Era uma noite de sábado. A família, depois do jantar, estava reunida na sala. Os ventiladores ligados para amenizar o calor, e a mesinha de centro ocupada por copos. O pai, Oswald, bebia uísque com gelo, e contava uma história com sua voz lenta.
- Eu tinha quinze, dezesseis. Não lembro bem.
- Tinha dezesseis, Oswald, interrompeu a mãe para lembrá-lo.
Deusa já tinha ouvido essa história pelo menos uma dezena de vezes, e começava a se aborrecer quando Oswald retornava a ela. A primeira vez que ele contou, Deusa lembrava bem, foi depois de terem dormido juntos no alto de um morro. Estavam nus, de braços dados, e assistiam o sol nascer. Ali, aquela história, com seus elementos vexatórios, pareceram uma confissão melancólica e mesmo heróica. Depois de contá-la, com os olhos baixos e mareados, Deusa cobriu-lhe de beijos, e também chorando, sussurrou que lhe amava e que tudo ficaria bem.
Essa mesma história, que antes parecia indício do amor existente entre Oswald e Deusa, com o tempo, começou a ganhar outros contornos. Antes, ao contá-la, Oswald sofria, e até desfalecia em lágrimas. Tudo isso, claro, ocorria somente na frente de Deusa. Seus dois filhos quase nunca assistiram o pai chorar (a única exceção foi no funeral do avô). A mãe, essa era mais do que experimentada nos transportes emotivos do pai, e conhecia as suas lágrimas como ninguém mais. Somente deitado no colo dela que ele era capaz de chorar.
Deusa permanecia em silêncio, distraidamente acariciando a mão de Oswald, enquanto ele contava a mesma história, agora para os filhos e para alguns amigos da família, explicando as motivações de seu pai, que lhe obrigou a sair da casa, e dos anos que morou no internato, e como não tinha amigos, e todo o tempo bom que tinha era passado com os livros. Todo tempo fora da sala de aula que não passava com os outros meninos, Oswald passava na biblioteca.
- Companhia muitas vezes ingrata, disse ele, olhando para o filho mais velho, Narciso, pois os livros, apesar de dizer muito à nosso respeito, custam também a ouvir. As suas palavras podem ceder à qualquer significado, é verdade, mas ao mesmo tempo só parecem ecoar aquilo que já está escrito... E estamos, por isso, sempre reaprendendo a reler...
- Chega de filosofemas, Oswald, conte logo a história!, disse Arnold, um dos amigos, em tom de brincadeira.
- Oswald não perde a mania de intelectual!, disse Deusa, rindo para Arnold. Ele quer sempre ser o primeiro da turma, você sabe bem, disse com um sorrisinho, balançando negativamente a cabeça, e o cigarro equilibrado entre o indicador e médio.
Quem esperasse que a leitura fizesse de Oswald um bom aluno estará enganado. Quer dizer, é verdade que durante muitos anos fez sim, e no colégio tirava as melhores notas. Isso, talvez, acentuasse a sua solidão. Os outros meninos debochavam dele. Vez ou outra, batiam. E isso tudo só acentuava a sensação de distância que Oswald sentia em relação aos demais. Tinha certeza que não era um deles. Quando entrou para a universidade, manteve o seu hábito solitário, aprendido nos anos de internato, mas a verdade é que havia se desinteressado de tirar boas notas; bastava o suficiente para passar nas matérias e obter o diploma. Os ensinamentos dos professores, se explicava para a sua audiência, hoje já não lhe importava em nada: a experiência e o estudo provou que todos eram vazios e falsos, incapazes de ensinar. A pedagogia é uma mentira burguesa. Se existia algum lugar para se aprender, talvez fosse nos livros, não que fossem mais ou menos verdadeiros, pois eram palavras torpes de um mestre, salas de aulas impressas e emolduradas em capas. O que importa nos livros, isso falou olhando ao primogênito, era a necessidade de silêncio, de alheamento.
