segunda-feira, 17 de abril de 2023

A HISTÓRIA VERDADEIRA DE RENÉ DESCARTES, II. ROUEN, 1625. A CHANTAGEM DE LUCRÉCIA. MEMÓRIAS ESQUECIDAS DOS PAÍSES BAIXOS. RESOLUÇÃO DO PROBLEMA..

Quando começou a viver essas aventurazinhas com Beeckman? A verdade é que René já não se lembrava mais de muita coisa. O aprendizado, naqueles duros anos que passou no colégio jesuítico, havia como que afetado a sua capacidade de produzir lembranças. 

Demoraria muitos anos para que René desse conta de que a longa estadia no internato dos jesuítas, aqueles tormentosos e longos nove anos, tinham não somente acrescido à sua memória o conhecimento de que o movimento era característica dos corpos imperfeitos, e que era exclusividade divina a eterna e imóvel perfeição, e que a verdade somente poderia ser encontrada se dialeticamente encadeada pela razão sob a forma de estritos silogismos, mas que mesmo assim os homens mais rudes, seres abjetos, condenados a se mover não pelo poder bem-educado intelecto, mas pelo automatismo vil das paixões e da carne, estas pobres almas somente poderiam conhecer o bem e ser sensíveis à verdade se esta fosse posta na forma adequada, persuasiva, e por isso por tanto tempo tivera que ler e repetir as palavras de tantos oradores e poetas, coisa que René achava, além de aborrecido, anti-filosófico, pois como Platão, se fosse rei, expulsaria de seu reino esses sofistas que usam do verbo para enganar e persuadir, e assim, pelo poder da palavra, tomar conta da razão dos mais fracos e tolos.

Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo: Se não sou capaz de mover o céu, moverei portanto o inferno. 

E no entanto sua resistência à poesia, foi essa cena, do embate entre Juno e Enéias, lida e relida na Eneida durante as classes até que ficasse impressa palavra por palavra em seu coração, que sem que René sequer percebesse, pois sua duração foi menor do que a de um milésimo, que atravessou a consciência de René ao ouvir a ameaça da Lucrécia.

- Se não querem que saibam de suas aventurazinhas com Beeckman, se querem manter aquelas noites em segredo, é melhor me pagar de uma vez, disse a prostituta, a fronte crispada, feroz como uma leoa que acua a sua presa. Sei muito bem que agora frequenta a corte do rei Federico, e se não pagar o que exijo, todos irão saber dos seus segredinhos de pederasta.

René estremeceu, e teve mesmo de conter as lágrimas. Não, ele não podia perder a posição que, à tanto custo, conquistara na corte de Helena de Bourbon, esposa do rei Federico e benfeitora de artistas e filósofos. Só ele sabia o que havia vivido para que pudesse chegar ali, em um ambiente propício para seu trabalho, um lugar que sua mente brilhante era valorizada não só por meio de uma elevada quantia de ouro, mas pela admiração sincera dos cortesões. Nunca antes na vida, antes de frequentar a corte de Helena de Bourbon, que René pudera se dedicar àquela única coisa que amava verdadeiramente: pensar. 

Não, nunca mais quero retornar aos ofícios manuais e burocráticos, de gente vil e rude, pensava René Descartes enquanto se esgueirava pelas ruas escuras de Haia, iluminado somente pela luz da lua e das estrelas. Com o coração disparado e os pensamentos desordenados, começou a contabilizar o quanto teria que gastar pelo silêncio de Lucrécia... Santo Deus, que puta mais ordinária e mesquinha, como podia esperar que ele lhe desse tanto dinheiro, quase todas as suas economias que fizera durante os anos que se rebaixou a trabalhar no exército... 

Como é bem conhecido pelos historiadores, por mais de três anos, René vendeu os serviços de sua mente brilhante para o exército dos Países Baixos, comandado pelo príncipe Maurício de Nassau. O destino, embora tivesse agradado ao pai, que lhe escreveu cartas lhe felicitando pelo bom salário que arranjara, lhe era no entanto extremamente aborrecido. 

René sempre foi um sujeito quieto, cujos sentimentos preferia camuflar sob palavras muito bem-treinadas para dizer não aquilo que sentia, mas o que achava que os outros deviam ouvir. Se examinarmos seus escritos, podemos perceber o quão recorrente que o filósofo sujeitava-se a uma posição de inferioridade, o quanto afirmava-se tolo e humilde. A verdade, contudo, é que as enormes horas em que passou cultivando sua razão entre os livros lhe desenvolvera uma vaidade secreta, que comunicou somente aos muitos poucos que mereciam o privilégio de sua confissão. 

