Beeckman cospe na bucetinha dela e mete a piroca que escorrega gostoso.
- Não quer também, René?, perguntou Beeckman.
Como sempre, René estava aéreo. As meias e as ceroulas arremessadas ao chão, junto de algumas latinhas de cerveja. Quando entraram na sala junto de Lucrécia, empurrando ela para o leito como se fosse um objeto autômato, seu pau ficou ereto. Agora, assistindo ela gemer a cada estocada de seu amigo Beeckman, seu pau tornou-se subitamente flácido.
- Um segundo, solicitou o filósofo, foi até a mesa que havia e cheirou mais pó.
Por que passou a sentir nojo de Lucrécia?
Antes era angelical. Quando se revelou, no meio da noite, para ela e Beeckman, a maquiagem bem-feita, o vestido ajustado a seu corpo esguio, o humor agradável e espirituoso, os dois trocaram risinhos, sabiam bem o que essa novinha queria. Fingiram ir ao banheiro.
- Que tal aquelas coxas?, disse Beeckman?
- Acho que ela quer foder com os dois, disse René, já bêbado, no ouvido o amigo.
Foi Descartes quem arrancou o vestidinho. Que corpinho gostoso de puta, pensou. Parecia uma bonequinha: a pele morena, cultivada pelo calor forte dos trópicos. Beeckman começou a mordiscá-la, primeiro nas costelas, depois foi descendo na direção da bacia, das canelas, dos dedinhos do pé Descartes ia metendo o pau na boca dela:
- Engole gostoso minha pica, sua putinha de merda.
- Uhum, ela assentiu, de boca cheia, gulosa.
Beeckman então abriu as pernas dela, lambeu os dedos e começou a dedar a buceta dela, assim preparando-se para o sagrado ritual da penetração, e foi aí que alguma coisa de errada aconteceu na cabecinha de René.
Por que ela não estava lubrificada, como uma boa máquina biológica?, questionou-se.
A terra ignota do pensamento….
-Tendo nós todos sido crianças antes de sermos adultos, havia dito René para Beeckman no início da noite, antes do surgimento de Lucrécia, fomos necessariamente governados durante muito tempo pelo nossos apetites…
- Sim, sim, consentiu vagamente o amigo, enquanto fumava seu cigarro.
- E pelos nossos preceptores, concluiu René, timidamente.
- Sim, sim, repetiu Beeckman, que em seu estado de distração, não reparou como Descartes havia sido transportado para um lugar que não mais ali, que não estava mais naquela taberna miserável da França Antártida, fim de mundo, mas em algum lugar de suas memórias… Na terra ignota de seu pensamento.
Tendo nós todos sido crianças antes de sermos adultos, havia dito René para Beeckman no início da noite, antes do surgimento de Lucrécia, fomos necessariamente governados durante muitoo tempo pelo nossos apetites...
- Sim, sim, consentiu vagamente o amigo, enquanto fumava seu cigarro.
- E pelos nossos preceptores, concluiu René, timidamente.
- Sim, sim, repetiu Beeckman, que em seu estado de distração, não reparou como Descartes havia sido transportado para um lugar que não mais ali, que não estava mais naquele bar miserável do Rio de Janeiro, mas em algum lugar de suas memórias...
Na terra ignota do pensamento.
Trataremos aqui, depois de tantas delongas, sobre a iniciação amorosa de René Descartes.
Aos oito anos foi matriculado no colégio de La Fléche. De orientação jesuítica, a instituição era conhecida pelo rigor de seus métodos. Era possível distinguir os veteranos dos novatos pelas marcas que os mais velhos carregavam no corpo. Os muitos hematomas, além dos cortes e cicatrizes, resultados da severa pedagogia dos padres, eram muitas vezes exibidos com orgulho.
Reproduzo um trecho da correspondência entre René e seu irmão Pierre, que naquele tempo combatia na Guerra de Trinta Anos. A carta não está datada, mas podemos presumir que foi escrita logo após o ingresso de René no colégio jesuítico.
