quarta-feira, 8 de março de 2023

COSTA LIMA

Acordou por conta de pesadelos. Da terra ignota do inconsciente, pensamentos extravagantes invadiam sua cabeça. 

Esses pensamentos eram muitos, e se anotados, poderiam encher todo um romance. A sua situação desordenada, resultado do acúmulo e superposição dessas impressões caleidoscópicas, contudo, fazia com que Costa Lima não conseguisse conceber com clareza qualquer um deles, imaginem então se seria capazes de anotá-los. 

Se conseguisse pensar adequadamente, Costa Lima teria concebido o conceito de ruído branco para descrever aquela sinfonia atônica regida pelo seu inconsciente. E como não conseguia pensar, tudo que pode fazer, depois de tentar dormir por alguns minutos, foi sentar em sua cama de solteiro e acender a vela que havia na mesinha ao lado da cama. "Quase no fim, preciso arranjar outra", ele disse em voz alta, para si mesmo, e ficou feliz em reconhecer o tom grave de sua voz.

A chama iluminou o cubículo em que era condenado a viver. Um retângulo apertado, de quinze metros quadrados, construído com paredes de alvenarias, a tinta branca toda descascada. Numa das paredes, uma abertura no tijolo deixava à vista um cano d'água vermelho e enferrujado (sempre que davam descarga Costa Lima ouvia a água escorrer pelo metal). Na outra parede, acima de sua cabeceira, havia um retrato de Alfredo de Roterdão pintado com carvão. Haviam duas únicas passagens, a pesada porta feita de ferro e vidro que abria para o corredor do prédio, e a que levava ao lavabo, que se resumia ao espaço suficiente para o sanitário. O chuveiro, por falta de espaço, ficava bem cima da latrina, e Costa Lima adiava constantemente seus banhos pois a água sempre escorria para o seu quarto, molhando todo o piso.

"Mais uma madrugada sozinho nesse quarto que o destino cuidadosamente esculpiu para mim no fim do terceiro mundo...", disse mais uma vez para si mesmo, em voz empostada, como se falasse para um público imaginário. Respirou fundo, melancólico, mas não se permitiu ficar ali, definhando em sua cama. Estava cansado de não fazer nada. Passara a última semana deitado em seu catre, ou então sentado em sua mesa do computador, gastando seu tempo de maneiras esdrúxulas e que sua psicoterapeuta condenava mordazmente. "Estou deprimido, doutora", ele se justificava, mas para a Doutora Clara aquilo não passava de um teatrinho encenado por seu paciente. "Já te prescrevi uma dose ainda mais forte de medicamento, Costa Lima", ela lhe disse na última consulta, em tom severo. "Mas doutora, acho que não está funcionando", ele respondeu, timidamente. 

A doutora revirou os olhos, impaciente. "Olhe", disse para seu cliente, "você já está no controle dos seus fluxos neurológicos, você já pode remodelar como quiser a direção das suas pulsões... Começo a desconfiar que você simplesmente deseja, Costa Lima, viver a sua vida assim"...

Costa Lima esfregou os olhos e, num inesperado gesto decidido, pegou a vela e levantou-se da cama. Quando colocou os pés descalços no chão sentiu o toque da água gelada, mas, indiferente, foi até o baú e, com a luz da vela iluminando seu interior, procurou algo para ler. Depois de mexer e remexer em alguns livros, tirou de lá uma revista vela, amarelada, a capa quase soltando.

Revista Brazileira, leu na capa gasta. Foto de uma mulher de óculos e jaleco. Os peitos eram grandes, os mamilos eram rosados. Um pequeno segmento de sua púbis, um emaranhado de pelos negros, podia ser visto. Ao lado, a chamada para uma matéria: "AS NOVAS DOENÇAS DOS PRÓXIMOS ANOS". 

Quanto pagou nisso? Tenta lembrar, mas não consegue. Barato, provavelmente muito barato. Abre o artigo em questão, e pula direto para um subtítulo, "A loucura epidêmica". Demora quase duas horas lendo cerca de vinte páginas em que se descrevia os efeitos de uma psicose sistemática progressiva desencadeada experimentalmente em uma população de uma ilha no pacífico sul. O estudo fora conduzido por uma junta de engenheiros, que segundo a matéria, ficaram todos muito "satisfeitos com os resultados produzidos na fisionomia física e moral daquela gente". 

