sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

UM TÁXI PARA O DESTINO

Não aguentei ficar em casa resolvi sair para beber no centro. Agora estou comendo um joelho e tomando um pouco de cerveja. Pensando que me sinto enclausurado. Viver nas grandes cidades é como viver em uma série de caixas. Na rua, passava um grande caminhão. Tive um tempo muito agradável no trem vindo pra cá. Não viajava de trem há anos. Descobri que agora não existem mais salas de estar neles. Aluguei um quarto para poder instalar minha máquina de escrever e olhar pela janela.

"Vocês acredita em profecias?", perguntei para Nick e ele disse que às vezes. Tirei fotos borradas da paisagens, de tudo que me parecesse um sinal, um indício de alguma coisa. Por mensagem, falava com uma amiga sobre isso, mas ela não deu bola, achava que eu estava drogado, ou que estava inventando tudo isso sabe-se deus o porquê. "Eu também", respondi Nick depois de algum tempo, e passei a falar de meus projetos: "Estou desenvolvendo um método de prever o futuro, ou melhor, de obter indícios, ver as direções que ele pode seguir. Por isso tiro tantas fotos, por isso anoto tudo que me parece um sinal. Tudo está seguindo para algum lugar", eu disse e anotei em seguida na minha máquina. 

A paisagem rural a correr pela janela do trem. Vacas pastorando. Registro tudo com uma série de fotografias. 

"Vacas ruminando a grama", expliquei para Nick. 

Estive pensando em ruminação o dia todo, desde que certa pessoa descreveu meu vício em quetamina como "um hipopótamo ruminando mesmas palavras de sempre". Releio essas palavras que ela me enviou na noite passada, procurando nela os indícios da cena que veio a ocorrer lá fora do trem. Ao percorrer o trecho em que ela me explicava o processo digestivo dos ruminantes ("O alimento é inicialmente mastigado e engolido para o primeiro estômago, de onde retorna à boca para ser mastigado novamente"), obtive uma pequena iluminação que redigi em minha máquina: "cuidado com a infestação de ratos". Do lado de fora, um grande outdoor da empresa norte-americana Able Pest Control. 

Meu primeiro dia trabalhando na Able Pest Control foi, digamos, banal, e isso me convenceu de que trabalhando para eles levaria uma vida também banal, de um sujeito medíocre e qualquer, como eu estava convencido a viver. O chefe era estúpido, mas se achava entendedor de finanças, que tinha talento para o negócio, e até que tinha mesmo, mas para o resto era uma porta. Os funcionários eram tão ou mais estúpidos ainda, e por isso não sentia vontade de falar com ninguém, e na verdade quase não precisava. Depois de um tempo fazendo viagens curtas, me deixaram responsável de dirigir o caminhão para estados diferentes. Trabalhava sozinho, levando o inseticida de um estado ao outro, eu tirava um salário de merda, mas ouvia a música bem alta, jazz japonês principalmente (Átropos tinha me deu essa fita em um aniversário antigo) e também podia viver de noite. Estava com uma insônia severa. A viagem era muito longa, e eu tinha que parar para descansar nos postos, mas a verdade é que não conseguia dormir mais do que duas horas. Passava as madrugadas lendo, ou então cheirando quetamina, ou quando não tinha dinheiro para quetamina (o dinheiro que meu pai me deixou de herança diminui a cada dia, preciso me controlar para ter o suficiente para viver pelo menos mais um ano) usava metanfetamina barata, que deixava meus dentes trincados e que eu comprava de Deusa.

Conheci Deusa em um bar. Ela cheirou uma carreira de cocaína na frente de todo mundo, como quem toma um trago ou acende um cigarro qualquer. Perguntei se podia dar um teco e ela me cobrou dez reais. Paguei, e depois ficamos conversando. Estava meio bêbado, o pó me deixou ligado e elétrico. Ela também estava naquele frenesi que a cocaína causa logo depois de cheirada. Em poucos instantes, passamos de reles desconhecidos a amigos próximos, daqueles que compartilham confidências em público. 

