segunda-feira, 6 de março de 2023

JAMES JOYCE: O CRIADOR DE UM RITMO NOVO PARA O ROMANCE

Em James Joyce surpreende e perturba, ao primeiro contato, o poder criador.

Está a meio sua obra e no entanto parece a metade de uma catedral. Ou uma catedral inteira. Porque Ulysses é talvez o livro mais gótico e mais complexo que desde a Comedia de Dante se escreveu.

Nasceu James Joyce com esse sentido arquitetônico das coisas, a um tempo largo e intenso, que apenas se satisfaz em complexidades de catedral. Daí a vertical de concentração que assumiu em Ulysses seu poder criador. Sua força jovem e virgem de imaginação.

Ulysses é por isto, por esta concentração, de um simbolismo que exige Beadekers¹ como o da Catedral de Toledo e o da Catedral Chartres. De um simbolismo como as das catedrais góticas. 

A fecundidade de Joyce não é de superfície: está na concentração vertical. Fecundidade de superfície chamo eu a do sr. Blasco Ibánes, cuja obra tanto se assemelha a uma vila operária espraiada sobre larga extensão.

Onde foi buscar James Joyce um sentido arquitetônico tão fora do tempo, ou talvez, tão antecipado do tempo, pelo seu ritmo gótico e pelo seu fôlego épico? Nasceu com ele. Mas a eurritmia da educação por certo que desenvolveu. Educou-se o romancista inglês em um colégio de padres. De padres jesuítas. Na filosofia tomista, portanto. A qual se aproxima da arte e da vida com um critério ao mesmo tempo arquitetônico e melodioso: o integritas e o consonantia

Também em Joyce há um senso agudo da melodia das coisas. Senso de melodia que também a influência católica-romana, sob a qual foi nascido e criado, o artista deve se explicar. Pode-se falar assim da formação de Joyce porque ele próprio a fixou na desse menino doloroso que foi Stephen Dedalus. O retrato de The portrait of an artist. O retrato do livro que antecipa Ulysses: e no qual Joyce trabalhou dez anos. 

Nesse doloroso menino que é Stephen, a se amarfanhar de pudores e de sensibilidades aos primeiros contatos da vida, deve-se ter desenvolvido no colégio de padres uma quase doença de melodia. Ele próprio confessa que ao encanto da música renunciava a consciência. E como resistir, na verdade, ao encanto dessas rimas em vogais da psalmodia - boas e doces como ondas de ritmo? "Cinnamon et balsamum", "palma exalta sum", "te Deus laudamus", "Beati immaculati" - há nesse luxo de vogais que se deixam bater voluptuosamente pela voz, uma escola da música da frase.

No meio delas criou-se Stephen Dedalus. Criou-se James Joyce. Eram-lhe todas as manhãs e todas as tardes batidas aos lúbricos ouvidos essas sílabas latinas de psalmodia. Sílabas que não são afinal puros valores melodiosos aristocratizados pelo tempo: trazem em si íntimos sentidos, forças que se concentram na consonância das rimas, toda uma mística multi-secular, todo o drama litúrgico da Igreja de Nosso Senhor. 

E ao contato dessas rimas místicas, aristocratizou-se em James Joyce o senso melodioso a qual Walter Pater atribuía a maior força do estilo. Tanto que o primeiro livro de Joyce - livro de versos, aliás, e um como exercício de caligrafia para a prosa - chama-se Chamber Music; e é na verdade um múrmurio abafado e debussyano como o de um canto gregoriano acompanhado a flauta pagã.

Em James Joyce, criador de um ritmo novo para a prosa inglesa, que conseguiu amolecer em valores musicais de um líquido de latim de igreja, de um líquido de óleo quente e às vezes de sangue vivo, de sangue jovem, de sangue virgem; em Joyce é preciso não esquecer a influência jesuítica. Da vida em colégio de padres, ritmada pelos exercícios espirituais e pela psalmodia grave.

Educação que o ia predispondo para o mais intenso misticismo - o de padre S. J. - quando o crucifixo lhe caiu das mãos góticas de adolescente; e partiu-se. Educação que o acabou lhe predispondo para o estetismo - o pan-estetismo, diria o sr. Graça Aranha não tivesse barateado a expressão - em que hoje se aguça a atitude de Joyce perante a vida.