"Que estupidez", pensou Costa Lima, "amostragem ridícula, nem dez mil habitantes, mas fazem essas matérias chamativas, caminhões de dinheiro para fingir que fazem pesquisas sérias... Idiotas... Os detritos subconscientes da antiga cultura com certeza estão armazenados no hipotálamo desse povo... Melhor seria extraí-los, acessarmos o coeficiente diferencial de sua consciência, para entender as leis de disseminação da doença a partir desse prisma deformante da realidade, e não simplesmente tratá-los como amostra representativa da humanidade..."

Essa pesquisa, Costa Lima descobriu, havia sido patrocinada por uma instituição filantrópica associada a uma enorme empresa do ramo farmacêutico, que no início desse ano havia comprado a compra de sua última concorrente. A compra da RazioTec, mais tradicional empresa do ramo, pela razoavelmente novata Sanitas (fundada a menos de trinta anos por um conglomerado de bancos), não deixou de causar espanto da opinião pública. Pessoas  que acompanhavam com afinco tais assuntos, contudo, não deixaram de perceber que a compra tratava-se de simples realização de uma óbvia profecia. 

Desde que a Sanitas desenvolveu um procedimento capaz de remodelar as partes do cérebro, seus negócios cresceram vertiginosamente. Seu método, guardado à sete chaves, não era rudimentar como aqueles oferecidos pelas concorrentes. A

A tecnologia antes disponível já tornara possível a intervenção no córtex cerebral, anatomia do cérebro que acreditavam responsável pelo pensamento consciente. As tentativas de reprogramação, contudo, só se tornaram sérias quando se esclareceu que uma pequena porção do córtex cerebral, conhecido entre os cientistas como córtex pré-frontal ventromedial, poderia estar associado com o que se chamava de inconsciente, o que pareceu se encaixar com as teorias dos filósofos da mente. As tentativas de intervenção química, contudo, foram todas frustradas, pois nenhuma conseguia dar controle ao experimento: vez ou outra, de fato, algo ocorria, e o paciente passava a agir de maneiras distintas. Pessoas furiosas, conhecidas pelo seu mal humor, depois da intervenção, tornavam-se surpreendentemente cordiais, alegres. O contrário, contudo, também poderia ocorrer, e um homem perfeitamente normal e adequado ao convívio social poderia sair da máquina com o gênio perverso de um psicopata.

O resultado da pesquisa decepcionou os investidores da Sanitas, que tinham ganas de o mais breve possível vender o revolucionário tratamento de reprogramação do consciente em todas as suas clínicas e sanatórios. A junta de médicos e pesquisadores pediu mais tempo, o que causou impaciência aos diretores da empresa. Um importante bloco dentro da diretoria, liderado pelo influente Dali, começava a movimentar entre os demais diretores a opinião de que os gastos com o desenvolvimento dessa máquina já haviam passado há muito dos justificáveis, e que mais valia colocar os trilhões gastos dessa empreitada inútil em uma mais frutífera. Outro bloco, contudo, acreditava que não poderiam parar ali, justamente por conta do enorme montante de dinheiro já gasto no projeto. Liderados por Lucíola, esse partido acreditava nos esforços do Doutor Fréderik, a cabeça por trás do experimento. 

Foi só depois de muitas sessões e deliberações parciais que um homenzinho baixinho e corcunda, um dos sócios menores, propôs uma solução que agradou a todos, ou pelo menos levou a um acordo parcial. Esse homenzinho, de nome Bartebly, era pouco estimado pelos demais. Não só por ser um sócio menor (sua cota na empresa era somente 1,4%), mas por conta de hábito recluso e de poucos amigos. De jeito calado, não parecia fazer questão de agradar ninguém. Quase não falava nos corredores, não pedia aos superiores para que realizasse favores e tarefas extras. Nas reuniões, nos raros momentos em que falava, era sempre muito breve. O tom seco e eloquente com que entregava suas opiniões era para muitos indícios de aristocrática arrogância, e era só falar para que muitos revirassem os olhos

Naquela tarde, contudo, o que sugeriu impressionou a todos, e até seus detratores tiveram que transigir quando viram que os sócios superiores haviam acolhido a ideia com bons olhos.

