BURROUGHS: Eu não sei para onde a ficção se direciona normalmente, mas deliberadamente me dirijo para a área a que chamamos de sonhos. O que é exatamente um sonho? Uma certa justaposição de palavras e imagens. Recentemente, fiz muitos experimentos com álbuns de recortes. Leio algo no jornal que me lembra ou tem relação com algo que escrevi. Recorto a imagem ou o artigo e colo-o em um álbum ao lado de palavras do meu livro. Ou estou caminhando pela rua e, de repente, vejo uma cena do meu livro, tiro uma fotografia e coloco-a no álbum. Descobri que, ao preparar uma página, quase sempre sonho naquela noite algo relacionado a essa justaposição de palavras e imagens. Em outras palavras, tenho me interessado precisamente em como as palavras e imagens circulam em linhas de associação muito, muito complexas. Faço muitos exercícios no que chamo de viagem no tempo, ao tomar coordenadas, como o que fotografei no trem, o que estava pensando na época, o que estava lendo e o que escrevi; tudo isso para ver o quão completamente posso projetar-me de volta para aquele ponto no tempo.
ENTREVISTADOR: Em Nova Express você indica que o silêncio é um estado desejável.
BURROUGHS: O estado mais desejável. Em certo sentido, o uso especial de palavras e imagens pode conduzir ao silêncio. Os álbuns de recortes e viagens no tempo são exercícios para expandir a consciência, ensinar-me a pensar em blocos de associação em vez de palavras. Recentemente, tenho dedicado um pouco de tempo ao estudo de sistemas hieroglíficos, tanto o egípcio quanto o maia. Um bloco inteiro de associações - boom! - assim mesmo! As palavras - pelo menos da forma como as usamos - podem atrapalhar o que eu chamo de experiência não-corporal. É hora de pensarmos em deixar o corpo para trás.
ENTREVISTADOR: Marshall McLuhan disse que você acreditava que a heroína era necessária para transformar o corpo humano em um ambiente que inclua o universo. Mas pelo que você me disse, você não tem interesse em transformar o corpo em um ambiente.
BURROUGHS: NÃO, a droga estreita a consciência. O único benefício para mim como escritor (além de me colocar em contato com o mundo carnavalesco) veio depois que eu parei. O que eu quero fazer é aprender a ver mais do que está lá fora, olhar para fora, alcançar o máximo possível de consciência completa dos arredores. Beckett quer ir para dentro. Primeiro ele estava em uma garrafa, e agora está na lama. Eu estou apontando para outra direção: para fora.
ENTREVISTADOR: Você tem sido capaz de pensar por um tempo em imagens, com a voz interior silenciosa?
BURROUGHS: Estou me tornando mais proficiente nisso, em parte através do meu trabalho com os álbuns de recortes, traduzindo as conexões entre palavras e imagens. Experimente isso: memorize cuidadosamente o significado de uma passagem, então leia; você descobrirá que pode realmente lê-la sem as palavras fazerem qualquer som na mente. É uma experiência extraordinária, e que se manifestará em sonhos. Quando você começar a pensar em imagens, sem palavras, está no caminho certo.
ENTREVISTADOR: Por que o estado sem palavras é tão desejável?
BURROUGHS: Acho que é a tendência evolutiva. Acho que as palavras são um meio de se fazer as coisas, mas um meio um pouco arcaico e desajeitado, que será deixado de lado eventualmente, provavelmente mais cedo do que pensamos. Isso é algo que acontecerá na era espacial. A maioria dos escritores sérios se recusa a se disponibilizar às coisas que a tecnologia está fazendo. Nunca fui capaz de entender esse tipo de medo. Muitos deles têm medo de gravadores e a ideia de usar qualquer meio mecânico para fins literários parece-lhes algum tipo de sacrilégio. Essa é uma objeção aos cut-ups. Tem havido muito disso, uma espécie de reverência supersticiosa pela palavra. Meu Deus, eles dizem, você não pode cortar essas palavras. Por que não posso? Acho muito mais fácil despertar o interesse nos cut-ups das pessoas que não são escritoras - médicos, advogados ou engenheiros, qualquer pessoa aberta de mente e razoavelmente inteligente - do que nas que são.