"Durante o dia, quando os corpos recobertos pela capa preta, a característica faixa branca em volta do pescoço, os hematomas passam despercebidos. Terminado o horário letivo, recostados no dormitório, retira-se primeiro o pesado gibão, depois as calças de lã, as meias pretas, e com um orgulho estranho, que ainda não compreendo, os alunos ostentam os ferimentos, uns comparando-se ao martírio de Cristo, outros, mais belicosos, orgulhosos por terem desafiado a autoridade dos padres..."
Aqueles corpos mutilados pelos castigos dos padres deve ter impressionado um garoto de origens simples como René. A grande maioria dos alunos do internato, oriundos de famílias nobres, com laços profundos e antigos com o clero, já estavam acostumados com a dura disciplina patriarcal. O pequeno René era filho de um reles advogado, que ascendera socialmente por uma combinação de competência, bajulação, e como não pode deixar de ser, de boa fortuna.
- René, explicava Joachim, seu pai, a vida, cedo ou tarde, irá lhe dar a oportunidade que você precisa. Ela dá para todos os homens, e se alguém nasce e morre como mendigo, ou é por ignorância, desatenção, ou pior, por simples desejo de manter-se na lama. A primeira parte, fique seguro, não irei prover para você. Estudará nas melhores escolas, terá os melhores professores, lerá os melhores livros. Farei o que puder para prepará-lo para a fortuna, filho. Quando ela surgir, portanto, saiba agarrá-las com os dentes e unhas que o dinheiro e o saber irão nutrir. Terás a chance que eu sempre quis ter, mas por ser um reles bacharel, nunca consegui ter: o de fazer fortuna, e ter grande nome na corte. Siga, portanto, o caminho que lhe ofereço; faça de minha fortuna teu destino.
O palavrório do pai, embora extensos, no entanto não prepararam René para a experiência no colégio dos jesuítas. Esse incidente, ocorrido já na primeira semana de aulas, René lembraria por toda a vida.
O professor estava divagando sobre a Germânia, de Tácito, obra que René já havia examinado na biblioteca de La Haye. A concisão com que o discreto Tácito narrava a história dos povos germânicos haviam impressionado o pequenino René, e desde então passou a nutrir grande admiração por tal estilo. O professor em questão, no entanto, parecia detestar justamente aquilo que Reé admirou no latim do historiador.
- Tácito, dizia o professor com sua voz de taquara rachada, escrevia em frases curtas, miseráveis de tão diretas. O fato da popularidade e manutenção de sua obra enquanto canônica é claro sinal da decadência em que já viviam os romanos, tomados não só pelos vícios da carne, mas do verbo... O vocabulário e estilo de Tácito, extremamente simplório, só poderia agradar às paixões mesquinhas de um povo já corrompido... Que desagradável, a maneira com que Tácito descreve a morte de um grande homem... Morre Augusto, imperador generoso, grande responsável pelo equilíbrio político e militar de Roma, e Tácito, que miserável, narra tudo em uma única e concisa frase:
E o professor repetiu a frase, em latim, em tom de quem sentia verdadeiro nojo:
- "Augusto expirou, e a cidade inteira foi tomada pela comoção".
Em seguida, passou a fazer o elogio de Cícero, que segundo o professor era um orador e escritor altamente eloquente, cuja linguagem complexa não era simplesmente bela, mas tocava às paixões e que por isso era capaz de instruir mesmo ao mais pobre dos homens.
O que René sabia do sistema educacional? Claro que conhecia alguma coisa, mas por meio de rumores, de suspeitas, de premonições.
Sua mãe biológica morreu quando René tinha cinco anos de idade. Não possuí nenhuma memória dela. Pouco depois, seu pai se casou com Louise, uma mulher gentil, que também descendia de uma família de juristas. Era feia, mas bondosa. Uma particularidade sua era a singular cultura erudita que possuía, na época muito incomum entre mulheres, e que adquirira por meio de livros que os historiadores não sabem precisar a procedência - provável que tenha roubado -, mas cuja existência pode ser confirmada pelo seu inventário post-mortem, onde está indicado que seus dezoito livros - inclusive a Germânia, de Tácito - deveriam ser entregues a René.