O que Bartebly propôs foi o seguinte:

"Vejam bem, cavalheiros: Nossa máquina é capaz de efetivamente transformar o pensamento e comportamento de nossos pacientes. O problema, como informam nossos pesquisadores, é que essa transformação não pode ser controlada efetivamente: que os caracteres deformados e adquiridos durante o procedimento são aleatórios. O doutor Fréderik me disse faza alguns dias que a esse inestimável coeficiente de caos, os cientistas estão tratando pelo nome de "efeito borboleta". Recebi aquilo com agrado, pois me pareceu espirituosa a imagem delicada de um bater de asas de multicolorido inseto para sugerir a lei aleatória que rege desde a dispersão dos terremotos até a deformações dos órgãos do corpo. Fui para a minha casa, depois fiz ginástica, comecei a fazer ginástica na semanada passada, preciso perder um pouco de peso. Enfim, isso não importa. Estava fazendo exercício no aparelho quando lá fora, atrás do vidro, vi voar uma borboleta e tive uma ideia".

Naquele dia, pensou Lucíola, Bartebly estava se alongando demais. E não era somente ela que percebia isso. O contraste entre o hábito discursivo breve e direto de Bartebly chamara a atenção de todos. Uma sócia, Átropos, disse em tom de deboche: "Quasimodo, sua fala é rouca, gutural e ininteligível". Alguns deram risinhos, mas Dom Isidoro, um dos sócios majoritários, fez um gesto e todos imediatamente se calaram. Vermelho de vergonha, Bartebly voltou a falar, dessa vez olhando diretamente para Dom Isidoro.

"Nós podemos vender esse procedimento, Dom Isidoro, exatamente em seu atual estado de funcionamento".

"Como, Bartebly? Diga de uma vez", disse Lucíola, em tom de comando.

"Lucíola, é simples", respondeu em tom oblíquo, de quem deseja esticar o mistério. Pegou o controle remoto e acendeu o enorme televisor. Reproduziu um vídeo em que uma mãe realizava o trabalho de parto. Gritos, som de choro, e um médico aparecia com o recém-nascido no colo, o enorme cordão umbilical ainda preso à mãe. Uma voz diz "é um menino, é um menino". Cortam o cordão umbilical e entregam a criança à mãe. A criança não para de chorar por nenhum momento. Corte para uma tela preta, que gradualmente clareia até distinguirmos um adolescente chorando, abraçado ao travesseiro em seu quarto escuro. Entra uma mulher vestida de branco e para olhando para a câmera. O adolescente continua chorando, como se não percebesse a presença da mulher. Ela começa a falar, tom delicado e angelical (ao fundo, sem nunca atrapalhar a clareza da voz da mulher, de vez em quando escutamos os soluços e gemidos do adolescente): "Você nunca poderá escolher como nascer, mas agora poderá pelo menos ter uma outra chance". Entram dois operários carregando um pesado computador. Ligam os cabos na cabeça do adolescente, que se mantém indiferentemente chorando. Depois de um deles digitar alguns comandos no computador, o adolescente estaca, para de chorar, seu olhar fica vidrado, e então dorme profundamente. A mulher de branca volta a falar: "Você não pode escolher o que se tornou, mas e se pudesse nascer de novo?" O adolescente acorda. Senta, confuso, como se não soubesse como foi parar ali. Olha para os operários, para a máquina, estuda o quarto, o dia começando a nascer e entrar pelas janelas, e então compreende. Close no seu rosto, iluminado pelo sol. Um sorriso radiante. Corte para uma tela branca com o logo da Sanitas, e abaixo, o slogan: nasça de novo.

