Na última sessão minha analista respeitosamente pediu para que não voltasse a lhe enviar mensagens durante a madrugada, e me explicou que nossa relação se limitava ao espaço restrito de seu consultório. O consultório era agradável, a tintura era branca, mas não daquele branco hospitalar capaz de perturbar os sentidos da criatura mais sã. Sentávamos de frente um para o outro, ela em uma poltrona, os cotovelos apoiados nos braços da cadeira, eu confortavelmente deitado no sofá, os pés descalços sobre o estofado fofo e a cabeça repousando em almofadas.
Nesse dia, contudo, estava deitado, de frente para ela, mas a vergonha não permitia lhe encarar os olhos. "Meu tempo, como você muito bem sabe, custa a hora", disse pausadamente, como se desejasse que eu compreendesse cada sílaba. "Nossa relação é estritamente profissional, e cada instante gasto com você deve estar traduzido por essa fórmula bastante objetiva que transforma a abstração do amor, a duração incalculável da atenção e do afeto, na cifra quantificável do dinheiro". Ela concluiu e olhou diretamente em meus olhos, aquele olhar lacônico de quem não deseja expressar coisa alguma, nem mesmo indiferença. Sustentei o olhar, o rosto queimando de vergonha, e balancei vagamente a cabeça, acatando suas palavras. "Que bom que estamos entendidos", ela disse sem alterar a expressão, mas senti que seus lábios finos, talvez o jeito com que pronunciou essa frase, ocultava alguma forma de júbilo, um prazer secreto em me repelir e me colocar no meu devido lugar.
O resto da sessão ocorreu comigo remoendo alguns temas de sempre, as dificuldades de me relacionar com meu pai, a falta de dinheiro e perspectiva de futuro, minha esposa que me abandonou e levou nossa filha, etc. Ela disse que nosso tempo chegara ao fim, nos despedimos com um abraço breve, desconfortável, e assim que coloquei os pés do lado de fora do consultório e ela fechou a porta atrás de mim, sozinho, naquele corredor enorme de prédio comercial, fui atormentado pela vergonha e pela culpa. Quando passava pela roleta do metrô, a vergonha e a culpa haviam se transformado em rancor, e disse para mim mesmo que não precisava dela, que poderia simplesmente pagar uma outra analista. Ela é quem precisa de mim. Sou eu que tenho o dinheiro. Ela quem deve me obedecer, como uma cadelinha grata por receber a ração. Quero ver se não volta correndo para mim, o rabinho entre as pernas, assim que eu ameaçar enfiar meu dinheiro em outro lugar que não na sua conta bancária.
Foi nesse estado de espírito que cheguei em casa. Entrei e me deparei com a sala quase vazia, apenas uma cadeira e uma televisão pequena, que costumava ficar no meu quarto. Minha esposa foi embora e levou quase tudo, mas não pude fazer nada, já que de fato quase toda a mobília era dela.
Não dormia há mais de trinta horas, mas não me sentia pronto a deitar na cama e lutar com meus pensamentos até fazê-los ceder ao esgotamento e desligar. Liguei a televisão e fiquei mexendo no celular, sem dar atenção para o que passava. Inquieto, levantei e decidi tomar um pouco de morfina. Engoli quatro comprimidos sem água e senti-los atravessar minha garganta foi o suficiente para me acalmar um pouco. Deitei na minha cama e voltei a mexer em meu celular, mesmo que já tivesse visto todas mensagens e notificações no trajeto de volta para casa. Resolvi tentar dormir, ansioso por descanso, mas a tranquilidade que os comprimidos me deram foi subitamente arrancada por conta desse contato tão próximo aos pensamentos, e passei mais de meia hora virando de um lado para o outro, esperando os efeitos da morfina como quem espera a chegada de um messias que não vinha. Enquanto meu sistema circulatório entregava as substâncias químicas para meu sistema nervoso, o cérebro, ansiosamente produzia a mais variada torrente de imagens e ideias, amalgamando fatos e devaneios que a princípio não teriam nada a ver com o outro. Não suportava mais esse tormento, e depois de muito pensamento concluí que não desejava ficar em casa. Cheirei cocaína para tentar equilibrar o efeito da morfina, que deveria chegar em breve, bebi uma dose de cachaça pelo vício, e saí de casa.
Sob o sol do fim de tarde, andei de mãos dadas com Justina. Passeamos pelo parque e fizemos piada com os enormes gansos que trepavam graciosamente na beira do lago. Paramos diante do poente refletido na água e nos olhamos, os granidos animais ao fundo. Ela sorria, radiante. Desviei meu olhar e ensaiei uma expressão de dor. "Infelizmente preciso ir embora", disse num sussurro. Justina não alterou a expressão, mas agora seu sorriso era triste. Mordeu o lábio e fez carinha de criança que a mãe mandou ir dormir. Nos beijamos apaixonadamente. Quando nos desvencilhamos me pareceu cortês dizer que pediria um táxi para ela.