Os seus primeiros anos de aprendizados juntos de Louise foram doces. Ela sentava o menino em seu colo, abria o tomo da vez e pedia para que ele lesse, em voz alta. Cada erro de pronúncia era corrigido com ternura, como quem indica em uma bela pintura um detalhe que o observador, com sua pressa ou inexperiência, deixara escapar.
- As crianças, lia René, vagaroso, viviam quase nuas, de maneira que entre os outros povos, entorpecidos pela moleza, dificilmente vingavam seus filhos nos primeiros anos; causava admiração que os germânicos fizessem crescer as crianças, com magnífica saúde, sem berços e sem agasalhos. Desde o seu nascimento eram resguardadas como criaturas livres e portadoras de direitos. Não se encontra entre os germanos nenhum traço do poder absoluto e despótico, como entre os romanos o Pater Potestas... O que é o Pater Potestas, mamãe?, indagou René, cheio de curiosidade.
- O Pater Potestas... - começou Louise, pensando em como explicaria um conceito tão violento para uma criança - bem, René, na época de Roma, o pai tinha muito, mas muito poder sobre o destino de sua família... Inclusive, se fosse sua vontade, poderia vender seus filhos, sua esposa, como escravos ao estrangeiro...
- Nossa!, exclamou o menino.
- Sim, até os povos mais civilizados possuem costumes bárbaros...
Assim era o ritmo do aprendizado de René com sua mãe adotiva e primeira preceptora, um diálogo calmo e amoroso. Como o rapaz poderia estar preparado para os duros métodos jesuíticos, em que a simples reinvindicação da palavra, por parte do aluno, já era considerada um atentado à ordem e à lei natural? Claro que René desconfiava que erguer sua voz e emitir uma opinião contrária a do professor seria uma indelicadeza, mas pensou que se dissesse de modo eloquente, se soubesse conciliar sua opinião com a do professor, assim talvez pudesse enriquecer a discussão, e quem sabe, o saber de todos os demais. Foi por isso que tomou coragem de manifestar seu apreço pela prosa de Tácito. Arranhou a garganta e, com o tom mais grave que sua garganta infantil conseguia emular, disse o seguinte:
- Caríssimo professor, compreendo perfeitamente que o estilo de Tácito é de extremo contraste com o de seu mais ilustre predecessor, Cícero, cujos discursos eram tão brilhantemente compostos pelo acúmulo das mais belas imagens, e cujas orações são verdadeiros inventários para a sabedoria e elocução clássica, e penso que Tácito, assim como eu e o senhor, jamais desprezou a retórica ciceroniana. Seu Dialogus de Oratoribus emula não só com perfeição o estilo do mestre maior Cícero, como também raciocina sobre sua pertinência com tamanha profundidade que, a cada vez que releio, sempre me deparo com coisas novas...
O professor estava estático, os olhos arregalados, paralisado diante da ousadia de René. A turma inteira prendia a respiração. O pobrezinho, tão ingênuo, estava tomado pelo entusiasmo que o assunto lhe provocava, e sem perceber o delito que cometia, continuou o discurso:
- Veja bem, caro mestre: A democracia é a condição indispensável para o desabrochar da eloquência; reciprocamente, a eloquência é a qualidade superior do indivíduo que pertence a uma democracia: a democracia não dispensa a eloquência, e a eloquência não dispensa a democracia.
E passou a declamar de cor um trecho do Dialogus de Oratoribus:
- "Na confusao geral e na falta de um chefe único, o orador era hábil proporcionalmente ao ascendente que pudesse exercer sobre um povo sem guia. Nossa cidade também, enquanto flutuou sem direção, produziu, sem dúvida, uma eloquência mais vigorosa, assim como um campo não domado pelo cultivo tem as ervas mais espessas". Isso está no Dialogus, como o senhor mestre bem sabe. E o senhor também deve saber que, no tempo de Tácito, Roma era governada pelo implacável Domiciano. A questão é a seguinte: para que a elocução, para que o discurso belo, se as palavras já não pode nada diante da força de um poderoso imperador? Se Tácito abandonou a eloquência, foi porque já não era mais um retórico, ou era um retórico mutilado. Sua linguagem direta, telegráfica, é antes mais nada a linguagem do historiador, que somente deseja relatar o que se sucedeu. O senhor está mais do que coberto de razão de considerá-la feia, mas a feiúra de seu estilo não lhe torna impertinente. Ao contrário, impertinente, dentro dos preceitos da retórica, seria manter a linguagem ciceroniana, adequada para a República, mas estranha e ineficaz para um regime tirano como era o de Domiciano.