- Sim, é melhor estar sozinho para pensar, disse Wanda, a esposa de Arnold. Os demais às vezes falsificam o nosso pensamento. Começamos a pensar para agradar, para deleitar, e não para a verdade.
- Para a verdade ou para o que importa a nós mesmos, disse Deusa, enquanto bebia do uísque do marido.
Arnold deu uma gargalhada alta e olhou para os dois meninos.
- Não aprendam essa obsessão do seu pai com a verdade!, disse. É melhor pensar em coisas mais importantes!
- Como o quê?, perguntou timidamente o mais novo, de nome Flaubert.
- Mulheres! Dinheiro! Bebidas! Prazeres!, disse Arnold, e todos riram, mesmo que contra à vontade. Menos Oswald, que seguia olhando para o nada, mas ninguém - com exceção de Narciso, eu diria - pareceu reparar em como o pai estava distante.
Pensava no incidente ocorrido às onze e trinta e dois de um sábado à noite. Há mais de quarenta anos, mas que ainda se lembrava perfeitamente. Oswald estava sentado na cadeira da biblioteca, sozinho. O bibliotecário era amigo de Oswald, e deixou a chave para que pudesse estudar até mais tarde.
- Veja bem, disse ele, abotoando a jaqueta, eu te-te-tenho um encontro hoje com uma senho-senhorita e-e-e-e-e... bem!, e por isso e por isso e por isso eu vo-vo-vou precisar sair mais cedo e deixar a chave a chave com você, Kristiva.
O bibliotecário abotoou o último botão e olhou no espelho. O jaquetão deixou Borges maior e mais gordo do que nunca. Ajeitou o chapéu no alto da cabeça e olhou o reflexo de Oswald de um jeito estranho, como se esperasse encontrar nele alguma aprovação. Estava inseguro, pois se achava não apenas feio, mas grotesco. Discretamente (o que era impossível), cheirou sua axila com um movimento rápido e desengonçado. Por fim, acendeu um cigarro, entregou a chave a Oswald Kristiva e saiu apressado, naquele seu passo desajeitado de manco, dizendo-se atrasado. Oswald sacudiu negativamente a cabeça, com pena do pobrezinho, e voltou para a leitura, mas já não conseguia se concentrar nas palavras. Foi então até o banheiro e cheirou um pó branco com uma cédula de dinheiro. Voltou para a biblioteca e, movido pela droga, continuou a ler, sacudindo energicamente a perna direita e repetindo com os lábios, sem emitir nenhum som, cada uma das palavras:
"Tudo é importante, sem dúvida, porque Deus criou e Deus pode criar qualquer coisa. No entanto, por essa mesma razão, nada pode ser importante, afinal, Ele pode criar tudo de tudo. Que importância teria então a criação de uma alma tola e moleirona como a minha?, perguntou Blaise para seu namorado, enquanto fazia força para cagar. Ele não olhou em seus olhos e passou a dissertar sobre o Bem: É uma coisa divertida considerar que há no mundo pessoas que, tendo renunciado a todas as leis de Deus e da natureza, façam outras às quais obedecem cegamente, como, por exemplo, os ladrões, os soldados, os médicos, etc., e assim, também, os lógicos..."
- Acordado ainda, senhor Kristiva?, interrompeu uma voz seca. Uma chama se acendeu e revelou um velho, coberto por uma batina surrada, segurando em uma mão um pratinho com uma vela e na outra um isqueiro. Ele fedia.
- Estava lendo, padre Gilberto, disse Oswald, e com um rápido movimento ocultou o livro que lia por baixo de uma enorme edição comentada da Retórica de Aristóteles. Oswald esfregou a narina com as costas da mão. Seus olhos vidrados olharam para o rosto sombrio do padre.
