encontro com a identidade, e proustianamente saboreia quitutes amazônicos como quem reencontra uma parte perdida de si mesmo.

O paladar oferece uma memória não-escriturária, feita e transmitida, primeiro, pela própria comida (e no limite, em sua transcrição sob forma de receita); e segundo, nos corpos, nesse gênero de memória sensitiva que revela-se ao paladar, ao olfato, à audição... E que desencadeia os mais ricos e diversos e fantasiosos processos mnemônicos!

A casa-grande é o grande laboratório das culturas. Em que branco, preto, índio, todos juntos, introduzem sua contribuição à civilização brasileira... E as diferentes linhagens, de alguma forma, entram de conluio, todas juntas, em um novo corpo, essa meta-raça, capaz de guardar a lembrança de todas as outras... E ao comer pratos amazônicos, meu deus!, é como se o caboclo Freyre urrasse canções de guerra e pedisse uma rede para deitar! Uma simples mordida e essa parte primitiva, selvagem, tapuia, que nele fora degradada e esquecida pela civilização, pudesse simplesmente despertar...

Dupla pergunta: primeiro, o que a culinária conserva de indígena? Essa é uma pergunta razoável, pois uma história da culinária poderia facilmente (e Freyre, mesmo que brevemente, rudemente, executa ou insinua a possibilidade desse trabalho) reunir as tecnologias, receitas, ingredientes cultivadas pelos povos originários, e traçar a história de suas transformações, sincretismos e destruições dentro do que veio a ser a virulenta história da culinária brasileira. A segunda pergunta é mais comprometedora e árdua de responder: Mas o que o corpo de Freyre conserva de indígena? De onde veem essa familiaridade ancestral que liga tão afetuosamente seu paladar ao do tupi?

Como os significantes, as receitas possuem significados arbitrários; ou melhor: historicamente fundados. O gosto, assim com a língua, não trás em si nenhuma presença. Não há lógos inscrito: tudo que ocorre é remeter a uma remeça de significantes...

A pergunta: Quando inventou-se a culinária indígena? Quando ao comer a tapioca, o pirarucu, sentiu-se ressoar essa coisa estranha, étnica, que nos remete a uma teia de textos - relatos de viagens, etnografias, a própria historiografia de Freyre e de tantos outros - que invocam a presença nostálgica daquilo que só pode existir por meio da ausência, da morte, do apagamento: o passado indígena? Que fantasia é essa que passamos a gozar junto do gozo do macapatá, do beiju, do tarubá? Gosto que agrade talvez ao paladar, mas já os simples significantes desprovido de qualquer sentido já são capazes de nos saciar de nosso desejo de tupi, desejo de tapuia. O que são todos esses ídolos erguidos em honra da antropologia senão prova da sedução que esse outro lhe provocou depois de morto?

A invenção do brasileiro é singular: ao mesmo tempo é invenção de identidade e de alteridade radical. O outro e o mesmo revelado no mesmo símbolo: pretos, índios, brancos, reunidos dentro desse corpo freyreano, crescido e formado em casa-grandes, que antes de ser filho tríbio, cruza que preserva no corpo brasileiro a memória ancestral do português com o indígena, com o africano, é filho de um discurso, de uma longa e coletiva elaboração sobre a origem, Freyre se aproxima das mais variadas escrituras - e sua obra incorpora antropologias variadas, estudos médicos, crônicas, e mesmo costumes orais, saberes que se transmitem sem a letra impressa, mas todas essas escrituras múltiplicas estão repetidamente atravessadas como um vício de fala que retorna feito vírgula pelo discurso da origem, da presença ancestral; esse discurso, antes de ser continuação das substâncias que diz expressar, ao contrário, possui geografia e idade específica.


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