Silêncio total, cortado somente pelo gorjeio de um rouxinol que pousara na janela da classe. É um pássaro ordinário, pequeno e discreto, com plumagem marrom-avermelhada na parte superior e um tom branco acinzentado na parte inferior, mas seu canto é popularmente considerado belo. Dizem que anuncia a chegada da primavera no hemisfério norte.
O professor, seu nome era Pierre-Jean de Smet, sorriu para René. Depois, virou-se para a janela, onde o rouxinol estava, e sorrindo, disse para a turma:
- Vamos dar um passeio nos jardins, o dia está lindo, ele disse, dissimulando bom humor.
Entre o burburinho de palavras sussurradas, os alunos levantaram de suas carteiras. É claro que ninguém sabia o que viria a ocorrer, mas todos, com exceção do inocente René Descartes, sabiam que não seria nada bonito de ver. Em fila indiana, entretidos pelo canto do rouxinol, todos foram para fora da sala.
As salas do internato eram mal iluminadas, e por isso René, em um gesto automático, cobriu os olhos com as mãos para se proteger da luz do sol quente de fim de maio. Foi junto dos alunos seguindo o mestre até algum ponto do jardim, e quando a sua visão já havia se acostumado com a claridade, passou a sentir enorme prazer com o sentido da visão.
No tempo de sua infância, as casinhas já haviam se multiplicado consideravelmente, uma ao lado da outra, esboçando a sufocante configuração que viria a ser a da cidade moderna. A casa em que cresceu, apesar de seus três andares, era estreita, e as paredes, em ambos os lados, eram coladas com outras casas, quase que idênticas a sua. A porta da frente dava para uma viela movimentada, com comércio e escritórios, mas a vegetação remanescente - quase todas as árvores e arbustos haviam sido removidos para a construção da avenida - além de escassa, era de extrema pobreza estética, e se resumia a alguns plátanos e tílias cujo verde tedioso educou em René uma profunda indiferença pelo reino vegetal.
O jardim que havia no colégio, contudo, era diferente de tudo que ele havia visto. Havia toda a qualidade de arvores e arbustos exóticos, as flores mais lindas, rosas do Japão, camelias, magnolias, cletoras, depreas, Rhodendrum Kalmias, jasmins, peonias, arborca mestrosderos, andrômedas, arabas, e roseiras de mais de duzentas variedades, cebolas e flores como jacinthos, tulipas, junquilhos, narcisos, lirios, amarilis, dalias raiaunculos e animonas que lhe pareceram lindas. Também dispunha de árvores de fruto como pereiras, macieiras, ameixeiras, pessegueiros, damasqueiros, cerejeiras, amendoeiras, grosmeiras, ribes-preto, avelãzeiras, nogueiras, castanheiros (marrons), vinhas das melhores espécies da França e um grande numero de outras plantas, cujo detalhe se tornaria muito longa a descrição.
Fez questão de examinar com cuidado cada ponto daquele jardim, e encantado pelas cores e formas que sequer sabia como nomear, não reparou que estava sendo dirigido pelo professor até uma clareira localizada entre um conjunto de jacarandás. Ali havia uma cadeira estranha, toda feita de metal, a qual Descartes foi conduzido sem questionar, e só quando seus braços e pernas foram amarrados pelas grossas tiras de couro que pareceu perceber que havia algo de errado. Olhou ao redor e viu que os demais alunos haviam se reunido em um largo anfiteatro que cercava a cadeira. Constatou, de súbito, que seria o protagonista de um espetáculo.
- O que está acontecendo?, perguntou o garoto, o rostinho cheio de medo.
- Qual é mesmo o nome do senhor?, perguntou Smet, rispidamente.
- Re-René Des-Descartes, se-senhor, respondeu, entre gaguejos.
