terça-feira, 18 de abril de 2023

ANTÔNIO CÂNDIDO, VOU COMER SEU CU

Principio esse brevíssimo ensaio, que terminarei em menos de dez minutos (o cuzinho de cândido, ainda pouco utilizado, é muito apertado, e meu pobre membro não irá resistir por muito tempo) não com palavras minhas, mas de seu discípulo, um tal doutor, Afonso Henrique Fávero, que por meio dos escritos do mestre, escreveu um excelente artigo sobre a ascensão d gênero memorialístico no Brasil ("Algumas memórias sobre Antônio Cândido).

Sem mais delongas, pois prometi não me demorar, passo à citação: "o crítico [Antônio Cândido] nos oferece uma explicação consistente para o crescimento desse tipo de produção [memorialística] ao tratar da situação de nossa literatura lá pelos inícios dos anos 70. Antônio Candido faz um balanço do panorama literário nacional daquela época, enfatizando que as tendências de vanguarda distanciavam-se da orientação que predominara até então “na própria concepção de literatura, pois não estão mais interessadas na transposição do mundo, e sim em criar pequenos mundos autônomos, que podem lembrar mais ou menos a realidade do mundo que conhecemos, mas não tiram disto o seu significado principal” (CANDIDO, 1977, p. 11). Um dos efeitos dessa exacerbação das vanguardas estaria no emprego não-referencial da palavra e na desarticulação da ordem sintática do discurso, especialmente na poesia, mas com reflexos que entram também pela prosa de ficção. A partir de constatações dessa natureza, o autor prossegue com suas considerações sobre o assunto e apresenta ilações, como a que segue: "[...] na medida em que é empurrada para fora da poesia e mesmo do romance, esta vocação referencial volta sob outras formas, para satisfazer a uma necessidade profunda da nossa sensibilidade e da nossa inteligência. Talvez seja este um dos motivos responsáveis por um traço característico da literatura brasileira atual: a importância crescente dos livros de autobiografia, gênero que sempre foi raro no Brasil, apesar de algumas exceções famosas". (p. 181 do referido artigo) A reflexão de Antônio Cândido sobre a popularização da memória é instigante, e reatualiza um antigo duelo dentro de nossa tradição literária: de um lado, estão os descendentes da escolástica, do barroco, mestres na arte da retórica e na eloquência, capazes de construir seu discurso por meio de rebuscados jogos com as convenções e figuras da linguagem. Do outro, a reação romântica, que despreza a retórica como artifício, e em sua adolescente rebelião contra a língua herdada e imposta pela tradição, descobre o valor das palavras sinceras, que passam não pela organização do intelecto, mas que correm do coração para a boca com a urgência de quem grita "eu te amo" para a amada que parece que irá lhe abandonar para sempre. Diante do barroquismo dos antigos escolásticos, de sua linguagem acessível somente aos iniciados, a língua do romântico parece aspirar à simples expressividade das palavras comuns, e por isso que do romantismo, o realismo é também filho, em seu desejo de abolir a complexa rede de figuras e referências da retórica, e no seu lugar instalar uma linguagem referencial, ordinária. percebemos, em um plano sociolinguístico, um segundo embate: entre a língua de uma aristocracia cultivada pela longa e dura disciplina da escolástica, mediante uma inspiração ideologicamente democrática: e os socialistas ambicionam escrever na língua clara e objetiva do proletariado; e os românticos, tocados pela ingenuidade do povo, com eles querem aprender a escrever em oralidade, pois nela descobrem as coisas em estado puro, desaculturado, sem as imposições duras que a educação violenta impôs a eles e a seus