segunda-feira, 17 de abril de 2023

cordialidade e intelectualidade

vez ou outra resvalo na crítica de ser gilberto freyre péssimo crítico literário; o que é verdade, se entendemos que a crítica literária é um saber nascido do romantismo alemão e formalizado academicamente por meio de escolas como o formalismo russo, o new criticism, o estruturalismo e a semiologia francesa, etc. no caso de gilberto e de outros escritores, o ofício desenvolvido era um outro, o de retratista; e a arte, ao invés da crítica literária, interessada em dissecar a linguagem, a forma, a função poética, as figuras da retórica, é antes a da composição do perfil, que se aproxima antes da historiografia exemplar, hagiográfica, do que as referidas práticas fundadas na autonomização da linguagem literária. um retrato dos nomes ilustres, dos grandes homens, que desde o século xix, recorrentemente partem para o ofício de poetas e escritores, o que muitas vezes fez-se misturar a arte do perfil com esboços impressionistas de crítica literária, mas sempre a partir da perspectiva de que a obra era extensão da personalidade grafada. para definirmos sinteticamente, se a crítica literária moderna está fundada na emancipação entre texto e psicologia, em uma espécie de retorno à arte retórica, o perfil trata-se antes de uma presopopeia do texto, em seu esforço de humanizá-lo, de fazer o branco do verso adquirir atributos morais, espirituais e até fisiológicos...

gostaria de escrever longamente sobre esse último traço, à respeito de uma "crítica fisiológica", um dos aspectos mais fascinantes dos perfis de gilberto freyre, mas temo me alongar muito - interrompi a leitura do retrato de oliveira lima para escrever esse fio -. ainda assim, não resistirei de fazer menção que, por exemplo, em augusto dos anjos, a doença não é somente do corpo, mas dos próprios versos: 

"O único livro de Augusto dos Anjos é intitulado "Eu"; e o seu "eu" pouco mais foi do que um conjunto de impressões e idéias de um mundo sentido e considerado através de órgãos doentes, de um sistema nervoso de tísico, de olhos arregalados e de olfato e ouvidos aguçados pela tísica e pela falta de sono". (p. 134) 

um último comentário, para voltar aos estudos: o perfil, em oposição às ciências literárias, está estritamente associado a um uso que venho chamado de "bacharelesco" do texto: se a crítica literária moderna se quer científica, impessoal, o perfil é uma arte associada a um antigo modo de produção intelectual, muito diverso da ideologia democrática que rege a produção das universidades, e sim associado ao mundo intelectual e político das antigas aristocracias, que já durante a vida de gilberto - especialmente durante o estado novo - entram em decadência por meio da modernização dos aparelhos do estado, o que inclui a transformação de um sistema escriturário ainda enlaçado com os laços de amizade e inimizades pessoais, de uma elite aristocrática detentora dos meios de produção do conhecimento - e que por isso venho me referindo a esse sistema escritural como "cordial" - para o que seria o nosso atual modelo, hegemônico: o da universidade baseada na profissionalização dos escritores, na burocratização e impessoalização das relações, na gradual, mas incontornável ascensão de parâmetros como produtividade e quantificação da produção, etc.

evidente que ainda existem traços dessa espécie de aristocracia, de uma sociedade de amigos, dentro da atual universidade; apenas sinalizo que, há uns cem, cento e vinte anos atrás, o negócio era um outro, e esse negócio, distinto do de hoje, explica não só sobre as características formais de um texto - que é, digamos, o objeto de interesse das ciências literárias e da história intelectual - quanto também dos usos extra-textuais que perpassam esses textos - interesse daquilo que chamam de sociologia da literatura e da produção do saber -. importante que esses dois campos, muitas vezes antagonizados pela bibliografia, possam se entender ou se complementar de alguma forma.

enfim, paro agora de escrever para poder ler um pouquinho. abraços.

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