O documento que me serve de fonte é uma carta escrita a seu irmão Pierre, datada de 25 de dezembro de 1919. O irmão mais velho seguira os passos do pai, e por conta de seu enorme talento, em pouco tempo já havia se tornado um advogado de sucesso, de grande renome em Poitiers, onde a família Descartes vivia na época. O propósito da carta, como permite imaginar a data em que foi escrita, era enviar à família os votos de Natal e Ano Novo, mas ao longo das duas páginas, escritas em um francês não apenas desleixado, mas francamente vulgar, René admitiu ao irmão o quanto odiava ficar sentado naquela salinha minúscula, o seu magnífico cérebro gasto em tarefas tão banais como a administração de suprimentos alimentares, a contenção de despesas com salários e armamentos, o cálculo de quantos homens seriam necessário para a realização próximo cerco... 

Também admitia que, para sobreviver a esse estado lastimável, estava bebendo muito, e que todo seu dinheiro era gasto com vinho e prostitutas. (No final da carta, quando solicita ao irmão uma módica quantidade de dinheiro para quitar uma dívida, diga-se de passagem, a linguagem torna-se subitamente suntuosa, e Descartes escreve os dois últimos parágrafos como se fosse um jesuíta em missão pelo Novo Mundo a solicitar de um cardeal europeu algum benefício).

Algumas semanas depois chegou a resposta do irmão, e além de conceder o dinheiro requisitado, também concordou em não revelar ao pai sobre a vida que René estava levando. A benevolência do Pierre, contudo, tinha limites: advertiu o caçula com palavras duras, e lhe ameaçou deixar o pai a par de tudo se em poucos meses René não se endireitasse e melhorasse sua situação.

As palavras devem ter surtido algum efeito, pois alguns meses depois Renpe foi promovido para inspetor e projetor de fortificações. O trabalho era mais agradável, e o principal, lhe concedia algum tempo ocioso para que pudesse voltar a estudar filosofia, matemática e física. Também passou a moderar os apetitas de suas paixões, a diminuir a frequência nas tavernas e a salvar algum dinheiro para o futuro. 

O cargo de engenheiro, embora fosse mais agradável que o anterior, contudo, ainda lhe rendia objeções. Era ainda simples demais, entediante demais, para seus gostos requintados de filósofo.

- Ao fim e ao cabo, nada mudou, Beeckman, confessou Descartes para seu novo colega de trabalho, com quem havia começado a nutrir uma estreita amizade. O que fazemos pode até ser útil para a sociedade, mas é um trabalho pedestre, tão simples que qualquer um que domine a ferramenta da aritmética e da geometria poderia executar... Continuo um simples operário do pensamento, quando poderia estar alçando voos mais altos, alcançando o céu das ideias, concluiu René, pesaroso, e virou mais uma taça de vinho.

A melhora no ânimo de René, durante os anos em que trabalhou como engenheiro, também poderia ser explicada pela doce amizade que passou a partilhar com Isaac Beeckman. De origem calvinista, filho de um comerciante bem-sucedido de Middelburg, Beeckman já era um engenheiro experiente, e fora apresentado a René como responsável pela supervisão de um importante empreendimento militar. Juntos, os dois projetavam a poderosa fortificação que seria construída para o cerco e invasão que a Companhia Holandesa planejava contra as colônias portuguesas localizadas no ultramar. 

Logo de imediato, os dois se deram muito bem. Ambos eram grandes entusiastas da física e da matemática, e também - isso talvez fosse o principal - compartilhavam os dois do vicioso amor pelo vinho. Assim, junto de Beeckman, as noites se estendiam em tavernas e prostíbulos, e entre bebedeiras de vinho e discussões eruditas sobre a natureza, também vinham as confissões, que geralmente alcançavam o espírito dos dois quando, nas altas horas da madrugada, já incapazes de pensar as hipóteses heliocêntricas de Giovani Bruno, ou as equações de terceiro grau de Tartaglia e Cardano, se entregavam aos assuntos mais toscos e sinceros, capazes de edificar uma relação duradoura.

Mesmo depois que René se demitiu do exército e passou a viajar pela Europa, em busca de continuar seus estudos, continuaram a se corresponder por carta. Já fazia alguns anos que não se encontravam, e embora jamais deixasse de vez ou outra pensar no amigo, preferia pensar nas longas conversas, no grande aprendizado e estímulo intelectual que deram um ao outro nos anos que passaram trabalhando juntos. 