- Olhe só!, exclamou o professor, com um sorriso zombateiro - Parece que o nosso Aristóteleszinho desaprendeu de súbito a retórica...
Foi para a parte de trás da cadeira e prendeu o pescoço de René com uma grossa tira de couro. Ele tentou se soltar, mas estava completamente imobilizado.
- Precisarei ensinar ao nosso Aristóteles uma breve lição de retórica, disse Smet, agora se dirigindo aos alunos como quem fala para a audiência de um teatro - Vocês dois, imbecis - disse para dois alunos que estavam na ponta do anfiteatro - Vão até a sala e tragam um baú que está no armário. Sem demora!
Os dois se levantaram em um salto e foram correndo obedecer o professor.
- Agora você, caro Aris-Aris-Aristóteleszinho, zombou o professor. Vou lhe explicar brevemente que a retórica consiste de cinco partes... Primeiro, a Inventatio... É nesse espaço que o senhor filósofo, com muita prudência, irá procurar na sua cabecinha oca os ensinamentos que à muito custo eu irei ensinar-lhe...
Os alunos chegaram carregando o enorme baú, cada um segurando uma alça, quase sucumbindo ao peso do objeto. Soltaram o baú ao lado da cadeira e sentiram um alívio tremendo. Não sabiam se podiam voltar aos seus lugares, então ficaram parados, visivelmente desconfortáveis - um cruzou os braços, o outro ficou olhando de um lado para o outro - a alguns passos do baú.
- Vamos, seus debilóides!, gritou o professor. Abram o baú, vamos! Não temos todo o tempo do mundo!
- Mas mestre... Está fechado com um cadeado...., disse um deles, timidamente, a cabeça baixa.
- Céus, dai-me forças, disse o jesuíta para si mesmo. Vá até minha sala, tome a minha chave - e entregou para o rapaz uma grande chave de ferro que retirou de seu bolso -, abra a primeira gaveta e traga de lá uma chavezinha prateada... Rápido!
E o rapaz saiu correndo.
- Bom, Aristóteles, vamos retornar à lição... Já falei que essa sua cabecinha oca em breve estará cheia de palavras e ideias, mas não palavras e ideias que você trouxe da pocilga em que vivia... Me diga, o que faz seu pai, moleque?
- Ele é advogado...
- Advogado? Smet arregalou os olhos, abriu a boca, deu um risinho.
- É conselheiro do Parlamento..., disse baixinho René.
- Conselheiro..., repetiu o professor, sem desarmar o sorrisinho maldoso. Então o nosso aspirante à filósofo é filho de um funcionáriozinho...
O professor foi até a macieira que havia ali e arrancou um fruto. O rosto pálido de René estava vermelho como ele. O tempo todo havia passado de cabeça baixa, mas enfim tomou coragem e olhou os demais alunos. O que será que pensavam desse espetáculo macabro? E para seu espanto, pareceu que muito deles achavam graça, pois riam, apontavam para o pobre René, e diziam palavras que ele não podia ouvir, mas que presumiu serem piadas e zombarias. Um ou outro aluno estava quieto, olhando para qualquer lugar indefinido, tentando pensar em qualquer coisa que não naquilo que ocorria diante dos olhos de todos, mas a grande maioria parecia não só aprovar o que ocorria, mas também se deleitar.
- Você sabe que deveria estar em um almoxarifado, não sabe?, disse com a língua entre os dentes o jesuíta. Seu lugar não é aqui, mas junto daqueles árabes miseráveis que vendem quinquilharia, dos serviçais de sangue sujo que só servem para arrumar prateleiras, fazer contas, somar e dividir, auferir os lucros e, no melhor dos casos, quando aprendem uma ou duas palavrinhas, redigir essas papeladas inúteis, como as que seu papai e tantos outros fazem dia após dia, com o simples intuito de abreviar o trabalho daqueles que realmente tem algo a dizer, e que precisam gastar tinta e pensamento com assuntos de real interesse...
Fez uma pausa e estudou o rosto do aluno, queria observar nele os efeitos de seu discurso. Ficou satisfeito em ver que ele estava à beira das lágrimas.