pais... de um lado, portanto, a artificialidade barroca da retórica. do outro, a sinceridade ingênua da oralidade, a objetividade de uma língua cientificamente referencial (os mais atentos saberão que executo um movimento heterodoxo, ao aproximar a ânsia pelo "Geist des Volkes" romântica da objetividade científico-naturalista que caracteriza o realismo, já que, historicamente, ambas estiveram em tensão: uma boa arqueologia, contudo, revela que muitas vezes a guerra trava-se sob o mesmo princípio). A colocação de Cândido sobre a ascensão da memorialística entre a escrita brasileira, portanto, antes de mais nada, reativa essa tensão entre artificialidade e sinceridade, como se o o "emprego não-referencial da palavra", e a "desarticulação da ordem sintática do discurso", operações caudatárias do modernismo literário e representativas de uma linguagem auto-referencial (os formalistas russos, em princípio do século, disseram que a função poética se caracteriza justamente sobre a auto-referencialidade, ou, para empregar de maneira mais heterodoxa a conceituação, de uma auto-reflexividade da língua), representariam uma nova artificialiação da literatura, sua nova aproximação a uma língua codificada (codificação, no entanto, muito diversa da velha retórica escolástica, e sim associada às vanguardas literárias gestadas principalmente na França - e talvez na Itália e Estados Unidos), e um distanciamento da linguagem referencial e objetiva institucionalizada a partir da novela real-naturalista no fim do século XIX. E então, "na medida em que é empurrada para fora da poesia e mesmo do romance", conforme percebe Cândido, "esta vocação referencial volta sob outras formas, para satisfazer a uma necessidade profunda da nossa sensibilidade e da nossa inteligência". (p. 181) A autobiografia, portanto, responderia a uma necessidade cultural por essa linguagem referencial, sequestrada pelos modernistas e seus joguinhos sintático-poéticos. Sobre a auto-biografia e os gêneros memorialísticos, não em discordância a Cândido, mas, pelo menos como forma de complementá-lo, gostaria de adicionar uma ou duas notas: Primeiro, que o gênero memorialístico, como Afonso Henrique Févoro sinaliza, imagino, glosando a Antônio Cândido, o gênero começou a ser gestado já no final do século XIX, mesmo que faça ressalvas sobre essa gestação: Refere-se a memórias "de um Francisco de Paulo Fereira de Rezende, de uma Helena Morley, de um Joaquim Nabuco", mas lhes descreve dentro de um "quadro de produções isoladas", pois "a produção dominante de nossa literatura no período de sua formação esteve (e, de certo modo, ainda talvez continue) voltada sobretudo para a poesia e a prosa de ficção". (p. 178) O longo descrédito das memórias e das narrativas auto-biográficas parece ser confirmado também por testemunho de Gilberto Freyre, que como se sabe amplamente, foi um dos primeiros pesquisadores a empregar sistematicamente a memórias e diários em seu trabalho de historiador (eis, de fato, uma das incontestáveis originalidades de CG&S e de outros livros seus).
Em artigo de jornal de data imprecisa (o recompilador, um dos mais fiéis discípulos de Freyre, Edson Nery da Fonseca, em uma nota de rodapé divertida e pitoresca, nos informa que naquele tempo não se importava ainda com a referenciação bibliográfica, e que recortou o artigo do Jornal do Comércio do Recife para sua coleção pessoal, mas sem anotar a data), mas provavelmente publicado em 1940, Gilberto Freyre afirma que os diários e memórias são de "tradição muito débil na nossa língua", e depois de fazer sua defesa como documento e material para pesquisas históricas e sociológicas, passa a discutir o desprazer que muitos sentem na leitura desse gênero de texto: "O gosto pela leitura de tais documentos [...] não é, entretanto, um gosto comum e fácil. Ao contrário: precisa, em geral, de ser adquirido. Adquirido aos poucos. É um tanto como o gosto pelo uísque e pela própria cerveja amarga em relação ao entusiasmo fácil - de adolescente, de moça, antigamente, de deputado federal brasileiro - pelo champanha doce e pelos vinhos de sobremesa. Mas é um gosto que, uma vez adquirido, nos enriquece à vida". (p. 195)
