No vagão doo metrô uma mulher vai ao chão. Sangue aguado de fim de raça. Está passando mal. Pessoas se reúnem ao redor, piedosas diante do sofrimento alheio. Apertem o botão de emergência, diz uma voz masculina, e apertam o botão de emergência. Na próxima estação chegam os funcionários do metrô. A mulher diz que está bem, que precisa chegar ao trabalho. Mesmo assim, levam a mulher em uma maca. A viagem continua.
Deusa despeja quetamina na tela do seu celular. Vamos pra praia, diz Nick. Tanto faz, diz Deusa. Vamos, está muito sol, digo. Deusa cheira a carreira com a narina direita, a esquerda estava completamente obstruída. Não gostei daquela garota, ela diz depois de levantar o rosto. Leila?, pergunto. Ela mesmo, diz Deusa. Namoramos por um tempo, digo, enquanto pego o celular. Como conseguiu?, ela diz em tom de desprezo. Sei lá, respondo e cheiro.
Finge que não liga, mas não para de falar do pai, da mãe, Deusa diz. O quanto é culpa deles? Toda família deveria ser um cofre indestrutível, um enorme forte militar, fortalezas impenetráveis munidas de abrigos anti-bomba, respondo. O governo recomenda que cada família tenha as armas adequadas para evitar Hiroshimas e Nagasakis na vida infantil, que cada família fabrique suas próprias armas de destruição em massa, pois o governo não irá interferir nos negócios dos particulares, desde que os planos assistencialistas do antigo presidente foram classificados como deletérios para a economia do país, diz Nick. Os pais que devem preparar seus filhos para a guerra fria a que foram convocados quando na ocasião do nascimento. Sair do útero quentinho da mãmãe e entrar de cabeça na era do gelo da existência, diz Deusa. O mundo, as pessoas, lhe atacarão não com dentes ou garras, Matheus, mas com tecnologias mais sofisticadas. Telepatia. Guerra psicossomática. A sociedade oculta uma guerra psíquica, guerra secreta e ao ar livre, diante de todos, mas oculta de todos. Guerra secreta, de todos contra todos, todos lutam, saibam ou não, Nick disse, pegou o celular e cheirou o pó branco.
Vontade de dormir cinco dias e acordar no consultório do analista, como é o nome dele? Aquele analista. Esqueci, não interessa. O pântano com a cara da minha mãe na água preta, doutor, queria dizer, e receber de sua boca a expressão vaga de compreensão e julgamento, e de seus dedos o papel branco com a autorização para comprar meus medicamentos, minha dieta química mensal, me disse Átropos.
A herança de uma maldição. Pego em meu corpo o débito de papai e mamãe. E eles, pagam a quem, pagam o quê? O feudo familiar. A decadência vem de longe. Passa na rua um cara sem camisa que poderia ser eu. Um doppelganger, como os alemães chamam. Sua fisionomia repete a minha. Nos olhamos brevemente, e reconheço em seu olhar o olhar de um irmão perdido. Se reconhecem de longe como os cristãos das catacumbas cruzando nas praças. Sua história, será que também repete a minha? Sócio-telepatia. Alguém que também sofre do que sofremos, imaginamos. A sociedade é o emaranhado de contra-histórias, gêmeos univitelinos que contudo vivem histórias diferentes. Será que poderíamos nos compreender se trocássemos alguma palavra? A compreensão é um fenômeno mais propício ao silêncio.
Quais as condições sociológicas, que configuração tortuosa necessária da economia libidinal, para que alguém se apaixone pelo analista? Desintegração do feudo familiar, o dinheiro a mediar as relações, o fluxo dos encontros e desencontros, amor e dinheiro enroscados de maneira indelével, capitalismo, diz Deusa.
Dois dias sem dormir, cheirou o pó, o coração dispara, bate com força e sacode seu corpo fraco e maro. Cheirou a quetamina, a realidade é refletida no espelho rachado da história, se bifurca em séries de histórias e contra-histórias, memórias e contra-memórias.
Sensação de morte, o corpo do rapaz espatifado contra meu para-choque, a tripa escorrendo pelo chão, tanto sangue. Meu irmão, meu irmão, diz Nick de dois em dois minutos, tento acalmá-lo. Que história sinistra. Quando criança, Nick matou o irmão menor. Na gaveta do pai uma pistola. Brincando de caubói, como nos filmes da televisão. Um único disparo, na cabeça. O irmão menor era o índio. Um único disparo e o estampido, o som alto do tiro, e o sangue, tanto sangue. Mamãe entra, assustada, nada podia fazer, pegou o telefone, atônita, as mãos tremiam, meu irmão, o rosto desfigurado, em carne viva, tanto sangue, tanto sangue.
Quando era menino minha mãe me censurou uma vez por ter falado a palavra buceta. Meu deus, que nome feio, melhor chamar de pererequinha, filha, disse gentil. A nhem-nhem fala popô abotoando a boquinha. Na cama, a filhinha com vestidinho cor-de-rosa e marias-chiquinhas, abraçada a um ursinho de pelúcia, puxa a aba do vestidinho, a pererequinha sem nenhum pêlo, pede para meter devagar na pererequinha para não machucar ela. Hoje vamos brincar de uma coisa diferente. Diferente? Sim, diferente? Eba, como? No popô. No popô? A nhem-nhem fala popô abotoando a boquinha.
E seu pai, Deusa? E seu pai? Não irá falar dele?
