sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

OS NOVOS ESCRITORES

Se fosse dizer que leio pouco seria simplesmente uma mentira, pois se perguntarmos para qualquer sujeito a quantidade de palavras que ele consume em um dia, em uma semana, em um mês, é estatisticamente muito provável que eu consuma muito mais, já que sou um acadêmico e também porque escrevo, e quem escreve costuma ler. Contudo, dizer que leio pouco também de certa forma é verdade, se mantermos em vista a dieta com que os antigos escritores e acadêmicos foram formados: se levarmos em conta os diários de Ricardo Piglia, um escritor que até pouco tempo estava vivo, parece que ele tinha a capacidade de devorar uma novela ou quase uma novela por dia, dependendo da dificuldade de sua leitura, eu imagino - para ler muito é também preciso ler livros fáceis, livros corridos, porcarias ou semi-porcarias, produtos com a linguagem já-digerida, junk literature, ler não só a trabalho, mas a descanso - e ler um livro por dia, pelo que me parece, é uma cifra capaz de impressionar a qualquer aspirante a escritor ou acadêmico.

E estamos falando de Ricardo Piglia, um escritor já formado em meio a uma sociedade industrial em que a imagem do cinema e da fotografia já devastava a tipografia, a letra impressa; se lermos os livros de Piglia não por acaso flagramos nele recorrentemente uma ânsia em fazer a prosa ganhar velocidade, como se as letras pudessem acompanhar a imagem-movimento do cinema (talvez possam) (em Alvo Noturno, se não me engano o último romance de Piglia, como o vanguardista que experimentou demais as linguagens literárias do século XX, que cansou-se e que foi tomado por certa nostalgia, o gênero policial, sua especializada, é amalgamada - a execução é perfeita - com a linguagem mais ou menos típica da novela do dezenove, narração lenta, descrição dos tipos de uma cidadezinha de província, etc).

Se confiarmos nos diários de Piglia, ele começou a ler quando adolescente, para impressionar uma menina da escola. Voltemos no tempo mais ainda e pensemos em Borges, educado desde menininho a ler novelas, a escrever teatro, a traduzir poesia. Temos o ser humano em forma ultra-especializada de leitor-escritor, uma criancinha que desde sua mais tenra lembrança foi enfiada entre as páginas de um livro. Não impressionaria ninguém que esse ciborgue perfeito, nos momentos que funcionava adequadamente, é claro, lesse até mais que um livro por dia. Só se espanta com a nostalgia que Borges sentia pela aventura, pela guerra, pelos selvagens, pelos gaúchos, aqueles que não conhecem a sua obra e veem na figura de Borges o avatar da erudição feliz e bem-realizada. Mas não: mesmo esse perfeito ciborgue literário ressentiu-se, ou melhor, sentiu-se perdido entre os tantos livros, sentiu ter perdido tempo demais lendo, quando poderia estar fazendo outra coisa? (que coisa?, pergunta-se, e vagamente responde-se: vivendo - trauma tão século XIX esse, opor vida e literatura...)

Na infância tive contato e retirei muita felicidade de leituras esporádicas - gibis, livros de fantasia e terror -, mas só comecei a ler mesmo quando adulto, quando ingressei na graduação. Fui civilizado como leitor pela universidade, e isso deve explicar o como a teoria se envolve com minha prática literária: aprendi a ler literatura desde o lugar do profissional, do crítico literário, do filósofo, do historiador, e o gozo que retiro da leitura é também um gozo de trabalho - muitas vezes, por isso mesmo, um gozo difícil de extrair, pois um gozo dispendioso, exaustivo, e que me faz idealizar uma leitura inocente, despreocupada, como as que eu fazia na infância (Borges também idealizou a leitura infantil como uma meta a ser alcançada depois de velho, ou melhor, depois de ter se formalizado como um profissional da literatura, um crítico, um estudioso).

Se leio pouco, é porque meu corpo é incapaz de sustentar um ritmo e volume de leitura similar aos desses antepassados em que me espelho e me mesuro. Faça o que você puder, mas você muito dificilmente, talvez às custas de dura disciplina seja possível, mas provavelmente alguém no século XXI nunca lerá tanto quanto leu-se no XIX e XX. Não que eu queira simplesmente ler por ler: quero ler pois quero conhecer, quero aprender, quero me tornar mais inteligente, escrever melhor, todos esses sonhos de aperfeiçoamento corporativo que nós, funcionários do espírito, condensamos em nossas fantasias de se alcançar a genialidade (fantasia fútil, mas incontornável: melhor mergulhar no princípio de realidade e se tornar um operário da escrita, é claro, mas ai, como deve ser gostoso atingir esse zen da genialidade...)

É preciso, portanto, inventar novos métodos de escrita, e até métodos de pensamento, capazes de funcionar em máquinas anacrônicas como as nossas: queremos ler, ler até o corpo desmontar, pois é essa a dieta espiritual que nos foi ensinada. Ler cada vez mais e assim até o infinito: e mesmo assim nunca leremos o suficiente, pelo menos não eu, um garotinho de terceiro mundo criado em uma dieta de desenho animado e vídeos de youtube, um sujeito formado em um mundo que bane a cada dia a palavra escrita, ou que lhe redimensiona para outras configurações cada vez mais distante do papel impresso, do livro, do jornal... As formas materiais foram transformadas: inútil querermos manter diante delas o mesmo espírito do século passado...

E ainda assim, a arte quer continuar a ser feita. Somos herdeiros de uma maldição: fazer arte que o passado nos entregou, mas fazê-la contrafeito de corpo, inadaptados, degenerados. Todos nós, aleijados tentando esculpir a forma angelical dos santos.

A primeira conclusão é óbvia: a arte aleijada será feita, basta movermos nossos membros e colocarmos as palavras no papel. A imperfeição romântica será o espaço onde ocorrerá a invenção, e quanto a isso não temos escolha, pelo menos enquanto não alcançarmos a sapiência de quem sabe realizar as formas prontas, entregues pelos mestres dos passados, e saibamos a arte da novela, do fluxo de consciência, etc.

A segunda conclusão, no entanto, talvez seja mais importante: que essas novas descobertas precisaram ser cifradas em palavras, ou pelo menos transmitidas de alguma forma. Que precisaremos formar novas escolas para formar novos escritores de um novo tempo. E se a conclusão é óbvia, simples, sua execução, contudo, ainda está praticamente a ser feita por inteiro. Algumas exceções: Burroughs, Gysin, Aira.

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