sexta-feira, 21 de abril de 2023

UMA UTÓPICA SOCIEDADE DE CORTE

 

Em minha família ninguém nunca me ensinou a ler, mas sozinho aprendi a cultivar os livros, a manejá-los, e em outras viagems que aprendi a nunca viajar com um único livro. Me convém, às vezes, os livros que me levem para longe, para espaços e tempos alheios aos meus, e foi pensando nisso ou por simples gesto inconsciente que deixei em minha bolsa uma edição de A Utopia, livro de Thomas Morus, em que se descreve os prodígios experimentados pelo intrépido e sábio Rafael Hitlodeu.

Por coincidência ou não, um outro livro de viagens, pensei, um pouco aborrecido, enquanto folheava as páginas. O livro de Thomas Morus, contudo, além de escrito há cinco séculos atrás (estou enfadado dos meus e dos nossos problemas) possui como como vantagem muitíssimo singular a narração de uma ilha que não existe, o que, como tenho aspiração a ficcionista, me interessou imediatamente.

Passei a ler o livro, e de início me desagradou essas largos prolegômenos que introduzem e justificam o que afinal será narrado; no curso da leitura, contudo, passei a me interessar, e até mesmo a me afeiçoar, àquela discussão preliminar sobre a política dos países europeus, especialmente da Inglaterra, já que Thomas Morus era originário da terra do chá e do fish and chips (sei estar cometendo anacronismos). 

Na história contada por Morus, que rapidamente se ramifica em um diálogo em estilo socrático, o protagonista Rafael Hitlodeu insistirá, mesmo que à revelia de seus ouvintes (o próprio Morus incluso), de que as nações europeias muito deveriam aprender com os costumes e instituições não apenas dos antigos, mas dos povos do novo mundo, principalmente dos utópicos, país em que viveu por muitos anos e que contudo retornou somente pelo pretexto de levar a boa nova ao velho mundo. 

Do extenso diálogo, é de meu interesse ressaltar somente alguns momentos capitais para a discussão que planejo desenvolver a seguir. Rafael Hitlodeu e Thomas Morus iniciam uma amistosa discussão sobre a deliberação política, naquele tempo realizada nas cortes reais, e depois de estabelecerem, sempre em ritmo de diálogo, um dizendo A e o outro replicando B, atingirem a uma espécie de aporia, em que Rafael Hitlodeu anuncia seu mais absoluto ceticismo diante da política das cortes: 


- Mas, dizei-me, caro Morus, pregar uma tal moral a homens que por interesse e por sistema se orientam por princípios diametralmente oposto não é contar histórias à surdos?


Thomas Morus, que na narrativa ocupa mais ou menos o lugar de interlocutor ingênuo, que faz contra-ponto à razão, insiste em discordar de seu colega, e segue sua defesa em favor da participação de filósofos e homens de boa índole e esclarecidos como o próprio Rafael Hitlodeu, dentro da vida pública das cortes, mas com a ressalva de que o lugar da verdade, do convencimento e, por fim, da política, não é bem na sala de deliberação oficial, diante da corte e do rei, mas sim nos corredores, nos bastidores, nos jantares, onde a inveja, a vaidade e a cobiça são refreadas pela amizade e vontade de saber que anima aos contendentes: 


É perfeitamente inútil dar conselhos quando se tem a certeza de que serão repelidos quer na forma, quer no fundo. Ora, os ministros e políticos de hoje estão impregnados de erros e preconceitos; como quereis bruscamente modificar suas crenças e fazer penetrar, de chofre, em suas cabeças e em seu coração, a verdade e a justiça? Esta filosofia escolástica está no seu lugar em uma conversação familiar, entre amigos; está fora de propósito nos conselhos dos reis, onde grandes coisas são tratadas com grande autoridade e em face do poder supremo. (p. 58)


A discussão se prolonga, seguindo um caminho já gasto pelo menos desde os diálogos platônicos, em que com muita eloquência Thomas Morus advoga pela pertinência da retórica em tais espaços públicos, e ressalta que a verdade, a filosofia, precisa estar dita, nessas condições, de forma “oblíqua”, para assim ser capaz de acolhida. A resposta de Rafael Hitlodeu é inflexível, e questiona o quanto poderia a verdade adequar-se ao bem falar, à eloquência e aos jogos retóricos das cortes, sem correr o risco de autodestruir-se. 