Embora nunca tivesse perdido a estima pelo amigo, a verdade é que René buscava esquecer alguns detalhes daquela velha amizade René, e embora vez ou outra eles voltassem a sua cabeça com clareza, como vagalumes que acendem e apagam no meio da escuridão, quase sempre conseguia esquecer com sucesso, talvez por estar sempre ocupado com sua pesquisa filosófica, talvez por aptidão natural ou adquirida para não se perder entre os vícios e paixões.

Só que por mais resistente que fosse, quando Lucrécia adentrou em seu confortável aposento, localizado no palácio de Ruen, foi incapaz de deter a marcha das memórias. Como se não tivesse deixado de pensar naquela noite por um dia, René lembrou de quando, após saírem caindo de bêbados de uma taverna, Beeckman retirou de uma sacola um estranho objeto que disse ter adquirido de um mercador. Levou Descartes por dentro da noite estrelada, até atingirem o cume de uma distante torre que se localizava numa parte erma da cidade. 

Diante de uma enorme janela, ficaram por algum tempo os dois, vendo as estrelas. René não estendia nem o intuito do amigo, e muito menos para que servia aquele estranho objeto que agora ele lhe revelara, mas, subitamente tímido, preferiu esperar que Beeckman quebrasse o silêncio, o que ocorreu depois de alguns demorados segundos:

- Esse objeto magnífico que tenho em mãos, meu caro René, explicou-lhe Beekman, é chamado de perspicillum. Observe de perto, vamos, tome em suas mãos, pode segurá-lo, mas com delicadeza, tome algum cuidado, pois este objeto que tens diante dos olhos não é somente raro, mas extremamente frágil. Veja, não precise se preocupar tanto. Segure mais de perto. Veja que de cada lado do tubo de metal há duas lentes de vidros, lentes convexas de diferentes tamanhos. Vamos, grude seu olho azulado pelo seu sangue gaulês na lente menor, e aponte o objeto para o céu. 

René executou aquele movimento com as maneiras desajeitadas de um bárbaro. Tinha medo não somente de danificar o objeto, tão caro ao companheiro, mas também uma espécie de receio que sentimos diante de algo que não compreendemos. O estranhamento tornou-se ainda maior quando posicionou o olho na lente menor e apontou o objeto para o céu e no entanto nada viu ou percebeu; no melhor dos casos, havia uma mancha escura, que pareceu a René não somente desinteressante, mas de mau gosto. Beekman disse que veria algo que lhe deixaria fascinado. Será que era simplesmente isso? Ou será que René era estúpido e não estava entendendo a poesia de aquela mancha negra continha?

- Hum..., resmungou René, esse tom de preto é mesmo formidável...

- Seu idiota, olhe direito!, disse Beeckman, rindo, e apontou o telescópio na direção da estrela mais brilhante da noite, que desde os gregos antigos chamavam pelo nome de Sirius. E assim que sua vista tocou o corpo luminoso da estrela, René sentiu algo dentro dele estremecer. As suas mãos tremeram, mas o sorridente Beeckman segurou-lhes delicadamente, fazendo com que mantivesse o foco naquele espetáculo do mundo natural. 

René estava simplesmente boquiaberto.

- Santo Deus... É mesmo isso que estou pensando?, perguntou para o amigo, incrédulo diante daquilo que seus sentidos lhe ofereciam com o máximo de precisão produzida por aquela máquina óptica.

Beeckman riu, com gosto. Se afastou para outro canto da sala, e com gestos canastrões, como quem tenta imitar o ofício de um ator ou aedo, passou a traduzir ao francês, por sua conta e risco, um trecho da Odisseia:

- No décimo segundo dia chegamos à ilha de Trinácia, onde o sol pastoreia seu gado sagrado, ovelhas e bois em grande número. Lá, permanecemos dois dias inteiros e duas noites, e quando o terceiro dia nasceu, lançamos ao mar novamente. Mas Zeus enviou uma tempestade terrível contra nós, que soprou furiosamente por nove dias, e no décimo dia chegamos à terra dos Cíclopes, que é uma terra selvagem, habitada por homens selvagens e ferozes. Lá, viemos face a face com a estrela de Sirius, que brilhava com seu esplendor mais radiante.

Descartes retirou por um segundo olho do telescópio para espiar o amigo:

- Isso é do Canto XII da Odisseia?

- Exatamente, disse Beeckman radiante.

E depois de um gesto da cabeça, indicando o céu estrelado lá fora da janela, Descartes pergunta:

- Então isso que estou vendo é mesmo Sirius?