Mas ao estetismo de homem feito prendem-se ainda raízes do misticismo de menino. E assim que no Stephen que em Ulysses se analisa e rõe no mais podre da consciência e da sub-consciência, sente-se ainda o católico-romano do colégio de padres. Incapaz para rezar pela alma da mãe, o Stephen homem feito é também incapaz de refugir a sensações místicas as mais estranhas e até macabras que lhe surpreendem. Um dia, em sonho, sente repreender-lhe a perda da fé a própria mãe que lhe aparece com o corpo meio comido e um hálito cujo cheiro era como o de cinza molhada.

No Portrait já se analisara Joyce na crise religiosa da adolescência ligada à primeira experiência do amor físico. Experiência que lhe comunicaria, com impureza das masturbações em que antes se requeimara um senso de pecado de tal forma pungente que só a confissão o aliviaria. A confissão e a promessa de dedicar-se ao serviço "ad majorem Del gloriem"

Intensas páginas são aquelas do Portrait em que Stephen, sob a arguta consciência do pecado, segue os exercícios de retiro dirigidos pelos padres jesuítas. A voz acre do pregador evoca os poena damni. E debruçado sobre o próprio eu, como sobre uma poça muito verde de podre, a si mesmo pergunta, surpreendido da tentação que o vencera, se de fato estava cheio e sujo dos terríveis pecados que levam ao inferno. "Coned it he that he, Stephen Dedalus, had done those things?" Agora, só o confessionário. Mas como confessar tanta imundície? E é uma cena de rara intensidade a que precede a confissão do adolescente; e a da confissão.

Em Ulysses, esse mesmo Stephen que já prefigurava as iniciais S. J. ligada ao nome, é homem sem fé consciente. Apenas restos subconscientes da fé antiga do mesmo agarram-lhe ao cérebro. É Telêmaco. Porque Ulysses - o homem do século XX - é Leopold Bloom. O judeu Leopold Bloom, aclimatizado em Dublin. O qual tanto tem de acomodado perante a vida quanto Stephen tem de inquieto e satisfeito. Bloom chega a acomodar-se ao adultério da esposa.

Dir-se-ia parte da obra formidável que é Ulysses uma como reportagem taquigráfica de flagrantes mentais. Do muito que se pensa sem ter coragem de dizer. Do muito que é recalcado na vida mental do homem. pelo "censor" da teoria freudiana. Joyce criou uma espécie de método taquigráfico para apanhar esses flagrantes da vida mental interior. Vida sem olhos e sem boca - porém vida. Vida sem disciplina moral. O "carnaval dos miolos", segundo frase do sr. Herbert Gorman.

Ao livro formidável que é Ulysses conheci em Oxford, onde sua atualidade intensa era a inquietação de certos chás. O puritanismo conseguiu dalgum modo abafar-lhe a influência, aliás destinada pela própria natureza do livro a aristocráticos limites. Mas o livro vai vencendo: e até sob as bananeiras do Rio já se vai pronunciando o inglês fácil do nome de Joyce. O inglês de suas obras, é que será difícil de soletrar.

Ulysses trás um ritmo novo para o romance. Nunca se escreveu um romance assim. A análise da vida interior que ali se faz é duma transparência e complexidade perturbantes. Ao lado de Ulysses - escreve um crítico - o Satyricon é apenas o trabalho de uma criança obscena. "It leaves Petronious out of sight" - observa o sr. Arnold Bernett. E Ezra Pound exalta-o sobre Cervantes, sobre Flaubert, sobre Proust. 

Joyce quis tomar do fenômeno da vida um fôlego largo e forte; e para fixá-lo como que adotou ao romance o ritmo da arquitetura medieval. Ulysses é complexo como uma catedral. Não lhe encontro melhor comparação. É a mesma concentração de símbolos e de aspectos da vida. Nas catedrais góticas se representam vícios, virtudes, o feio, o belo, as coisas da terra e as do céu e as do inferno. Ulysses é assim. Um livro duma amplitude que perturba. Às vezes parece que é pouco chamá-lo de livro.


 Extraído do Jornal de Pernambuco, nº 288, ano 90, 11 de dezembro de 1924.


NOTAS

¹ Durante o final do século XIX e início do século XX, as guias Baedeker eram particularmente populares entre os viajantes europeus, que os usavam como um guia essencial para explorar as principais cidades do continente. As guias incluíam mapas, descrições detalhadas de pontos turísticos e informações práticas sobre hotéis, restaurantes e transportes locais. O nome "Baedeker" tornou-se sinônimo de guias turísticos detalhados e precisos, e a editora ainda publica guias turísticos até hoje, embora em menor escala do que no passado. As guias Baedeker são consideradas importantes fontes de informação histórica e cultural e são valorizadas por muitos colecionadores.


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