Na verdade, nosso diálogo tratou-se também de um comércio: eu entregava meus segredos, minha vida interior, o dinheiro; ela me entregava o pó e suas análises, pois lhe divertia muito tomar minha vida e submetê-la a uma espécie de estudo, encontrar defeitos e explicar suas falhas. E até mesmo, vez ou outra, Deusa sugeria onde eu podia melhorar.  

Falei do meu término mais recente, dos problemas sexuais que eu e essa ex-namorada estávamos vivendo, e subitamente me calei. "Acho que já estou falando muito de mim", disse, em tom de quem pede desculpas. 

Quer dizer, não que ela estivesse quieta ou se mantivesse em silêncio. Como disse, ela estava somente recolhendo material suficiente para que seu pensamento veloz e aguçado de viciada em pó pudesse analisar friamente quanto ao seu conteúdo. "O pó é frio como a neve", falou vidrada depois de cheirar mais uma carreira de pó. Me passou e enquanto eu cheirava desatou a falar. Não falava contudo sobre ela própria, sobre sua vida particular. Nunca soube nada de sua família, de sua biografia. Tudo que sabia é que era doutora em química, que trabalhava em uma empresa de produtos de limpeza e que de vez em quando usava o laboratório para fabricar pó e fazer algum dinheiro. Colocou a mão no meu ombro, e como quem desse um conselho gentil, passou a explicar de biologia. 

"Muito triste", ela disse com uma carinha de quem sofre, fez beicinho, e continuou, "muito triste que o hábito sexual geralmente acarrete no enfraquecimento do desejo a ponto de introduzir um elemento de desordem em todo sistema social, desarticular relações, famílias...". 

Também nunca soube exatamente como Deusa aprendeu tanto sobre biologia (foi ela também quem me explicou sobre os ruminantes). Ela pegou o celular de volta e guardou na sua bolsinha de pano, e concluiu como quem diz alguma coisa banal: "Esta tendência inata do homem a se cansar de seu parceiro sexual é comum aos macacos superiores". 

Parado no sinal vermelho, o pé ansioso para apertar o acelerador, os dentes trincados, ruminando memórias distantes. Na rua um homem de cabelo e barba grande, todo sujo e descalço, um headphone enorme na cabeça e um celular moderno na mão.Um mendigo, concluí, deve ter assaltado algum otário no carnaval. Se mexia em um ritmo que me pareceu adequado ao jazz japonês (nunca soube do nome de nenhuma das canções daquela velha fita). Pausei a música. Era um outro indício, eu sabia que era. O meu futuro começou a se desenhar na minha mente: No dia seguinte, pediria demissão da Able Pest Control. Voltaria a viver em Nova Iguaço, moraria com mamãe enquanto faço o curso de programação, largaria as drogas por um tempo, arranjaria um emprego mais saudável. Era isso que eu precisava. Suspirei aliviado. Senti um peso enorme ceder de minhas costas. Tudo era tão simples. Estava tão claro. Era só começar. E quando me dei conta, meu caminhão estava atropelando um homem vestido de fraque e cartola. A bengala de plástico que ele carregava voou para um lado e seu corpo para o outro, o crânio explodiu contra a calçada e o chão ficou coberto de cérebro e sangue.

Uma velha assistia tudo isso da calçada. Paralisada de horror, segurando a sacola do pão. Era a minha única testemunha. Nosso olhar se cruzou, e dei logo a partida para que ela não pudesse ver por mais tempo o meu rosto. Virei a primeira esquina e fugi na direção do posto de gasolina do Nick. 

Já havia cobrido uma outra barra minha no último carnaval. Ficou irritado ao ver o sangue e os miolos presos no para-brisa, disse que eu só aparecia com merda, mas me ajudou a limpar tudo. "Com sorte a polícia não chega até você", disse, irritado, enquanto jogava água com a mangueira. 

Cheguei em casa e me masturbei pensando em Deusa. Não quis gozar. Subi as calças e mandei mensagem perguntando se ela estava acordada. Três minutos depois ela responde que sim. Combinamos de nos encontrar. Desço, tomo um táxi, e vou em direção ao meu destino.

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