Beeckman assentiu com a cabeça, e René, assombrado, colou novamente o olho na lente do telescópio. Estava assombrado com o que tinha diante da vista. Quando era um menino de sete anos, logo antes de entrar para o colégio, ele e seu irmão mais velho Pierre se sentaram nas colinas de La Haye, e com paciência, ensinou ao menino o nome e os formatos das principais constelações, Órion, a Ursa Maior, Escorpião, "e aquela ali, na cabeça da constelação do Cão Maior", ele lembrou o que ensinara Pierre, palavra por palavra, "se chama Sirius, René, palavra que em grego quer dizer brilhante". Sim, desde a sua mais tenra infância que René se sabia cercado por estrelas e meteoros, mas nunca tinha visto algo assim, nesse formato tão peculiar que lembrava um vagalume quando acende no ar, e o que mais surpreendia era a cor, que não era branca, como quando vista de longe, mas de um azulado tão belo que, mesmo depois de anos estudando retórica e eloquência, lhe faltaram palavras para dizê-lo. 

- Sirius é azul, Beeckman..., sussurrou, encantado.

Beeckman sorriu, lhe deu tapinhas no ombro e se ajuntou perto dele, para também observar o céu.

- Sim, meu amigo, disse Beeckman, Sirius é azul, e é linda, e quando uma mão de Beeckman escorregou pelas costas de René, a outra bruscamente puxou a face do filósofo para longe do telescópio, e em um gesto rápido, que René só registrou quando já sentia o toque molhado e áspero da língua de Beeckman, se beijaram.

O sino da igreja soou por dez vezes consecutiva. Descartes estava lendo em sua biblioteca um manuscrito redigido em latim, que um estranho mercador lhe vendera a um custo que lhe pareceu razoável a se pagar por uma provável falsificação. Dizia o mercador, um estrangeiro de sotaque que o filósofo não soube distinguir a procedência, que se tratava de um autêntico  relato sobre as maravilhas do Novo Mundo, escrito por um jesuíta português enviado ao Novo Mundo para a conversão de alguns gentios. Feito de papel, o manuscrito não era muito longo, e consistia em duas sessões, a primeira sobre a natureza do Novo Mundo; o segundo, sobre os costumes dos povos encontrados naquela região. 

É provável que eu não tenha tempo de ler a segunda parte, concluiu René depois de ouvir soar a última badalada do sino. Dentro de uma hora, assim que soasse pela décima primeira vez o sino da igreja, iria encontrar-se, conforme o combinado, com a prostituta Lucrécia, com o dinheiro por ela exigido. Se fosse um homem comum, é certo que a ansiedade não lhe permitiria retornar aos estudos enquanto esperava o desenlace de uma situação tão sinistra, mas a disciplina, duramente adquirida durante os anos de colégio, fez com que voltasse a ler a descrição da vegetação daquele continente distante como se nem lhe preocupasse o encontro iminente.

Sobre o manuscrito que Descartes teve em posse, é provável que fosse da autoria de Manuel de Nóbrega, ou então, o que é mais provável ainda, uma falsificação que tomasse o texto do padre jesuíta como base. O certo é que foi escrito com cuidadosa caligrafia, e intercalava os termos oriundos da língua local, grafados no alfabeto latino, que em seguida eram traduzidos para a língua sacra, que naquele tempo pensavam não somente denominar e se referir às coisas por meio da palavra, mas sim que a palavra era análoga em substância à própria coisa, e que mais do que sugerir, era capaz de inscrever sua essência. Descartes, durante a leitura, impressionou-se principalmente com os estranhos adjetivos que o escrevente empregou para descrever a cor das árvores, de seus frutos e flores, oriundos não só do latim e do grego, mas também do árabe, língua que Descartes nunca chegou a conhecer, e que por isso não podia compreender o que queriam dizer que cores estranhas eram aquelas caracterizadas como ambar, caffa, anil e ibrasil. 

Quando o sino voltou a soar, guardou o pergaminho na gaveta, perfeitamente convencido de que nada os sentidos poderiam assegurar ao conhecimento, já que a própria objetividade da visão era impedida por conta da confusão babélica das línguas. Vestiu seu sobretudo preto e um chapéu da mesma cor, pegou o embrulho que já havia deixado preparado, e saiu rumo ao encontro de Lucrécia. Quando a mão tocou a maçaneta, contudo, sentiu-se como se toda sua calma enfim esvaísse, e que aquele movimento simples, de fazer girar o trinco, já exigia demais de seu cérebro. Tentou respirar fundo, mas não conseguiu. Sentou em sua cadeira, começou a tremer. Com a mão ainda tremendo, abriu a gaveta e tirou de lá um frasco com um líquido amarelado. Rompeu o lacre e, em um gesto irrefletido, bebeu todo conteúdo de uma só vez, muito embora a orientação do boticário é que tomasse apenas algumas gotas misturadas ao chá. Abriu uma garrafa de aguardente e tomou um gole longo. Olhou-se no espelho e viu seu rosto, seus cabelos pretos escorrendo por baixo do chapéu. Em um tique nervoso, piscou repetidamente os olhos, passou a mão nos cabelos, ajeitou as vestimentas, e enfim tomou a coragem de sair da paz calma de sua biblioteca.