- Muito bem, continuemos a sua lição... Depois da Inventio, Aristóteles, o que virá?
René nada respondeu, então Smet, em um movimento brusco e inesperado, adiantou-se para bem perto dele, apertou seus ombros com forças, sacudiu a criança feito um maníaco e começou a gritar:
- Vamos, imbecil, me responda! Você não sabe qual a parte seguinte da retórica? Não sabe?
- É a- É a... A dispositio, senhor, respondeu René com um fiozinho de voz. Agora as lágrimas escorriam de seus olhinhos cuja cor não podemos verificar na iconografia disponível, mas cuja descendência gaulesa permite conjecturá-los em tons idilicamente azuis,
- Agora me explique o que raios é a dispositio, seu merda!
- A dispositio, senhor, disse René pausadamente, tentando controlar a respiração pesada, tentando não deixar as lágrimas jorrarem, mas o esforço foi em vão. Seus membros, amarrados à cadeira, começaram a tremer, e o menininho desatou em um choro copioso, intervalado por altos soluços.
O professor deu-lhe um tapa na cara de René, que estacou, como se recuperasse a razão.
- A dispositio, senhor, disse entre lágrimas e tremiliques, consiste na organização, na correta organização do discurso, senhor, a dispositio é onde intervém a lógica, e onde também participa a composição do estilo adequado, conforme adequado adequado ao público, mestre...
O jesuíta se afastou. Se antes preservava uma feição zombeteira, e sua malícia estava nos trejeitos de bufão com que humilhava René, agora parecia verdadeiramente transtornado, pronto para cometer uma verdadeira atrocidade. Respirou fundo, e sem dar explicações, afastou-se do centro da cena. Atrás de um arbusto, oculto da visão de todos, colocou a mão por baixo da batina e apertou com força o silício que levava preso à perna. Ele fez uma careta de dor, e então apertou mais forte, até sua boca deixar escapar um gemido. Se recompôs, e tentando manter a respiração constante, calma, reaproximou-se da cadeira, enquanto entoava em sua cabeça um dos mantras compostos por Ignácio de Loyola.
"Tomai, Senhor, e recebei Toda a minha liberdade, a minha memória, O meu entendimento e toda a minha vontade, Tudo o que tenho e possuo; Vós mo destes; a Vós, Senhor, o restituo; Tudo é vosso, disponde de tudo Segundo a vossa vontade; Dai-me o vosso amor e a vossa graça, Que esta me basta."
A quem se dirigia afinal o mestre-régio Smet ao mentalmente repetir estas palavras que conhecia de trás para frente? Ou ainda, com que intuito repassava aquela oração? O certo é que não se detinha em nenhuma palavra. Era mesmo como se elas não existissem, como se fossem signos em brancos, como uma cor que os olhos enxergam no pôr-do-sol mas que o intelecto não registra por não ser capaz de distingui-la de outras cores. Só que no caso da oração, o resultado fora conseguido pela via contrária, pela repetição infinita, que transformou a oração em uma segunda natureza de seu pensamento. Estivesse conversando com algum colega, ensinando a seus alunos, realizando a confissão, fazendo suas necessidades espúrias de ser humano - mijando, cagando, se masturbando escondido de madrugada - a verdade era que Smet, o tempo todo, sempre estava orando. Era involuntário, pois mesmo quando não percebia, o mantra ensinado por Ignácio de Loyola ressoava em sua cabeça como o tic-tac mecânico de um relógio em atividade. Era como se aquelas palavras fossem as paredes, o chão e o teto de sua mente, a casa em que viveu desde o primeiro dia de sua vida, e que por isso, na maior parte do tempo, pelo simples hábito, pela simples necessidade que os sentidos tem de relaxar e simplesmente não registrar o que se passa conosco, Smet não percebia existir, mesmo que fosse dentro dessas palavras que vivesse, que em suas paredes pendurasse seus retratos, em seu chão estendesse o colchão fino em que dormia suas curtas horas de sono, em cujo teto pendurava o candelabro em que toda noite iluminava a leitura atenta que fazia de São Tomás de Aquino.