A maioria dos sócios votou para que o produto fosse levado adiante, e os lucros obtidos com o tratamento, difundido pelas empresas de marketing como um reset da consciência, fez com que a Sanitas crescesse em uma velocidade impressionante. Os analistas do mercado sabiam que era questão de tempo até que a empresa devorasse as demais, e foi isso que foi acontecendo ao longo de algumas décadas, até chegar no ponto da absorção da Razio. Costa Lima, embora esperasse o total controle da Sanitas sobre o mercado de saúde, não deixava de se espantar com a velocidade de todo ocorrido. "Não demorou nem cinquenta anos para que esses bilionários organizassem um plano para controlar todo o segmento", disse alto para si mesmo.

Fechou a revista, impaciente, e procurou uma leitura que lhe aborrecesse menos. Remexeu no baú até encontrar um livro velho de capa escura e desbotada. Colocou contra a luz e leu o título. "Até que enfim poesia! Estou cansado da imaginação pedestre que os cientistas enfiam no nosso cérebro dia após dia!"

Costa Lima adorava aquela estranha sensação de ter as palavras passando da língua abstrata de seu pensamento para a materialidade carnal de sua garganta. Antes de contar as palavras que leu em voz alta, para si mesmo, pois morava sozinho naquele cubículo, tratarei de explicar como Costa Lima aprendeu a falar.

O pai de Costa Lima foi um importante escritor, muito renomado pelas cartas de amor que escrevia. Os sentimentos de amizade, os relatos emotivos, confessionais, expressos pelos seus cumpridos dedos de tipógrafos, todo tipo de elogio e idílio, em sua mão se tornavam ainda mais deliciosos. Era a glória de seu pai saber que alguém se emocionara com suas palavras, saber que servira de cupido para algum amante. 

Conheceu sua esposa em um funeral. Estava vestindo terno violeta e chapéu de abas retas. Ela completamente de preto, um macacão cumprido e apertado que lhe cobria desde o pescoço até a ponta dos pés. Uma corrente de ouro escorria sobre os contornos duros de seus seios. 

Ninguém poderia imaginar humores mais diferentes. Ele era expansivo, alegre, faceiro; ela era quieta, fria, e sempre parecia doente. Talvez fossem as letras que aproximaram aqueles dois, mas até nisso eram contrastantes. Se ele louvava o amor, ela louvava a morte, aquele terreno que os retóricos associavam às regiões mais baixas da alma. Sua especialidade eram as cartas rancorosas, os ataques públicos, as palavras que fedem de tanto veneno que carregam. De vez em quando, mas somente pela necessidade monetária, já que a atividade lhe desagradava sua misantropia, escrevia alguns elogios funerários. Não era de seu tipo escrever palavras lisonjeiras, mas isso não queria dizer que fizesse o trabalho de qualquer jeito. Embora não alcançasse nem o prestígio e nem o talento que o marido possuía na arte do elogio, seus pares lhe consideravam mais talentosa, pois além de dominar sua especialidade, conseguia executar a do marido com relativa facilidade e beleza.

"A mamãe estava no leito de morte", me confidenciou certa vez Costa Lima, "quando me admitiu que grande parte dos trabalhos de papai, inclusive alguns dos mais festejados, como a Carta ao amante, era na verdade de autoria dela..."

E passou a falar do casamento de seu pai e de sua mãe. Me contou que se conheceram em no funeral de um diplomata. As palavras lidas no enterro não comoveram especialmente a ninguém, pois todos os presentes não possuíam cultivo de espírito suficiente para acessar o conteúdo profundo daquelas palavras, mas o poeta Cícero, pai de Costa Lima, ficou impressionado com o poder daquelas figuras de linguagem. Chorou discretamente, e no fim da cerimônia foi até o organizador perguntar quem havia escrito aquele belíssimo elogio. Ele passou o endereço de Acrópole, a mãe de Costa Lima.

O que teria escrito Marcato para Acrópole, para se tornar merecedor de atenção? Não sei exatamente como, Costa Lima não entrou em detalhes sobre isso, mas o cortejo, não importa como ocorreu, de alguma forma surtiu efeito. Passaram muito tempo enamorados pelas palavras um do outro, até que em um demorado dia reuniram seus corpos e copularam. Isso voltou a acontecer mais três ou quatro vezes. 