Parece que, de fato, o nosso gosto pela autobiografia foi uma aquisição histórica, um cultivo gradual que, pelo que me parece, hoje irrompe como um de nossos maiores prazeres literários, pelo menos se tomarmos como parâmetro o sucesso mercadológico e teórico daquilo que passou a se chamar de "literaturas do eu". No artigo de Freyre, no entanto, chama a atenção o fato de repetir, assim como Antônio Cândido, a bipartição entre o linguajar sincero do diário e a língua artificialmente trabalhada da literatura. Indigna-se Gilberto contra o "o leitor guloso de pitoresco ou ansioso de dramaticidade ou de regalo simplesmente literário ou estético", "guloso de pitoresco, de variedade, de aventura, de heroísmo, de drama"; e é contra tais valores que reinvindicará, como qualidades do diário e da memória diante da literatura, o registro "[d]o miúdo de preferência ao grandioso; em memórias onde se anotam as repetições da vida doméstica ou pessoal, de preferência aos fatos extraordinários ou excepcionais", e se empenha em reconhecer o gozo de "um memorialista pachorrento que nos fale, com voz igual e baixa, de nascimentos de filhos e de netos, de casamentos e mortes na família, de doenças predominantes em sua casa, de fugas de suas crias, de remédios caseiros e tradicionais, de intimidades suas e de parentes - tudo isso com simplicidade e mesmo com simplismo, com candura e até com ingenuidade". (p. 195) Da repartição que Gilberto faz entre a "sub-literatura" dos diários, e a literatura pitoresca, de aventura, heroica e dramática, acentua-se, novamente, o contraste entre uma linguagem direta e sincera, uma forma literária ingênua, e uma outra artificialmente trabalhada. Notória também a ênfase elogiosa que Gilberto faz sobre o aspecto repetitivo do diário, aspecto que Jorge Luis Borges, no famoso prefácio que escreve para a novela de Bioy Casares, "La invención de Morel", (lançada em 1940, coincidentemente no mesmo ano do artigo de Freyre), condenaria como característica da "literatura psicologica" de seu tempo, inclusive direcionando suas armas contra Marcel Proust: "la novela «psicológica» quiere ser también novela «realista»: prefiere que olvidemos su carácter de artificio verbal y hace de toda vana precisión (o de toda lánguida vaguedad) un nuevo toque verosímil. Hay páginas, hay capítulos de Marcel Proust que son inaceptables como invenciones: a los que, sin saberlo, nos resignamos como a lo insípido y ocioso de cada día". Lembremos que Freyre sempre se referenciou como um sociólogo proustiano: não por acaso, aquilo que para Borges é enunciado pejorativamente como "o insípido e ocioso de cada dia", é laureado por Freyre sob o símbolo da "repetição". Esses são casos de ressonância histórica, de contatos que, embora inexistentes na realidade física, contudo ocorrem por meio da virtualidade do mercado capitalista e de sua circulação verbo-ideológica. Se por um lado Gilberto Freyre louvava a sinceridade do diário perante a artificialidade da literatura, a reinvindicação de Borges ocorria em sentido oposto: e referenciava as literaturas mais claramente genéricas, artificiosas, por não dispensarem aquilo que lhe parecia importante para a tradição