ENTREVISTADOR: Como você se interessou pela técnica de cut-up?
BURROUGHS: Um amigo, Brion Gysin, um poeta e pintor americano que vive na Europa há trinta anos, foi, pelo que eu saiba, o primeiro a criar cut-ups. Seu poema "Minutes to Go" foi transmitido pela BBC e posteriormente publicado em um panfleto. Eu estava em Paris no verão de 1960; isso foi após a publicação lá de Naked Lunch. Fiquei interessado nas possibilidades dessa técnica e comecei a experimentar por mim mesmo. É claro que, quando você pensa nisso, "The Waste Land" foi a primeira grande colagem de cut-up, e Tristan Tzara havia feito algo parecido. Dos Passos usou a mesma ideia nas sequências de "The Camera Eye" em U.S.A. Eu senti que estava trabalhando na direção do mesmo objetivo; assim, foi uma grande revelação para mim quando vi isso sendo feito.
ENTREVISTADOR: O que os cut-ups oferecem ao leitor que a narrativa convencional não oferece?
BURROUGHS: Qualquer passagem narrativa ou passagem com imagens poéticas está sujeita a qualquer número de variações, todas as quais podem ser interessantes e válidas por si só. Uma página de Rimbaud cortada e rearranjada lhe dará imagens completamente novas. Imagens de Rimbaud - imagens reais de Rimbaud - mas novas.
ENTREVISTADOR: Você lamenta o acúmulo de imagens e, ao mesmo tempo, parece estar procurando novas.
BURROUGHS: Sim, faz parte do paradoxo de qualquer um que trabalhe com palavras e imagens, e afinal, é isso que um escritor ainda está fazendo. Um pintor também. Os cortes estabelecem novas conexões entre imagens, e a amplitude da visão consequentemente se expande.
ENTREVISTADOR: Em vez de se dar ao trabalho de trabalhar com tesouras e todos aqueles pedaços de papel, você não poderia obter o mesmo efeito simplesmente associando livremente na máquina de escrever?
BURROUGHS: A mente não pode operar dessa forma. Agora, por exemplo, se eu quisesse fazer um cut-up nisso aqui [pegando uma cópia da Nation], há muitas maneiras de fazê-lo. Eu poderia ler atravessando as colunas [cross-column]; eu poderia dizer: "Os nervos dos homens de hoje nos cercam. Cada extensão tecnológica que se foi para fora é elétrica e envolve um ato de ambiente coletivo. O próprio sistema de ambiente nervoso humano pode ser reprogramado com todos os seus valores privados e sociais pois ele é conteúdo. Ele programa logicamente tão prontamente quanto qualquer rede de rádio é devorada pelo novo ambiente. A ordem sensorial". Você descobre que muitas vezes faz tanto sentido quanto o original. Você aprende a deixar de fora palavras e a fazer conexões. [Gesticulando] Suponha que eu deveria cortar isso no meio aqui, e colocar isso aqui em cima. Sua mente simplesmente não poderia gerenciá-lo. É como tentar manter muitas jogadas de xadrez na mente, você simplesmente não poderia fazê-lo. Os mecanismos mentais de repressão e seleção também estão agindo contra você.
ENTREVISTADOR: Você acredita que uma audiência eventualmente pode ser treinada para responder aos cut-ups?
BURROUGHS: Claro, porque os cut-ups tornam explícito um processo psico-sensorial que de qualquer maneira está sempre acontecendo. Alguém está lendo um jornal e seus olhos seguem a coluna de maneira aristotélica, uma ideia e uma frase de cada vez. Mas subliminarmente ele está lendo as colunas ao lado e está ciente da pessoa sentada ao lado dele. Isso é um cut-up. Eu estava sentado em uma lanchonete em Nova York comendo meus donuts e café. Pensando que se sente um pouco enclausurado em Nova York, é como viver em uma série de caixas. Olhei para fora da janela e havia um grande caminhão de Yale. Isso é cut-up - uma justaposição do que está acontecendo lá fora e do que você está pensando. Faço isso como prática enquanto ando na rua. Vou dizer, quando cheguei aqui vi aquele sinal, eu estava pensando justamente nisso, e quando voltar para casa, digitarei tudo isso. Parte desse material eu uso e parte não. Eu tenho literalmente milhares de páginas de notas aqui, cruas, e também mantenho um diário. Em certo sentido, é viajar no tempo.