De alguma dessas sessões, nasceu Costa Lima. Filho de escritores, era natural que fosse seguir o ofício. Desde criança foi educado para a palavra impressa. Seus pais eram da última geração em que a ciência pedagógica obrigava o desenvolvimento de uma linguagem fônica. As novas propostas pedagógicas, a que Marcato e Acrópole estavam de acordo, visava desfazer o privilégio fonocêntrico da língua. Para ser um escritor, explicava Marcato para seus colegas, é preciso começar pela escrita. Nada interessa a fala para um profissional da escrita, complementou Acrópole. 

E para escrever que desde bebê Costa Lima foi desenvolvido. Entregue a um internato assim que completou seus dois anos de idade, desde muito cedo que aprendeu  a cultivar as letras e a solidão. Com três anos já conseguia ler, e com oito já dominava fluentemente cinco línguas. Passava todo seu tempo recluso em um cubículo. Toda manhã, era entregue por uma passagem na porta de ferro um livro e as provisões alimentícias do dia. Tudo que podia fazer, além das estritas necessidades fisiológicas, era ler e escrever (para isso havia um caderno, um estojo de penas e tinta preta, que toda vez que terminavam, deveriam ser passadas pela passagem da porta para que no dia seguinte fossem entregues novas.

Não conheceu outra pessoa pessoalmente até completar dezesseis anos, embora desde os dez já tivesse um computador e acesso à internet. Desde muito cedo, começou a trabalhar redigindo notas científicas, e entre alguns usuários de um fórum era reconhecido como filósofo. 

As seitas dos peripatéticos, que há alguns anos eram apenas um grupo romântico que pregavam a abolição da vida virtual e a reimaginação do mundo real, tornava-se mais presentes nos espaços públicos da rede. Foi em uma reunião dos peripatéticos que conheci Costa Lima. Como não-falante, tudo que ele podia fazer era aparecer escrever mensagens para os participantes, o que fazia prolixamente, em textos enormes. 

Costa Lima nunca havia tido contato tão próximo com falantes assim, que desavergonhadamente falavam, que falavam com gosto e com todas as possibilidades fônicas, cantavam, falavam em rima e métrica, imitavam vozes, enfim, faziam uso de enorme plasticidade vocal. Ver a língua assim, em tão vivo estado de oralidade, provocou em Costa Lima um horrível desconforto. Isso explica as passagens iracundas que escreveu, descrevendo a fala como amoral, herança das antigas e ultrapassadas sociedades logocêntricas. Por algum motivo, contudo, voltou a aparecer em outras reuniões. E seu tom belicoso arrefecia. Conforme me confessou depois, o incômodo e raiva inicial foram somente maneiras de elaborar o estranho encanto que a palavra falada lhe produziu. Nunca havia sentido nada assim. E quando tentou falar, sozinho, em sua casa, se frustrou, pois seu aparelho fônico havia sido atrofiado ainda quando era um recém-nascido. 

Os peripatéticos não são simplesmente uma milícia desorganizada da internet. Seus membros possuem disciplina, seus movimentos são calculados. Permitir que um sujeito extremamente avesso à fonação - isso para não falarmos nas maneiras mais desagradáveis com que Costa Lima batia de frente com os demais membros - frequentasse os meios peripatéticos não era descuido ou tolerância descabida, mas estratégia elaborada pelos líderes do movimento. Em uma tarde, assistindo a chuva de ácido cair lá fora, Nick me confidenciou o seguinte: "Deixemos esses estúpidos se aproximarem. Deixemos terem o gozo de sentir razão até. Mas não nos permitamos ser afetados por seu discurso. Seu discurso é falso, e a falsidade é sempre inócua. Nada fará contra quem conhece a verdade. O mal não seduz aquele que ama o bem. Será o contrário, Mallarmé. Deixe que fale aquele monte de merda fascista, não se importe, ou melhor, se importe apenas o suficiente para retirar ainda mais alegria de nossa verdade. Irradie força. Aquele pobre Costa Lima é um doente. Cedo ou tarde descobrirá que somos nós a sua cura".