Se esgueirou para sair do palácio, não queria que ninguém reparasse na sua ausência. Depois de ter andado alguns minutos, percebeu que esquecera o pacote e teve que voltar. Aquilo lhe deixou ainda mais nervoso, mais o álcool e o elixir estavam começando a contrabalancear a tensão de seus nervos. Voltou à biblioteca, pegou o embrulho e saiu novamente, dessa vez com um passo mais apressado, muito embora não ignorasse a cautela que a missão exigia.

Longe dos limites do palácio, a escuridão facilitou-lhe a discrição. Por entre as ruas sombrias, como sempre iluminadas somente pela luz da lua e por alguma luz de lampião que escapava das janelas de algumas casas, andou cerca de quinze minutos até chegar no beco, localizado em um ponto ermo e de má fama da cidade. No caminho, somente alguns bêbados, uma prostituta velha que ele recusou com um gesto ríspido, um cachorro latindo. Passou diante de tudo isso como se não existisse, como se fossem imagens de um sonho. A fronte de um Hermes de duas caras, contudo, talvez conta da penumbra que lhe acrescentava certo ar demoníaco, fez com que estremecesse de medo, mas ainda assim não interrompeu seu curso, e com um andar amolecido pelas substâncias químicas, como um bêbado ou um sonâmbulo, tentou recitar a oração tantas vezes repetida durante os anos de colégio, mas as palavras, naquele momento, lhe escapavam. A linguagem por tantos anos cultivada parecia não mais existir. Tudo que surgia em seu caminho então começou a parecer novo, como se não tivesse caído simplesmente na armadilha de uma puta ordinária em busca de dinheiro fácil, mas que aquilo era obra de uma criatura mais horrível, ainda mais cruel que aquela mulher, uma simples escrava da luxúria e da paixão, um demônio horrível e desfigurado que tivesse não somente lhe encomendado aquela súcubos vampira e explorada dos bons homens, mas sim lhe trancado em um mundo miserável em que nada valeria a pena, e tudo que René acreditava parecia se esvair enquanto atravessava por entre os casebres desgraçados pela miséria, e o som de um violão e a baderna dos bêbados, vindos de algum lugar próximo, lhe pareceu os indícios de um destino terrível, que ele para sempre estaria condenado. 

Pensou que no próximo amanhecer estaria para sempre livre desse pesadelo, que em breve retomaria o controle de sua razão, mas pensou também que estes pensamentos eram falsos, armados pelo desespero e pela iminência da morte, que saberia que em breve iria chegar. 

Avistou o beco em que havia combinado encontrar Lucrécia. Ele pareceu infinito, e enquanto atravessava com seu passo lento e torto de entorpecido, lembrou do paradoxo de Zenão, que transformava todo movimento em simples ilusão, e enquanto se aproximava da figura baixa e encapuzada de Lucrécia, pensou que nunca alcançaria a mulher, que jamais retiraria da bolsa a pistola que havia guardado para matá-la. Com sua razão perdida em meio de tais pensamentos, sua mão contudo agiu sozinha, e em um gesto automático pegou a faca e disferiu vários golpes contra a prostituta. Ela gritou, mas René sequer registrou que gritava. 

- Um rouxinol, disse, delirante, enquanto escorregava a faca para fora da carne da prostituta. Deixou Lucrécia agonizar até a morte, caída naquele beco escuro, entre gemidos e lamentos. 

Com seu passo de bêbado, refez o caminho de volta, sem perceber que errara o caminho diversas vezes. Para o desorientado Descartes, o retorno foi ate mais breve que a ida. Em seu delírio, assim como não existia mais espaço, também não havia mais tempo. 

Quando recobrou a consciência e deu por si, estava deitado em sua escrivaninha, o manuscrito do jesuíta todo respingado de sangue. Examinou suas mãos, sua roupa, igualmente imundas. Colocou a mão no bolso e sentiu o frio da saca. Ainda desorientado, tirou toda a roupa e jogou de qualquer em um canto de seu gabinete. De ceroulas, deitou sobre o sofá em que às vezes, entre os estudos, tirava breves cochilos. Imediatamente, seus olhos fecharam, e dormiu pesado como uma criança.


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