literária: a modulação dos acontecimentos, o trabalho com a narrativa, o desenvolvimento da trama. Estamos nos afastando demais de Antônio Cândido, e minha promessa de liquidar rapidamente com o assunto já foi por água abaixo. A longa volta, no entanto, me parecerá justificada para demonstrar como, no século XX, ainda se fazia essa distinção entre uma linguagem natural, espontânea, referencial, sincera, ingênua, e uma outra, artificial, literária, palavrosa, poética, auto-referencial, etc. É nessa perspectiva que Antônio Cândido irá executar seus estudos sobre o gênero memorialístico, tentando entendê-lo a partir desses dois polos, uma língua referencial, sincera, e uma outra, artificial e literária, até empurrá-los até o limite, ao ponto de sugerir que certas obras, como o "Diário Íntimo", de Lima Barreto, e "Infância", de Graciliano Ramos, "o autobiográfico pode funcionar como inventado" (p. 182). Seu comentarista, Afonso Henrique Fávoro, indica com perfeição a ocorrência desse limítrofe entre uma linguagem do real e uma linguagem da literatura: "a confluência do dado real e do ficcional", refere-se, em termos muito eloquentes. (p. 182) Se Cândido repousou sobre esse ponto limítrofe, a verdade, contudo, é que todos temos dificuldade em nos equilibrar por muito tempo na corda bamba, e segundo a narrativa de Fávoro, em escritos seguintes, Cândido parece concluir por uma espécie de revisão entre as tópicas da sinceridade e artificialidade: se como em Freyre a autobiografia era preciosa por seu privilégio de demonstrar o real, em Cândido, a tendência, mais do que se equilibrar, adquire superioridade, se não no plano expressivo, no plano linguístico:

"Candido faria mais tarde uma revisão desse ponto de vista, mantendo  o argumento central – “Mas ainda me parece justo o pressuposto básico, isto é, que ele passou da  ficção para a autobiografia como desdobramento coerente e necessário da sua obra”  (CANDIDO, 1992, p. 11) –, relativizando, entretanto, o peso literário de Memórias do cárcere, antes tomado em pé de igualdade com a produção anterior de Graciliano:
"O que não parece mais defensável é que as duas fases tenham o mesmo nível literário, como o ensaio deixa implícito. Se Infância o mantém, o mesmo não acontece com o livro puramente autobiográfico, Memórias do Cárcere, apesar da sua força e do valor como documento humano. (CANDIDO, 1992, p.11). (p. 184)

Seguimos os trilhos montados por Favoró, e chegamos na última parte de sua história sobre os estudos memorialísticos de Cândido, edificados sobre as memórias de Oswald de Andrade, "Um homem sem profissão". De cara, é particular por um motivo bastante específico: pois fora Oswald, junto de seus amigos modernistas, que iniciaram a aventura que, no princípio de seus estudos sobre o gênero memorialístico, começaram com a bagunça de desfazer tanto literatura real-naturalista, e também, importante lembrar, a literatura bacharelesca, associada ao ensino da retórica e da poesia clássica, que no princípio do século XX era representada pelos poetas parnasianos e simbolistas. Os modernistas, portanto, ao mesmo tempo que rompem com a linguagem referencialista dos real-naturalista, com seu "emprego não-referencial da palavra" e "desarticulação da ordem sintática", também se distanciam da concepção de linguagem literária, artificiosa, aprendida nas escolas de direito e medicina da época. Dizendo de maneira sumária, propõe de fato uma revisão dessas duas tendências que nesse ensaio empreguei para ilustrar a história de nossa literatura, a objetividade/sinceridade e a artificialidade/retórica, em tentativa, consonante às vanguardas europeias, de reinventar novas formas de se fazer poesia.