A maioria das pessoas não vê o que está acontecendo ao seu redor. Essa é a minha mensagem principal para escritores: Pelo amor de Deus, mantenha os olhos abertos. Observe o que está acontecendo ao seu redor. Quero dizer, eu ando na rua com amigos. Eu pergunto: "Você viu ele, aquela pessoa que acabou de passar?" Não, eles não lhe notaram. Eu tive um tempo muito agradável no trem vindo pra cá. Eu não viajava de trem há anos. Descobri que não havia salas de estar. Eu peguei um quarto para poder instalar minha máquina de escrever e olhar pela janela. Eu também estava tirando fotos. Também anotei todos os indícios, e o que mais estivesse pensando na época, sabe. E tive algumas justaposições extraordinárias. Por exemplo, um amigo meu tem um loft em Nova York. Ele disse: "Toda vez que saímos de casa e voltamos, se deixarmos a porta do banheiro aberta, há um rato na casa." Eu olho para fora da janela, há a Able Pest Control [uma empresa de controle de pragas].
ENTREVISTADOR: A única falha no argumento dos cut-ups parece estar na base linguística em que operamos, a simples frase declarativa. Vai levar muito para mudar isso.
BURROUGHS: Sim, infelizmente é um dos grandes erros do pensamento ocidental, toda a proposição de ser ou não ser. Você se lembra de Korzybski e sua ideia de lógica não-aristotélica. O pensamento de ser ou não ser simplesmente não é um pensamento preciso. As coisas não ocorrem dessa forma e sinto que a construção aristotélica é uma das grandes amarras da civilização ocidental. Os cut-ups são um movimento contra isso. Eu imagino que seria muito mais fácil encontrar aceitação dos cut-ups, possivelmente, pelos chineses, porque já existem muitas maneiras de ler qualquer ideograma dado. Já é um cut-up.
ENTREVISTADOR: O que acontecerá com o enredo linear na ficção?
BURROUGHS: O enredo sempre teve a função definida de direção de palco, de levar os personagens daqui para lá, e isso continuará, mas as novas técnicas, como o cut-up, envolverão muito mais da capacidade total do observador. Isso enriquece toda a experiência estética, estende-a.
ENTREVISTADOR: Nova Express é um cut-up de muitos escritores?
BURROUGHS: Joyce está lá. Shakespeare, Rimbaud, alguns escritores que as pessoas não ouviram falar, alguém chamado Jack Stern. Tem Kerouac. Eu não sei, quando você começa a fazer essas sobreposições e cut-ups, você perde o controle. Genet, é claro, é alguém que admiro muito. Mas o que ele está fazendo é prosa francesa clássica. Ele não é um inovador verbal. Também Kafka, Eliot e um dos meus favoritos é Joseph Conrad. Minha história "They Just Fade Away" é uma sobreposição (em vez de cortar, você dobra) de Lord Jim. Na verdade, é quase uma recontagem da história de Lord Jim. Meu Stein é o mesmo Stein que em Lord Jim. Richard Hughes é outro favorito meu. E Graham Greene. Como exercício, quando faço uma viagem, como de Tânger para Gibraltar, registro isso em três colunas em um caderno que sempre levo comigo. Uma coluna conterá simplesmente um relato da viagem, o que aconteceu: cheguei ao terminal aéreo, o que foi dito pelos funcionários, o que ouvi no avião, em que hotel fiz o check-in. A próxima coluna apresenta minhas memórias: ou seja, o que eu estava pensando na época, as memórias que foram ativadas pelos meus encontros. E a terceira coluna, que chamo de coluna de leitura, dá citações de qualquer livro que eu leve comigo. Tenho praticamente um romance inteiro sozinho em minhas viagens a Gibraltar. Além de Graham Greene, usei outros livros. Eu usei The Wonderful Country, de Tom Lea, em uma viagem. Vamos ver... e o The Cocktail Party de Eliot. In Hazard, de Richard Hughes.