Alguns veículos passaram direto, até que um finalmente parou ao meu sinal. Abri a porta com um gesto estúpido e cavalheiresco. Enquanto Justina entrava, eu disse até logo, e ela me mandou um beijo com seus lábios ainda úmidos.
Fui andando até chegar em um bar desses cheios de pessoas com grana e descoladas. Entrei no banheiro, abri a carteira e cheirei um pouco de quetamina. Meu nariz estava ardendo. Passei em frente ao barman, que conhecia, e disse que estava cheirando quetamina, que se ele quisesse um pouco era só pedir. Ele agradeceu, mas disse que estava trabalhando, e foi atender a uma mulher que queria um cosmopolitan. Odeio esse mundo da coquetelaria. Prefiro cachaça pura, botecos baratos em que a sujeira se acumula e que não podemos frequentar sem a suspeita de sentirmos nojo. Detesto coisa de gente rica e fresca. Tudo limpinho, as mulheres com roupas caríssimas, maquiagens, os homens vestidos que nem bichas, encenando os papéis prescritos pela sociedade. Ai, eu quero uma caipirinha de caju, por favor. Eu vou querer um negroni, por favor, seu barman. Um martini seco, ai, que delícia. O caralho a quatro, vão se foder vocês todos. Fui até o boteco que havia ao lado e pedi uma dose de fogo paulista. Bebi quase tudo em uma golada só, e minha garganta ficou ardendo.
Por que tinha falado com ele que estava drogado? Por que sinto necessidade de explicitar minha dependência química? Por que ainda continuo a fazer essas coisas, a passar vergonha na frente das pessoas que mal conheço, e que no entanto, mesmo assim, são as que mais me humilham? Não sei o que deu em mim, e quando percebi estava mais uma vez convidando o barman para cheirar no banheiro. Por que fiquei tão decepcionado por ter recebido outro não? Por que queria afinal o sim? Tudo bem, se não quer cheirar, não cheira. Eu cheiro porque eu quero, porque não me importo em viver essa vidinha de merda. Fique fazendo seu trabalho de merda, servindo a esse bando de burguês desgraçado, lambendo as bolas da boa sociedade. Seja a putinha deles, venda seu sorriso, seus braços, seu corpo, sua alma. Ai, este drink aqui está uma delícia, tome essa gorjetinha, o meu muito obrigado. Ai, caprichou nesse aqui, heim? E tudo que consegue esperar é trepar no fim do dia com um cliente mais solicito, torcendo para que ele pague o táxi em que você voltará para o seu quarto de pensão em um subúrbio nojento.
Estava cansado, com sono, a maldita morfina amolecendo meu corpo, mas a quetamina me deu forças para permanecer acordado. Me encostei na parede, buscando me equilibrar. Preciso colocar o despertador para nove horas da manhã, combinei com o funcionário da imobiliária de encontrá-lo às onze horas.. estava em processo de mudança. Briguei com minha esposa, decidimos cada um viver do seu lado. Ela foi morar com a mãe, no interior do estado, e levou nossa filha. Eu resolvi ficar, arranjei um emprego novo em uma empresa de controle de pragas. Até que gostava de viver na cidade, mas a casinha que alugávamos era grande e cara demais para pagar sozinho. Faz algumas semanas que estou pesquisando quitinetes da região. Amanhã visitarei mais quatro. Por isso preciso acordar cedo, na hora certa. Ter meu tempo de tomar café da manhã e ir caminhando ao local de meu destino. Espero amanhã conhecer minha nova casa.
Uma mulher se aproximou de mim. Cabelos cacheados , decote, saia curta, sem sutiã, tatuagem em um dos braços. Vira pra mim e pergunta se tenho isqueiro. Meto a mão no bolso e tiro de lá um isqueiro daqueles grandes e com o desenho de um cavalo. Acendi a chama e perguntei seu nome. "Catarina", ela respondeu. Era gorda, sua bunda era gostosa. Descobri que trabalhava como tradutora, discutimos sobre literatura e sem surpresa descobri que era estúpida e que seu gosto era tão deprimente quanto o de qualquer pessoa que eu esperaria conhecer em um lugar daqueles. Depois começamos a discutir ao reality show que estava passando na televisão e que eu fingia sem dificuldades conhecer (esses programas são todos iguais). Se juntaram mais dois amigos dela, e passaram a desfilar um festival de comentários imbecis. Crianças de dois ano e meio possuem não subjetividade. Prefiro manga, eu prefiro melão. Eu acredito em alma. Aquele garçom era gostoso, aquela moça eu deixava até bater em mim. Feminismo. Meu mapa astral é cheio de escorpião e peixes. Experiências paranormais. Etc.