Lembrou que tinha a maçã na mão e deu uma mordida. Andou lentamente de volta à clareira, saboreando o delicioso fruto. Quando reapareceu, o vozerio dos alunos diminuiu. Mordiscando a maçã circularmente, as mordidas esculpindo no fruto uma nova forma feita ao redor do caule, ele caminhou como um sonâmbulo, alheio à tudo, e parou em frente da cadeira.
- Onde está o outro com a chave?, perguntou, inexpressivo, sem sequer olhar ao rapaz que havia carregado o baú, e que continuava ali de pé, à espera de novas ordens do mestre.
- Quer que eu vá buscá-lo?
- Pois vá já...
E se dirigiu para René, os olhos vermelhos de tanto chorar, o nariz escorrendo, mas agora mais calmo, ou pelo menos sem energias para manifestar o profundo sofrimento que sentia em seu interior.
- Continuemos a lição?, disse, e antes de morder o último pedaço da maçã, sorriu, e ofereceu o fruto para o menino. Quer?, perguntou para René, que se contentou em balançar negativamente a cabeça. Então Smet mordeu o pedaço e atirou os restos para o alto, em um gesto displicente.
- E então?, disse, olhando com seriedade para o garoto.
- Elucutio, disse René secamente, com uma segurança que surpreendeu a ele próprio.
- Continue, vamos.
- A Elucutio consiste na adequação entre as palavras empregadas e a dicção do orador. Uma história trágica impõe ao orador um tom específico, a sátira impõe outra voz. E devemos saber flutuar entre diferentes modulações, conforme a necessidade das figuras postas no discurso.
O jesuíta ficou olhando para ele, inexpressivo. René continuou:
- Os retóricos aprenderam muito com os atores e dramaturgos, disse o menininho, olhando para a macieira que havia ali próxima. Seus olhos faiscavam de raiva.
- Não se preocupe, meu pobre filho de contínuo, imagino que nunca passaste por uma situação em que precisou pensar tanto... Sei que sua cabecinha só deve estar habituada a fazer o dois mais dois com que fecha as contas do papai, a contar as despesas e calcular os gastos que os curtos ganhos lhe impõe...
- Memória, continuou o garoto, como se não tivesse ouvido nada. É preciso ter o discurso aprendido, se não de cor, conhecer todos os caminho que o orador irá atravessar, cada tópica, cada imagem, tudo deve estar claro em sua cabeça...
E enfim chegaram os dois alunos, um deles com o braço erguido, a pequenina chave de prata refletindo os raios de sol e brilhando entre seus dedos magros.
- Perdão, mestre, a fechadura estava velha, precisei abrir com cuidado e...
- Que seja!, e impaciente, o professor arrancou a chave da mão dele. Foi ele próprio até o baú e, ajoelhado sobre a relva fresca, enfiou a chave no buraco do cadeado. Quando ela girou, o mecanismo fez um clic agradável e a trava se abriu. Em um gesto apressado, levantou a tampa e examinou, sorrindo, seu interior.
René, de onde estava, não conseguia ver o que havia no baú, mesmo que se esforçasse o máximo para esticar o pescoço bem-amarrado à cadeira. Os demais alunos, de seus lugares no anfiteatro, também não podiam ver o que havia ali dentro, e a expectativa fez com que o jardim fosse tomado pelo quase completo silêncio. Apenas os animais ousavam emitir algum som: alguns miquinhos conversavam numa árvore próxima, o mesmo rouxinol de antes, agora pousado na cadeira de metal, cantava baixinho. Insetos zumbiam. Os sapos do lago ali próximo coachavam. Algum casal de gansos grania os ruídos de uma cópula violenta.
- Caro René Descartes... Vamos terminar sua lição..., disse o mestre, de maneira fria. Peguem a máquina, ordenou aos seus dois ajudantes, que boquiabertos meteram as mãos dentro do baú e retiraram de lá um enorme bloco de cobre. A fronte ostentava um delicado trabalho de metalurgia. Havia uma gravura de cobre, composta por ligas retorcidas e entrelaçadas no formato de serpentes. Eram inúmeras, e se misturavam e enrolavam umas nas outras, de modo a tornar difícil, pelo menos para o olhar breve ou distraído, delinear onde principiava uma e terminava outra. Numa das laterais do bloco, uma enorme manivela fora acoplada.