Não pretendo me alongar sobre que poesia seria essa, apenas fazer a ressalva de que os cortes nunca são tão bruscos, e que os modernistas, em sua busca por reinvenção, mantém-se bastante fiéis aos já antigo princípio de inventar por meio da descoberta e compreensão do brasil: a originalidade que buscam ainda está inscrita em certa "Geist des Volkes", mesmo que seus procedimentos e ideologias, como bem sabemos, se tornem bastante diferentes. Mas isso é assunto para outro ensaio. Voltarei a Freyre apenas para sinalizar uma banalidade sociológica: Gilberto Freyre foi descendente de uma aristocracia decadente, herdeiro dos antigo sistema patriarcal. Formado bacharel em direito, como todo bom filho de família, no exterior continuou seus estudos, e depois de alguns anos, se profissionalizou como historiador e sociólogo. Oswald de Andrade, o homem sem profissão, também se formou em direito, como na época todo bom filho deveria se formar. Herdeiro da aristocracia paulista, também pôde viajar pelo exterior, muito embora sua estadia tenha sido ainda mais de dândi do que a de Gilberto: não se empenhou em nenhuma formação universitária, mas sim preocupou-se em frequentar bons artistas e intelectuais. O modernismo de ambos foi igualmente a partir do patrimônio simbólico que trouxeram do exterior, e que no momento do retorno, lhe colocaram em choque com a aristocracia local, ainda cultivada artística e politicamente pelo bacharelismo e pela influência do ensino escolástico de Portugal. Ambos, igualmente, também estavam interessados em estudar e compreender o Brasil e o brasileiro, e apesar de Gilberto ter sistematizado essa pretensão em trabalhos científicos, isso nunca quis dizer que abriu mão da reflexão estética. CG&S, por exemplo, é livro moderníssimo no que tange à linguagem, e a estranheza com que foi recebido pela crítica de seu tempo prova muito bem. Algumas diferenças ligeiras, contudo, podem ser despreocupadamente assinaladas: O jovem Gilberto Freyre estava esteticamente interessado, primeiro, em uma aproximação com zonas linguisticamente excluídas da linguagem literária e oficial; o oralismo que atravessa sua escritura é parte desse sua convivência não só de boêmio, mas de etnógrafo, entre as classes baixas e os chamados marginais. Nunca, pelo que me parece, lhe interessou a reinvenção sintática que Cândido se refere, a não ser se fosse uma reinvenção da sintática da língua culta, escritural, pela sua hibridização com uma língua das ruas, oralizada. Se é certo que essa mistura trouxe resultados "modernistas", é um modernismo diverso de Oswald e de outros paulistas, que, inclinados pelas vanguardas europeias, passaram a desenvolver uma relação diversa com a escritura: cada vez mais autonomizada, cada vez mais imaginada, primeiro, como jogo linguístico, segundo, como código a ser desenvolvido dentro dessa tradição letrada, de profissionais literários, ambição que, creio eu, Gilberto jamais teve. Por isso que a escolha de Cândido por tratar das memórias de Oswald é muito interessante metodologicamente: Pois em um livro de memórias, tipicamente referencialista, organizado pelas tópicas da sinceridade e da ingenuidade, seu autor é um artista profundamente marcado pela experiência da escritura como um jogo com leis próprias, que muito embora insista nos enlaces com certa brasilidade, já é expressão - mesmo que deformada, mesmo que canibalizada - de uma instituição literária autônoma, exemplificada pela figura mallarmesiana da torre de marfim, ou pelo escritor flaubertiano, preso em seu escritório reescrevendo infinitamente em busca da sentença perfeita.

Por isso que Cândido, ao tratar das memórias de Oswald, já não pode mais distinguir entre vida e literatura, entre referencialidade e artificialidade: não é Oswald, afinal, uma espécie de homem-literatura, criatura-artifício? "Um escritor que fez da vida romance e poesia, e fez do romance e da poesia um apêndice da vida, publica as suas memórias. Vida ou romance? Ambos, certamente, pois em Oswald de Andrade nunca estiveram separados, e a única maneira correta de entender a sua vida, a sua obra e estas Memórias, é considerá-los deste modo". (p. 184)
Na primeira parte, quando a pesquisa do passado vai encontrar o próprio nascedouro das emoções, percebemos um trabalho atento da inteligência, organizando os dados da memória num sistema evocativo mais inteiriço. À medida, porém, que vai passando à idade adulta, e o material evocado corresponde a uma fase de personalidade já constituída, a elaboração sistemática cede lugar à notação. O impressionismo se desenvolve, por vezes, de modo a superar a própria verossimilhança, fragmentando a realidade na poalha dos dados da sensibilidade e desta maneira dando acesso a um mundo tornado equivalente ao imaginário da ficção. Aqui, nada separa Oswald de Andrade dos seus personagens. Ele se torna o seu maior personagem, operando a fusão poética do real e do fantástico. (Prefácio inútil. In ANDRADE, 1974) (p. 184) A continuidade do artigo de Afonso Henrique Fávero, embora recomende a leitura, não será mais necessária para o correr desse ensaio. Ainda tratará sobre o que Cândido escreveu depois sobre a memória de outros escritores: Drummond, Murilo Mendes, Pedro Nava e Apolonio Carvalho. o ponto que interessava chegar, contudo, está em seus comentários sobre Oswald de Andrade, em que Cândido atinge a aporia entre as velhas tópicas, vida e arte.