Depois de umas duas horas fomos foder no apartamento dela. Tirava a roupa de Catarina pensando em Deusa. Deusa pelada, sem roupa. "Você me sexualiza, me objetifica?", perguntou. Me joguei a seus pés e comecei a lamber as solas de seus sapatos. A erosão provocada pelo contato entre a sola e o chão áspero fez com que ficasse irregular e recoberto de poeira. Passava a língua nas rachaduras de suas sandálias e me sentia como um cão beagle bem-educado decifrando as notas aromáticas de um cheiro gostoso de um delicioso almoço sendo preparado, e pensava, cada listra tem sua história, cada inexplicável espiral que sinto com a língua um inimitável acidente provocado pela natureza, Deus acéfalo esculpindo sua obra de arte com desleixo, os defeitos congênitos e aleatórios, órgãos deformados, o desenho estupendo das cordilheiras e dos morros que recobrem a costa... Ninguém escreveu aquelas marcas que sentia com a ponta de minha língua, mas elas estavam ali. Fui subindo pelas panturrilhas, pelas canelas, e babei especialmente a dobradura do joelho, e quando estava prestes a tocar em sua buceta ela me repeliu e sorrindo balançou o indicador e disse que não. Quando despi o seio de Catarina, mamei nele, pensando que era o de Deusa. Ela gemeu, como se fosse Deusa. Tudo que fez, a forma com que se entregou, o guincho que emitiu, era exatamente como Deusa faria.
Terminamos de foder. Catarina vestiu a calcinha. Ficamos deitados um ao lado do outro, fitando o nada, em silêncio. Ela acendeu um cigarro e fumou. Peguei o celular e fiquei mexendo. Disse que iria embora. Ela disse que se eu quisesse poderia dormir com ela, que no dia seguinte comeríamos um delicioso café da manhã, ovo mexido, frutas diversas, granola, iogurte natural, suco de framboesa, café feito na hora. Eu agredeci, mas disse que não poderia, pois tinha compromisso na manhã seguinte. Desci e entrei em um moto táxi. Ele me disse para vestir o capacete, deu a partida e fomos para meu destino.
"Você mora onde?", perguntei.
"Por aqui mesmo", ele respondeu.
"Ah".
"Mas morava em Mesquita, minha família é da baixada".
"A minha também. Morava do lado, em Edson Passos".
"A família é de lá?"
"É sim".
Em algum momento a moto ficou tão rápida que não conseguia mais entender o que ele falava. Minhas mãos apertavam com força as alças da moto. Senti vontade de apertar-lhe a cintura com força, mas me controlei. Ao invés disso, fiz ainda mais força na barra de ferro da moto. Quando dei por mim, estava fechando meus joelhos contra suas ancas, para com as pernas agarrar-lhe e me sentir mais segura.
Ele não parou de falar, mas não entendia o que estava me dizendo. Séries de palavras, histórias inteiras, mas o vento abafava sua voz. Em meu ouvido só chegava aquele ruído incompreensível, grunhidos encadeados em um ritmo agradável, mas que não podia entender o sentido. No máximo, uma palavra ou outro. Ainda assim, eu assentia, exclamava, fazia de claque, e se meu instinto dizia que era o necessário, até respondia alguma coisa, na esperança dele também não compreender.
A moto cortava a noite quente, me enchendo com uma felicidade que lembro de ter experimentado certa vez que andei de montanha russa em um parque itinerante. Estava com tesão. Fiquei pensando em Deusa, em como seria prazeroso retirar toda a sua roupa e lamber cada parte de sua anatomia. Cada partezinha, cada uma com seu nomezinho, pois gostava de saber onde estava colocando a língua. passava horas estudando manuais de anatomia, pelo simples prazer de dizer, em tom de quem sabe, por exemplo, tibiofemoral lateral, e em seguida sentir a protuberância característica do músculo. Cada músculo, cada órgão, cada osso, cada parte era única. Cada pele tinha seu toque, e como era precioso gastar meu tempo verificando sua particularidade com a língua. Será que Deusa me deseja? Sei que desejo ela, mas não sei se é recíproco. Não tenho coragem de falar nada, somente imagino ela aberta em minha cama, os olhos fechados, deixando minha língua brincar no seu corpo. O motoqueiro passou por cima de um buraco e fechei com mais força as pernas no seu corpo teso. Gritei para que pudesse me ouvir e disse que morava na próxima direita. Ele parou bem na frente do meu apartamento, e desci desajeitadamente.
Ele tirou o capacete e ficou de pé, parado ao meu lado.
"Aquela mãe adotiva que eu estava falando", ele me disse, "foi quem me ajudou a pagar, minha mãe mesmo não me deu um tostão".