Nick estava certo. Lentamente, a argumentação de Costa Lima recuou. Começou a ponderar, a reconher, se não a pertinência, a plausibilidade dos argumentos peripatéticos. Demorou quase um ano para que estivesse de acordo com as principais ideias da seita. Depois de algum tempo, convidei-lhe para ingressar oficialmente. Creio que precisou de algum tempo para pensar, pois demorou algumas horas para me responder que sim. 

O procedimento cirúrgico de reconstrução do aparelho fônico era simples e rápido. O demorado, na verdade, eram as sessões de fonoaudiologia que o paciente precisaria depois, pois a atrofia não era somente da fisiologia, mas também era psicológica. Foi necessário mais de um ano de tratamento para que Costa Lima conseguisse reverter o quadro afásico que sua formação escriturária produzira, mas no fim desse tempo ele já era capaz de dizer com segurança quase qualquer fala, ainda que fosse pego com dificuldades em alguns fonemas mais complicados.

Naquela madrugada de pensamentos intranquilos, encontrou um novo livro para tentar mitigar sua tormentosa angústia. Seu título era Introdução Concisa à Engenharia Social. Folheou algumas páginas e, ao acaso, leu uma passagem em voz alta:

"Os engenheiros podem ser definidos como profissionais da observação, especialistas em olhar competentemente. Na evolução histórica, substituíam o amadorismo de viajantes e turistas que, em suas viagens pelos países exóticos, recolhiam impressões vagas sobre a paisagem. Por meio de uma linguagem rigorosa e objetiva, os engenheiros se tornaram capazes de sistematizar a observação em parâmetros científicos, e seus relatórios são hoje as principais fontes para as reformas que o estado organiza..."

Fechou o livro, e suspirou. Estava exausto.

"Não aguento mais, meu corpo vai desmontar. Quero estar sóbrio, quero dormir, quero interromper o pensamento, quero interromper os sentidos, mas não consigo, é como respirar, só vou parar quando o corpo morrer de velho ou quando, por meio de um dos banquetes de comprimidos, daqueles que Clara receitou para me manter vivo, induzir-me ao silêncio prematuro e eterno. Não pularia de um prédio, muita sujeira. De tiro já ouvi falar que pode se sobreviver. Ficam-se sequelas horríveis". 

Há alguns dias Nick contou de um amigo de infância que tentara se matar com um tiro an cabeça. "O idiota pegou a espingarda do pai", ele dizia, rindo, "mas a bala passou de raspão ele continuou vivo, mas ficou pra sempre retardado". Deusa disse, daquele seu jeito indiferente, alheio à tudo, que chegou a conhecer o sujeito pessoalmente, e que além de retardado, seu rosto era grotesco, pois durante a cirurgia de reconstrução facial um dos médicos cometera um erro grave que pra sempre comprometeu a integridade de seu crânio. "É verdade", disse Nick, olhando para a cara espantada de Costa Lima, "nunca vi nada mais nojento e desagradável do que o rosto daquele imbecil", completou.

Costa Lima pensa no cheiro de Deusa. Tabaco, suor, algo ocre que não sei nomear mas que dá prazer só de farejar de longe. Narina direita entupida. Costa Lima deveria ter sentido melhor esse cheiro. Deveria guardá-lo para sempre dentro dele, pois é questão de tempo para que desapareça, para que seja falsificado pela lembrança e do cheiro verdadeiro se torne reles fantasma. 

Assim como eu, Costa Lima era apaixonado por Deusa. Assim como eu, Costa Lima pensará no cheiro de Deusa, mas esse nome anunciará somente a sensação de que ela está longe e que não voltará jamais, e que nunca mais sentirá o cheiro que a lembrança consegue apenas aludir, que pode até mesmo encenar dentro de seu cérebro sua sensação, mas que ele sabe que nunca irá reproduzir o cheiro verdadeiro que se desprendia de Deusa.

Conversamos muito sobre Deusa. Ele não sabia que também amava ela, e por isso me tratava como um confidente fiel. "Ela me beija, me beija de novo, e com os olhos cheios d'água, me diz que já deu", ele me contava, choroso, quando de súbito passou a falar da mãe: "Mamãe também foi embora assim, para nunca mais voltar. Por algum motivo pensei em mamãe, quando vi Deusa se afastando, cada vez mais longe, na proa daquele navio. Sou só um garoto, Mallarmé, exatamente como no dia em que mamãe me deixou. Posso ter crescido em extensão, mas por dentro... Sinto que ainda sou o mesmo garoto, que em mim para sempre se realizará o destino da solidão..."  