Por exemplo, estou lendo "The Wonderful Country" e o herói está cruzando a fronteira para o México. Bem, exatamente nesse ponto eu chego à fronteira espanhola, então anoto isso na margem. Ou estou em um barco ou trem e estou lendo "The Quiet American"; eu olho ao redor e vejo se há um americano tranquilo a bordo. Com certeza, há um jovem americano tranquilo com um corte de cabelo da tripulação, bebendo uma garrafa de cerveja. É extraordinário, se você realmente mantém os olhos abertos. Eu estava lendo Raymond Chandler, e um de seus personagens era um pistoleiro albino. Meu Deus, se não havia um albino na sala. Ele não era um pistoleiro.Quem mais? Espere um minuto, vou verificar meus livros de coordenadas para ver se há alguém que esqueci - Conrad, Richard Hughes, ficção científica, bastante ficção científica. Eric Frank Russell escreveu alguns livros muito interessantes. Aqui está um, The Star Virus; duvido que você tenha ouvido falar. Ele desenvolve aqui um conceito do que ele chama de Deadliners, que têm esse estranho aspecto maltrapilho. Li isso quando estava em Gibraltar, e comecei a encontrar Deadliners por toda parte. A história de um lago de peixes nela e um jardim de flores bastante grande. Meu pai sempre teve muito interesse em jardinagem.
ENTREVISTADOR: Diante de tudo isso, o que acontecerá com a ficção nos próximos vinte e cinco anos?
BURROUGHS: Em primeiro lugar, acho que cada vez mais haverá fusão entre arte e ciência. Os cientistas já estão estudando o processo criativo, e acho que toda a linha entre arte e ciência irá desmoronar, e que cientistas, espero, se tornarão mais criativos, e escritores mais científicos. E não vejo razão pela qual o mundo artístico não possa se fundir completamente com a Madison Avenue. A arte pop é um movimento nessa direção. Por que não podemos ter anúncios com palavras e imagens bonitas? Já notei que algumas das fotografias coloridas muito bonitas aparecem em anúncios de uísque. A ciência também descobrirá para nós como os blocos de associação se formam.
ENTREVISTADOR: Você acha que isso destruirá a magia?
BURROUGHS: De jeito nenhum. Eu diria que isso o tornaria ainda mais fascinante.
ENTREVISTADOR: Você já fez algo com computadores?
BURROUGHS: Eu não fiz nada, mas já vi alguns poemas de computador. Eu posso pegar um desses poemas e tentar encontrar correlações com ele - isto é, imagens para acompanhá-lo; é bem possível.
ENTREVISTADOR: O fato de vir de uma máquina diminui o valor para você?
BURROUGHS: De jeito nenhum. Eu diria que isso lhe aprimoraria.
ENTREVISTADOR: Você já fez algo com computadores?
BURROUGHS: Eu não fiz nada, mas já vi alguns poemas de computador. Eu posso pegar um desses poemas e tentar encontrar correlações com ele - isto é, imagens para acompanhá-lo; é bem possível.
ENTREVISTADOR: O fato de vir de uma máquina diminui o valor para você?
BURROUGHS: Acho que qualquer produto artístico deve se sustentar pelo que ele é.
ENTREVISTADOR: Portanto, você não fica chateado pelo fato de um chimpanzé poder fazer uma pintura abstrata?
BURROUGHS: Se ele fizer uma boa pintura, não. As pessoas dizem para mim, "oh, isso tudo é muito bom, mas você conseguiu por meio do cut-up" Eu respondo que não importa como eu consegui isso. O que é qualquer escrito se não um cut-up? Alguém precisa programar a máquina; alguém precisa operar com os cut-ups. Lembro quando primeiro fiz as seleções; De uma centena de sentenças possíveis que eu devo ter usado, escolho uma única.
(Extraído de uma entrevista realizada em 1966 por Conrad Knickerbocker para o Paris Review).
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