Estava roubando viciados no metrô com um amigo, e sabe, a gente não ia nada mal. Fazíamos em média quinze centavos por noite, começando no fim da tarde e terminando logo ao amanhecer. Logo antes do sol nascer, essa é a melhor hora para assaltar. Não que seja a hora mais rentável. Essas são lá pelas duas, três da manhã, em que os inexperientes estão passando mal de tão bêbados, e que a maior parte das pessoas volta para casa. Roubar ao alvorecer é mais belo, digamos assim, quando você já sente a necessidade de chegar em casa e descansar depois de um longo dia de trabalho.
Estava dando um tempo na heroína porque já estava ficando sem veias. Dormia três ou quatro horas por noite e tomava morfina. Ainda estava escuro. Fui até o balcão para tomar uma xícara de café. "Bar do Joel", li no letreiro. Estava morrendo de cansaço, só queria dormir. Bebo o café requentado da máquina, um guardanapo sob a xícara. Dizem que essa é a marca de alguém que passa muito tempo sentado em cafeterias e lanchonetes.
"O que podemos fazer?", Nick, vestido marinheiro, me perguntou em um sussurro.
Me indicou com os olhos aquela garota fantasiada com chifres de demônio, resmungando: "Eles sabem que vamos esperar... Sim, eles sabem que vamos esperar...". Era Deusa, semi-nua em vestes de carnaval, repetindo sobre algum assunto que eu já nem sabia mais qual era.
Na verdade, estava distraída. Havia um garoto logo mais adiante no balcão, uma criança de rosto magro, olhos completamente dilatados. Sem camisa, aquele tumor nojento exposto em seu abdômen nu.
Seu rosto era familiar. eus olhos piscaram na minha direção.. Certeza que já tinha visto antes. Talvez do salão de bilhar em que comprava chá durante uma época. Ou nas redondezas de alguma estação de metrô, de alguma cafeteria noturna, ou até das pensões sujas em que eu dormia. Naquela época, contudo, vivia entre a casa de alguns amigos, toda a minha roupa precisando caber em uma mala de viagem. Naquela noite, dormiria na casa de Deusa. Não poderia abrigar o menininho. Eu acenei e fui para uma mesa. Ele sentou-se em frente a mim, as mãozinhas segurando uma caixa de bala.
Vontade de dormir. Troca a música da cafeteria: Version, do Fugazi. Lá fora já era completamente dia, a luz atravessava pela porta do bar quente e minúsculo, deixando seus móveis metálicos e clientes às claras. Podia ver o rosto de cada um, estudar com calma seu tipo e fisionomia, mas como quebrei meus óculos escuros, tive medo de ser pega. Melhor não olhar muito para ninguém.
Olho a televisão ligada. Jogo de futebol, o funcionário estava assistindo. Eu estava sem relógio. O tempo voou desde as quatro, a última vez que perguntei as horas.
"São que horas, Deusa", perguntei.
"O cara está três horas atrasado", respondeu.
"Você me compra um pão?", pediu a criança.
"Só tenho vinte e cinto centavos", disse timidamente para o menininho aleijado, e lhe entreguei a quantia referida.
"Nada menos que um níquel!", ele resmungou, e fez que ia embora, o respondão. Era bonitão.
"Diga, garoto", eu lhe disse, "conheço uma velha tia, uma médica que pode cuidar de você...".
Ele não entendeu. "Pegue o telefone", eu disse, oferecendo meu aparelho.
Ele me entregou a caixinha de balas e pegou todo hesitante o celular, como se não soubesse bem lidar com um. "Vamos", tentei encorajá-lo. "É só apertar o botão verde para fazer a ligação, e vamos encontrá-la agora mesmo'".
Por volta desta época, em Lexington, conheci um alfaiate italiano que também era traficante. Ele me fez uma boa oferta de cocaína. A qualidade da sua droga era boa no início, mas com o tempo foi ficando pior. Estava sempre com um mesmo calção, a marca Tony bem visível sobre o joelho esquerdo. Era conhecido por todos como "Short Tony".
Short Tony gostava, digamos, de cuidar de meninos. Certa vez, um garoto de quatorze anos amanheceu doente na East St., Louis e ele cuidou dele. A história do que se passou no apartamento de Short Tony com o aleijado é a seguinte: A criança se jogou sobre a pia, pressionando o tumor cortado ao meio contra a porcelana fria. Short Tony se jogou sobre o corpo da criança, rindo. Os excrementos começaram a escorrer para fora dos shorts, e a memória da cena termina dissolvida pelo cheiro de muco retal e sabão carbólico, pois havíamos acabado de dar um banho no moleque. Olhei pela janelinha do banheiro e vi o cheiro do amanhecer de verão vindo de um terreno vago.
"Vou esperar aqui... Não quero que Tony repare em mim...", eu disse mais cedo, ao deixar uma criança doente no endereço de Short Tony. Eles dois fizeram aquilo cinco vezes debaixo do chuveiro. Short Tony me leu os versos de Lautréamont traduzidos por ele mesmo: "olhas ensaboadas de ovo, entranhas tremores sísmicos divididos por rajadas de porra". E riu. Eu disse que estava com sono e fui embora.
Cheguei na rua, tudo nítido e claro como depois de dias de chuva. Numa cabine lendo um jornal, Nick, seu rosto amarelado como marfim sob a luz do sol. Eu entreguei dois níqueis a ele por baixo da mesa. Fazendo minha parte para manter seu vício. Ele me ofereceu o pó cinza, e eu recusei. Disse que precisava ir.
Colado do adesivo de um carro, li: INVADIR. DESTRUIR. OCUPAR. Lembrei de uns versos : "Os rostos jovens em chamas alcoólicas azuis". De um escritor que não lembro o nome. Pego o metrô. Enfim em casa. Deusa vai imediatamente dormir. Nick também estava dormindo com a gente. Contamos o lucro da noite, três celulares, além de quatro notas de cinquenta reais que peguei da carteira de um gringo. Ele vai dormir no sofá da sala e eu abro o computador. Mensagem enorme de mamãe, tem mais de dois minutos. Coloco para tocar pela metade, a voz acelerada em 2x:
"...E álcool, vocês, porra, não podem esperar Pen-Indef", disse, "bando de junkies famintos você trouxe aqui em casa queimou uma colher. É tudo o que preciso pra entregar vocês. Uma colher queimada e a polícia vai estar na sua cola de".
Paro a mensagem, já era o suficiente. Respondo com um áudio apressado: "O discurso da doente e viciada... Olha, eu estou morta de cansaço, mãe. Não quero brigar, vou dormir, bom dia". E fui dormir.
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