Estávamos na praia, e para mudar de assunto, falei dos morros arredondados pelo mar, e falava da rocha se degradando pela força do vento, pelo devir lento e demorado da matéria, e que se a isto os olhos não conseguem enxergar, a imaginação é quem faz ver. "As formas esculpidas no litoral", disse, como quem deseja comover, "versos minerais cantado pelo ir e vir do mar..." Achei essa frase improvisada sinceramente digna de nota, e por isso fiz questão de anotar em meu caderno. Costa Lima assistiu com olhar irritado, como se eu tivesse feito algo contra ele, e com ironia, disse: "anote na areia, para que a onda lamba a letra, como o tempo lambe a montanha".

Não conseguia parar de pensar em Deusa. Foi seu nome chegar à luz de sua consciência que, em meio à madrugada de seu quarto, seus pensamentos voltaram a se multiplicar, e que em alguns minutos um quase infinito de palavras proliferaram e ocuparam todo o pouco que havia vazio em sua cabeça. Naquele momento, é certo, Costa Lima não mais pensava.  As palavras incharam como tumores. Uma dor de cabeça horrível, verdadeiramente insuportável, surgiu. Costa Lima apertou seu crânio e gritou bem alto. Caiu no chão e teve uma crise epilética. Depois de se debater por quinze segundos, seus sentidos retornaram ao normal. Na sua cabeça, uma série de imagens que trataria de esquecer, mas que naquele momentos eram límpidas, cristalinas. Antes de desfalecer, consegue sussurrar alguma coisa incompreensível.


2.

O alarme disparou e retirou Costa Lima de seus devaneios. Foi até a máquina de escrever e conectou aos seus pensamentos. Já eram Cinco e trinta e um. Engoliu os comprimidos da manhã com um pouco de água e começou a digitar. 

Estava escrevendo sobre o efeito dos buracos negros quando recebeu uma carta de sua médica. Seu coração disparou. Estava esperando aquela resposta há tempos. Tratou de ler imediatamente:

Caro Costa Lima,

Durante seu último sonho, quando me enviou essas palavras, "Mxyzptlk, ele é o único que poderia me ajudar", pude perceber um novo diagnóstico em seus sintomas. Serei breve, já que nunca interessam aos pacientes os pormenores médicos. Tudo que você deseja, afinal, como todos os demais, é curar-se. Envio de uma vez, ainda enquanto durmo, essas novas palavras. Espero que sejam úteis de alguma forma.

Atenciosamente,

Doutora Clara.

Em anexo, estava o seguinte:

Presa dentro da cidade de vidro, encolhida, proporções reduzidas as de um inseto. Depois de seu último fracasso, aliou-se a um ricaço, sócio majoritário de uma empresa. Conseguiu dinheiro para fazer seu experimento maluco. Máquina para encolher pessoas. Onde a ciência irá parar, doutora?, Costa Lima me pergunta, está aflito. Meu amor, sabes que acredito em um mundo melhor, e sei que as ciências são necessárias para o melhor desenvolvimento da civilização...

Você me interrompeu nesse ponto do sonho e exclamou, incrédulo: "desenvolvimento da civilização, doutora?"

Respondi que era necessário fazer o suficiente para a sociedade melhorar. Só que às vezes, Costa Lima, os cálculos vão longe demais. E você passou a me falar do holocausto, do seu pobre colega de trabalho Sandman que perdeu o pai. 

Me conte mais sobre esse amigo.


A estrela

Força gravitacional sobra a nave

girando em torno do buraco negro

como espaguete,

galáxias,

corpo em colapso 

o astronauta.

curvatura dp esáço-tempo dentro de um buraco negro.

O censor cósmico: 

As singularidades produzidas pelo colapso gravitacional ocorrem em buracos negros.

Censor cósmico, fracote:

Proteja os observadores que permanecem fora dos buracos negros! 

E o astronauta que caiu no buraco negro?

O que aconteceu com ele?


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