A mesa estava cheia de livros abertos, um por cima do outro, e a manobra teria sido eficaz se o faro do padre, já muito experimentado, não tivesse percebido que ali claramente havia algo de errado. Aproximou e viu o livro de Aristóteles aberto na página 389. Gilberto se aproximou, foi para trás de Oswald e, por cima do ombro do rapaz, leu em voz alta:
- "Em termos de caráter, os jovens são propensos a desejos passionais e inclinados a fazer o que desejam. Entre esses desejos há os corporais, sobretudo os que se ligam ao amor, em face dos quais são incapazes de dominar-se. Volúveis e inconstantes nos seus desejos, deles rápido se fartam. Tão depressa desejam com ardor como deixam de desejar, assemelhando-se seus ímpetos aos ataques de fome e sede de pessoas doentes"...
E o padre Gilberto colocou as mãos nos ombros de Oswald.
- Percebe, Oswald, como o desejo é uma doença? Um cancro maligno que se reproduz dentro de você? E que você deve simplesmente arremessar para fora, como o vômito? E com seus dedos fortes e ossudos, apertou os músculos tensos de Oswald.
O rapaz se controlava para não tremer, fingia normalidade.
- Padre, não sei se estou entendendo bem o que quer dizer, disse entre os dentes, e fez um movimento como se quisesse esquivar os ombros das mãos dele, mas nada pode contra seu apertão forte, que lhe apertava como uma garra de caranguejo. Quando Oswald aceitou e medroso se recostou na cadeira, o padre passou a lentamente massagear Oswald com uma delicadeza quase que oriental
- O que mais está lendo, senhor Kristiva?
- Ah, também estou lendo a... E Oswald puxou um livro qualquer e mostrou a capa.
- Os sertões! Euclides da Cunha! Poderia me ler um trecho, senhor Kristiva?, disse, em tom amigável.
Hesitante, com a voz tremendo, Oswald procurou um trecho qualquer e leu, sem que o padre interrompesse a diabólica massagem:
- "O homem do sertão, encouraçado e bruto, tinha parceiros porventura mais-mais perigosos..."
Oswald se interrompeu pois o padre passou a apertar seus ombros com força, e precisou se controlar para não emitir um guincho de dor.
- Continue! Continue!, encorajou Gilberto, sorrindo, enquanto enfiava as unhas na carne do aluno.
- "Va-valerá a pena defini-los? A-a força portentosa da hereditariedade, aqui, como em toda a parte e em todos os tempos, arrasta para os meios mais adiantados — enluvados e encobertos de tênue verniz de cultura — trogloditas completos. Se o curso normal da civilização em geral os contém, e os domina, e os manieta, e os inutiliza, e a pouco e pouco os destrói, recalcando-os na penumbra de uma existência inútil, de onde os arranca, às vezes, a curiosidade dos sociólogos extravagantes, ou as pesquisas da psiquiatria, sempre que um abalo profundo lhes afrouxa em torno a coesão das leis eles surgem e invadem escandalosamente a História. São o reverso fatal dos acontecimentos, o claro-escuro indispensável aos fatos de maior vulto..." E as mãos do padre desceram na direção de seu tronco.
Na sala de jantar, a história foi interrompida exatamente aí. Os filhos ficaram em silêncio. O clima era desagradável, triste. Arnold fez um comentário de consolo e deu um tapinha do ombro do amigo. Oswald disse que não era nada, que aquilo já tinha passado.
Deusa segurava a mão de Oswald e pensava nos detalhes que tinha contado para ela, somente para ela, e que aqui permaneceram nunca ditos. Em como o padre apagou a luz da vela e, na penumbra, tirou a roupa do jovem rapaz. E ela sabia também que a violência se repetiu algumas vezes.
- Alguns meses depois, disse Oswald, olhando para o copo vazio, o padre morreu de algum problema cardíaco. Encontraram nas suas coisas várias fotos de vários meninos nus. E diários íntimos. Dizem que seu conteúdo era horrível.
Deusa olhou o rosto do marido e pareceu que ele estava quase que sorrindo, ou então que se controlava para não sorrir. E lembrou daquela noite, a da confissão, e pensou que agora tudo estava diferente. O que havia acontecido? Respirou fundo, soltou a mão de Oswald e disse para todos que iria deitar. Deu boa noite, beijou os filhos e foi para o quarto. Duas horas depois, quando Oswald deitou ao seu lado, fingiu que dormia.
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