Essa argumentação, embora seja muito interessante, contudo não será o tema do assuntos aqui discutido. O que interessa, verdadeiramente, é a colocação de Thomas Morus, de que tais assuntos, a verdade, a justiça, a filosofia, não são bem acolhidos pelas cortes, pelo espaço institucional da política, em que a lei é o jogo maquiavélico e a veidade guerreira dos cortesãos. A verdade, a justiça, a filosofia, só é permitida florescer, pelo menos é uma das possíveis morais do diálogo, se entre amigos, em banquetes e momentos de descontração, momentos como o que eles próprios, no referido diálogo, alegramente desfrutam. 

Por mais que Rafael Hitlodeu resista de todas as maneiras, com os mais astutos argumentos, de expor seu pensamento diante de uma assembleia real, quando ali, diante dos amigos, é como se estivesse ccom a guarda baixa; parece disposto não apenas falar, mas, diz aos dois confrades, "revelar-vos o fundo de minha alma, e dizer-vos os meus pensamentos mais íntimos". 

Para além de um pacto de verdade, entramos na aliança e na amizade, e mais do que na simples zona de cordialidade, abre-se ali um espaço de confissão, não no sentido de intimidade, como caracterizariam as Confissões de Rousseau, mas à possibilidade de se discutir a verdade e a ciência de maneira limpa, ou pelo menos de maneira que o falante não precisa recear ser sincero: que pode dizer e simplesmente dizer as impressões, as verdades, que atravessam sua alma, sem temer o ridículo e a represália que uma corte, organizada ao redor dos jogos maquiavélicos e disputadas de poder, vedam ao falante pelo recurso do constrangimento. 

As cortes reais, pelo menos conforme desenhadas no livro de Morus, tratam-se de verdadeira máquina de guerra libidinal: são “conselhos onde reinam a inveja, a vaidade e o interesse”; “Intenta, alguém, apoioar uma opinião razoável na história dos tempos passados, ou nos costumes dos outros povos?”, se questiona Rafael Hitladeu, que não aguarda resposta, e continua a demonstrar as nuancias libidinais com que permeia a lógica racional de tais espaços: “se mostram surpresos e transtornados, e com o amor-próprio alarmado como se fossem perder a reputação de sábios e passar por imbecis


Eles quebram a cabeça até encontrar um argumento contraditório, e, se a memória e a lógica lhe minguam, entrincheram-se nesse lugar-comum: ‘Nossos pais assim pensaram e assim fizeram; ah! queira Deus que igualemos a sabedoria de nossos pais! Depois se assentam, pavoneando-se, como se acabassem de pronunciar um oráculo.


Como argumenta Rafael Hitladeu, como quem relembra a inconveniência de Socrátes e de seu destino selado pela cícuta, que tais espaços são incapazes de acolher a verdade simplesmente pois estão tomados pelas paixões - pela surpresa, pelo transtorno, pelo amor-próprio, os cortesões sentem-se alarmados, temerosos de perder a reputação de sábios, de se passar por imbecis; e sua defesa, pavoneando-se com a eloquência e aparato dialético ensinados (“a pomposa dialética desses polemistas categóricos”.

Nas sociedades de cortes, tudo que há é a dissimulação, o espetáculo, o puxa-saquismo, a lambição de botas dos poderosos. E depois do longo discurso de Rafael Hitladeu sobre os problemas do sistema carcerário e econômico dos ingleses, bastou um dos convivas erguer a voz e contrária-lo com um comentário breve, para que “todos os ouvintes aplaudiram com arrebatamento esta magnífica sentença”. O diálogo, no entanto, guarda aspectos (trági)cômicos, e na sequência, bastou o cardeal dar razão ao estrangeiro Hitledeu para que “os louvores mais exagerados acolheram as opiniões expedidas por Sua Eminência, as quais não tinham encontrado senão desprezo e desdém quando sozinho [quando pela boca de Hitladeu, melhor dizendo] se sustentara”. 

 Toda essa longa história foi contada pelo viajante português a Thomas Morus e também ao silente Pedro Gil (este quase não intervém no curso do diálogo) para justificar o porquê de um homem tão eloquente e sábio como ele preferia se manter longe das cortes, espaços regrados pela aparência e pelo querer ser, pela necessidade de fazer boa-fé e de se amigar, mas também insultar e se elevar acima dos demais. 