- Dai-me o vosso amor e a vossa graça, que esta me basta, sussurrou o jesuíta, enquanto acoplava uma espécie de coroa na cabeça de Descartes.
- O que vai fazer comigo?, perguntou o menininho, novamente assustado.
- Vamos, a quinta parte da retórica, ele disse mecanicamente, enquanto ligava fios de cobre entre a máquina e a coroa.
- Por favor, me deixe em paz, eu prometo nunca mais falar nada..., implorou René, as lágrimas de novo escorrendo de seus olhinhos azuis, já avermelhados de tanto chorar.
- A quinta parte, repetiu o mestre, indiferente ao pedido do aluno.
René Descartes começou a chorar alto. Alguns alunos ainda riam e apontavam, mas a maioria agora estava em silêncio. Ele voltou a implorar, mas tudo que Smet dizia era "a quinta parte", "a quinta parte", enquanto girava delicadamente a manivela.
- Enquanto a máquina ferve, vou explicar-lhe então sobre a última parte da retórica, menininho... Actio, ação... Sim, os retóricos devem ter aprendido muito com os atores. Não é necessário condicionar somente a mente, mas todo o corpo. Para bem falar, para bem pensar, para bem viver, filho de funcionário público, não basta conhecer, não basta estudar todas as noites , não basta ter as palavras na ponta da língua... É preciso, seu merdinha, saber se comportar. Por isso, a ação é o cume da retórica. A parte mais difícil de ser ensinada, pois talvez não seja passível de ensinamento.
Olhou para o menino choroso com desprezo. A máquina começou a soltar vapor pelas aberturas minúsculas que haviam na epiderme metálica das serpentes.
- Os alquimistas desenvolveram essa brilhante arte que, pelo domínio dos elementos, muito especialmente do fogo, podemos alterar, com grande margem de eficácia, os processos que atravessam a alma de qualquer homem, seja o príncipe mais ilustre ou o mendigo mais imundo...
Fez uma pausa. Alguns poucos riam, mas suas vozes eram abafadas pelo sopro ruidoso da máquina, que começava a apitar como uma chaleira. Os sons dos animais e da natureza também foram abafados. E quando René Descartes começou a gritar, com toda calma do mundo, o mestre Smet adiantou-se e lhe amordaçou com um enorme lenço de seda roxo.
- É curioso, não é mesmo..., disse Smet para si mesmo, e na verdade ninguém poderia ouvi-lo, por conta do som da máquina. Na sua cabeça, repassava a oração de sempre, "Vós mo destes; a Vós, Senhor, o restituo; Tudo é vosso, disponde de tudo Segundo a vossa vontade...", mas sua boca pronuncia palavras outras, e mesmo seus pensamentos faziam reflexões diversas:
- Pelo calor irradiante da chama, que acende e apaga, que queima e recria o vazio do ar... Pelo curso irrefreável do rio, que todo dia passa de novo, mas, sempre novo, faz e desfaz a dureza da terra... E pela arte combinatória dos elementos, controlarás os órgãos dos pensamentos, fazerá flutuar os humores, alterará a disposição do sangue, da fleuma, da bile amarela e negra... Se a máquina do corpo, devidamente manipulada - nesse momento olhou para René, que não mais gritava, mas babava e se sacudia, ou tentava se sacudir, já que estava bem amarrado, em uma crise epilética - mesmo o mais imundo mendigo... se devidamente transformado... poderia ter o espírito do mais nobre príncipe.
E como quem conclui, disse:
-Solve et Coagula.
Girou a manivela no sentido contrário, e o vapor gradualmente cessou. Sons da natureza, do rouxinol, dos insetos, dos alunos cochichando. René está desacordado, padecendo de sonhos estranhos.
- Guardem de volta a máquina. Usem a luva de couro para não se queimar, ordenou para os ajudantes, que prontamente obedeceram e guardaram a máquina no baú. A relva, onde antes ela estava, agora exibia marcas escuras, que seguiam o contorno da máquina.
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