Ao transformar a pessoa Oswald de Andrade em personagem de si mesmo, a antinomia entre sinceridade e artificialidade já está caducada, mesmo que em análises vindouras, sobre outras memórias, Cândido volte a analisá-las a partir da antiga bifurcação que ele próprio esgotou. 
O gênero memorial, como demonstrei, floresceu muito recentemente no Brasil, a partir do século XIX, e muito atrelado, como Cândido já havia dito, ao romantismo, à linguagem sincera e desprovida de literatice.

Gostaria de acrescentar, como particularidade do gênero memorialístico, que apesar de erguido sobre tópicas anti-retóricas, aproxima-se muitas vezes de gêneros antigos, que faziam louvor à memória e exemplo de grandes homens. Não quero me alongar ainda mais, somente acrescentar como diferença é que, se na retórica clássica distingui-se entre vilipendiar ou elogiar o grande nome, na memória moderna, gestada no século XIX, o impulso que se percebe é de revelar o claro e o escuro, as divagações e contrastes de uma alma, e enfim, representá-la como figura humana. É, afinal das contas, um gênero erguido a partir da matriz romântica e realística, em que a distinção da retórica clássica entre linguagem e tema não procede mais.
A disseminação de uma ideologia literária da sinceridade e da referencialidade, em oposição ao que se caracteriza como a artificialidade ornamental da retórica, e que mobiliza o trabalho até mesmo de um grande crítico como Antonio Cândido, no entanto, funda-se no apagamento de que a sinceridade, a referencialidade, também são espécies de novas retóricas, e que ao invés de consistirem em formas privilegiadas de acesso à experiência, na verdade, são igualmente artifícios. Esse problema, que habita o coração da Gramatologia de Derrida, é o de se imaginar que haveria na língua uma relação empírica com o mundo, e que a boa linguagem deve ser capaz de anunciá-lo. A proposta do filósofo franco-argelino, embora de leitura complexa, é bastante simples, e sugere que é antes a língua que não somente apreende o mundo, mas que lhe dá forma e distinção. O horizonte com que se trabalha a distinção entre sinceridade e literatura, que Cândido leva, em Oswald, ao limite de transformar uma criatura de carne e osso em personagem, de tornar a realidade uma forma de literatura, parece facilmente desfazer-se quando se apercebe que a experiência só existe ou se elabora por meio da língua, e não que a língua serviria de instrumento para exprimir essa realidade prévia, independente, reificada, a que nos referimos vulgarmente como real: seja o real do mundo, como pensam os naturalistas, seja o real da alma, como as tendências psicológicas de interpretação se inclinam a buscar.
O que deveria ser uma simples rapidinha terminou como uma sessão tântrica. Para terminar, portanto, deixo essa simples nota: Mais do que disputar entre uma linguagem referencial e outra artificial, me parece interessante observar as suas condições de aparecimento, em como elas, mais do que possuírem uma origem social e histórica, mais do que oriundas de classes, é também uma forma em que dado tempo e lugar se conheceu e discutiu o mundo. É, para retomar a um lugar-comum, o projeto aludido por Foucault: um estudo das condições do saber. E também, o que talvez seja muito caro para mim, um historiador, compreender como surgem novas línguas, novos saberes, e por que não?, novos mundos, já que por meio do conhecimento, de sua tecnologia, que se erguem não apenas prédios, mas literalmente formam pessoas.

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