Não fazia a menor ideia do que falava, mas assenti, e quando reparei, o motoqueiro estava com lágrimas nos olhos.
"Para qualquer um que precisasse", ele me disse, "minha mãe fazia... Estava com fome? Ela dava pão, servia almoço como se fosse da família. Estava desempregado e precisava de dinheiro? Ela emprestava. Separou da esposa? Pode ficar uns dias em nossa casa, até você se ajeitar. Minha mãe fazia o melhor que ela podia, não importava para quem".
Estava com sono, que horas eram? Resmunguei alguma coisa, em tom melancólico. Será que interrompo essa conversa? Estou morrendo vontade de chegar em casa e masturbar. E depois apagar. Que cansaço. Por que então estou de papo furado com esse senhor? E o senhor continuou falando:
"Ela era tão boa, a minha mãe".
"Uma santa", eu disse vagamente.
Ele arregalou os olhos.
"Aí é que tá", disse, e colocou a mão no meu ombro. "Aí é que tá", repetiu. "Imagine uma pessoa tão boa, mas que trata você que nem lixo? Ela me batia muito, filho. Quando ficava com raiva, descontava na gente. Não tenho filhos, não sei porque, só não aconteceu, mas meus irmãos têm, e eu digo para eles não serem como mamãe".
"Deve ter sido dificil, disse depois de um tempo".
"Foi", ele respondeu, "mas tinha também minha mãe adotiva".
"Ah, sim".
"Foi como foi".
"E hoje você e sua mãe?"
"A de sangue?"
"Sim".
"Está morta".
"Ah".
"Câncer, uns cinco anos atrás".
"Meus sentimentos".
"Não, tudo bem".
"E a relação de vocês nunca melhorou?"
"Ela continuou a ser assim comigo a vida toda. Sofri muito com isso. Você está condenado pelo sangue a viver com uma pessoa que parece te odiar. E uma pessoa que você ama, que você aprendeu a amar. Sofri muito. E precisei ler muito para conseguir entender isso. Como ela poderia me odiar assim? Eu nunca fiz nada para ela. Ao contrário, eu era um filho bom. Cuidava dela. Quando tive idade, comecei a trabalhar e ajudar ela com os meus irmãos. Nunca entendi isso, eu era o melhor filho, e mesmo assim era o mais judiado. Sofri muito, filho, sofri muito. Passei tanto tempo pensando nisso. Estudei a Bíblia, Alan Kardec, Chico Xavier, li muitos livros, pensei a fundo a questão. Foi minha irmã que veio com a resposta, tão simples. Eu tinha quase trinta anos já. Era aniversário de, se bem me lembro, cinquenta e dois anos de minha mãe. Festinha simples. Ela havia feito uma grosseria comigo e com meus irmãos, que organizamos toda a festa. Comigo principalmente. Eu fui na rua para chorar. Minha irmã depois foi atrás. Me disse para não culpá-la. Que havia entendido. Enfim havia entendido. Meu irmão, ela me disse, acho que ela foi nossa filha em outras vidas, Engoli um seco. As lágrimas vieram com força. Não consegui disfarçar, minha irmã nunca tinha me visto chorar assim, depois de velho. Realmente fiquei em prantos. O que foi, irmãozinho?, ela perguntava, desesperada. Nada, eu respondia. Me fale, me fale, exigiu. Tudo bem..., eu disse, e baixinho, como se não quisesse ser ouvido, disse que eu devo ter feito minha filha sofrer tanto na outra vida, para que ela reencarnasse assim, com tanto ódio. A culpa era minha".
Ficamos eu e o motoqueiro em silêncio até que enunciou que precisava ir. Apertamos as mãos rapidamente.
"Você é um cara inteligente", me disse enquanto colocava o capacete. Eu sorri e disse que aprendi muitas coisas com ele. Segurou o capacete embaixo dos braços e me olhou nos olhos, um olhar profundo e aterrador:
"Descubra o que faz os outros felizes, e use isso para controlá-los, filho".
Estremeci. Essas palavras banais pareciam ter provocado alguma reação química em meu corpo. Senti a inebriante sensação de euforia que descobri ao cheirar cocaína pela primeira vez. Ele sorriu, um sorriso macabro. Abriu o bagageiro da sua moto e retirou de lá um pergaminho e uma pena.
"Você sabe o que deve", me disse.
Peguei a pena, furei a ponta de meu dedo com uma faca e, com meu sangue, assinei meu nome no contrato. Ele guardou o pergaminho, vestiu o capacete, e subiu na moto.
"Até, filho. Se cuida".
Partiu para o meio da noite. Subi as escadas, sentindo o corte em meu braço arder. Tirei os sapatos, deitei na cama, todo vestido, e antes que me desse conta, dormi.
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