Seu pai se matou dois anos depois de publicar a obra que preparou em mais de vinte anos de estudos. Deusa pegou os livros e um por um atirou na fogueira. Vamos multiplicar as Alexandrias, diz. Livro por livro.
Que horas são? Preciso ir embora.
Obra de filosofia social e histórica. A sociedade representada pela grotesca figura da degeneração. A humanidade perpétua transmissora de uma doença hereditária. Deusa conta sobre Adão e Eva.
Ano novo, Átropos do outro lado do vidro, peitos enormes, beijando outro cara de língua, lambendo seus lábios, as mãos descendo da cintura para a bunda, abrindo elas, Átropos contemplativa passiva, manipulada, usada, dando-se, entregando-se. Arranco o vestidinho rosa e gozo nos peitinhos bicudos. Alguns jatos e morro, a máquina para, a tela desliga, alguns segundos somente, e tudo retorna, seu rosto e maria-chiquinha sujos de porra, ela ri, a mão direita vai até o rostinho, pega a porra e lambe com gosto. Gostoso. Você ama sua namorada?, pergunta enquanto seus dedos finos lhe fartam com meu gozo. Cansado, deitado ao seu lado, digo que sim. Ela chupa o indicador e depois o médio. Quero mais, diz com beicinho.
Pisco e estou nos braços de Deusa. O homem que matei era padre. A batina preta pintada de sangue. Miolos misturados às páginas da Bíblia. Barulho infernal de banda de fanfarra em algum lugar. Bumbo. Prato. Percussões que não sei nomear mas que reconheço o som. Metais, violões, cavaquinhos. Talvez um violoncelo. Madrugada. Roupas coloridas borradas pelo torpor sujo da quetamina. Dor de cabeça, dormência, parece que flutuo. Que horas são? Pergunto para Deusa e ela diz que não precisamos mais medir o tempo. A cidade é uma paisagem impressionista. Cores misturadas e em movimento. Cada pixel inchado e distorcido, como se tudo fosse feito de borracha e tivesse sido esticado até perder as proporções típicas. Tudo está perto demais, ou tudo está longe demais, tudo fora de foco. Quanto tempo passei entre seus braços? Fui furtado, estou sem celular. Não tenho como medir o tempo, não tenho relógio. Tento dizer alguma coisa e ela me cala com o indicador na minha boca. Não precisaremos da linguagem, explicou.
As formas esculpidas no litoral. Qual sua mensagem mineral? Verbo esculpido em pedra pelo movimento do mar. Anoto na areia e a onda lambe. Ela me beija, e diz que já deu, adeus. Mamãe foi embora quando eu era um menininho. Os morros arredondados pelo mar, a rocha se desfazendo, devir lento e demorado, que os olhos não podem ver.
Cheiro de Deusa. Tabaco, suor, algo ocre que não sei nomear mas que gosto de cheirar. Narina direita entupida. A mente ainda pensando os pensamentos da cocaína. Examinou-lhe os bolsos e num gesto automático tirou o maçarote de dinheiro e sem contar guardou-o no bolso do casaco. Meteu dois dedos por entre os cigarros e pesquisou o fundo do maço. Trouxe nos dedos em pinça uma fina tira de papel de seda cuidadosamente dobrada. Apalpou o papel e fechou-o na mão.
Confuso demais. Alguém me acerta com uma garrafa de vidro e meus óculos quebram. Óculos quebrados, equilibrados sob o nariz, as lentes pintadas de vermelho. Gritaria, estampidos de bala, uma noiva correndo, cinta-liga, querubins atrás.
Papai me dá um carrinho de brinquedo. Quando crescer, vai dirigir um igual, filho. Vou e venho com o brinquedo, fingindo que o piso da sala era uma pista de corrida. Não sei quanto tempo passou, não sabia ver as horas. O relógio da sala era uma pintura estranha, uma palavra escrita com caracteres cujo significado simplesmente não havia.
A história é escrita de sangue, disse Deusa.
O carro acelera e bate contra a parede. O piloto voa pelo vidro da frente - vrum vrum - bate a cabeça na parede, o cérebro explode, sangue espirra para todo lado. Gosto metálico de sangue. Limpo os óculos com as costas da mão, cuspo o gosto para fora da boca. Nick guarda a pistola dentro da cueca. Vamos, rápido, me diz, e nos leva. Eu, Nick e Deusa por entre as ruas escuras do centro. Para onde? Não sabia. As ruínas da cidade velha pintadas pelo meu sangue escorrendo.
Não aguento mais, meu corpo vai desmontar. Quero estar sóbrio, quero dormir, quero interromper o pensamento, quero interromper os sentidos, mas não consigo, é como respirar, só vou parar quando o corpo morrer de velho ou quando, por meio de um banquete de comprimidos, obrigá-lo ao silêncio prematuro. Não pularia de um prédio, muita sujeira. De tiro já ouvi falar que pode se sobreviver e ficam-se sequelas horríveis. História de Nick sobre um conhecido seu que ficou retardado e deformado depois de ter atirado com uma espingarda na cabeça para imitar Kurt Cobain. Tinha quinze anos o cara, diz Nick. Meu pensamento também vermelho. As linhas se multiplicam e novas palavras preenchem o branco vazio da cabeça, até que o branco se torna vermelho. As palavras incham, como tumores, crescem. Silêncio, por favor, sussurro para mim mesmo antes de cair no chão.
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