Nas cortes, argumenta Hitledeu, a filosofia não poderia ser realmente feita. Para a verdade, para a conversa france, era necessário outro espaço, como a privacidade de um jantar, as deliciosas comidas e aguardentes bebidas que intercalam o doce verbo do logos. Só assim que o enunciado é capaz de, se não ao menos alcançar verdade das coisas eternas (lembremos que o diálogo é antes de mais nada sobre política, sobre a economia e sobre a pragmática, e não alcança ae metafísica), pode pelo menos entregar, em primeiro lugar e sem embaraços, a verdade da alma. Aos nossos amigos, afinal, não temos o porque mentir, não temos o que dissimular, e somente nessas circunstâncias que seremos capazes de entregar-lhes o verdadeiro conhecimento por nós experimentados, principalmente se ele é assim tão perigoso e movediço de ser dito ao público das cortes.  

Morus ainda deseja dar ao amigo lições de retórica, prescrevendo que um sábio como o amigo não deveria desistir das cortes, que a verdade precisa convir ao público e espaço em questão para tornar-se eficaz:

"[assim] convém agir quando se delibera acerca dos negócios do Estado, no seio do conselho real [...] Segui o caminho oblíquo - ele vos conduzirá mais seguramente à meta. Aprendei a dizer a verdade com propriedade e propósito". 


Rafael, contudo, é irredutível: 


"Mentiria, se falasse de maneira diferente da que vos falei. A mentira é talvez permitida a certos filósofos, mas não está em minha natureza. Sei que minha linguagem parecerá dura e severa aos conselheiros do rei [...]". 


Há, nos discursos que servem de prolegômeno à descrição da ilha de Utopia, a expressão do desconfortável desencontro entre esses dois espaços, o privado e o público, que também é o desencotro de duas linguagens, a do cortesão, transpassada pela eloquência e pelos ornamentos da retórica, e aquela que, digamos, de maneira anacrônica, protorromânticamente, quer ser chamada de uma linguagem da alma. Digo protorromantica pois não se constrói como negação ou ausência de retórica - e um estudo cuidado mostraria que o discurso de Hitledeu está adequadamente composto por uma série de figuras e citações clássicas -, mas pela percepção de que o espaço do poder é atravessado por pulsões vis, de invejas e rivalidades, que contrariam a busca da verdade e o conhecimento adquirido pela experiência (não esqueçamos, afinal, que Rafael Hitladeu, apesar de filósofo, é também um viajante, e que em seu personagem se acumulam esses dois capitais aparentemente contraditórios, a especulação filosófica e o empirismo da experiência).

Enfadado pela longa leitura, mais de setenta páginas feita sob a luz fraca do ônibus (lá fora já anoitecera, e espiando por entre a cortina tive vislumbres impressionistas ou imaginei ter dos molungus retundos, à borda das cabimbas cheias, as caraíbas e a baraúnas à margem dos ribeirões refertos, a púrpura das largas flores vermelhas ocultas pela penumbra, descritos em certa páginas por Euclides…). 

Antes de tentar dormir no desconfortável semi-leito, pego meu caderno e anoto certas impressões de leitura: 

A verdade, n’A Utopia, não implica somente em questão de coragem, ou mesmo de virtude, de colocá-la para fora da gargante, em estado de clara enunciação; exige também a compaixão e a amizade de acolhê-la, de deixá-la germinar dentro de si. 

Há, sem dúvida, na troca das palavras, essa alquimia libidinal; e se o discurso de Rafael Hitlodeu fala contra a artificialidade dos cortesões, sempre dispostos a dissimular em prol do seu objetivo particular e contra os bens da nação, em seu lugar Hitlodeu parece propor uma linguagem transparente, que embora não dispense certos artifícios da retórica clássica, em alguns espaços, talvez em meio à algumas brechas de seu classicismo (que, à propósito, diz-se no príncipio do texto ser mais calcado nos gregos do que nos latinos - o que me parece razoavelmente sintomático),  podemos entrever a aparição dessa  nova espécie de retórica: a sinceridade.

De Lionel Trilling, Sinceridade e Autenticidade (livro que não trouxe comigo para a viagem, e que portanto só pude verificá-lo em casa - assim entrego, de bom grado, admito, o anacronismo e artificialismo que participam de todo relato):


Se o homem sincero é aquele que evita ser falso sendo verdadeiro para consigo mesmo, temos que esse estado de existência pessoal não deve ser conquistado sem um intenso esforço. Não obstante, em certo momento da história alguns homens e classes de homens passaram a conferir tal esforço suprema importância na vida moral; desse  modo, por cerca de quatrocentos anos, o valor atribuído à iniciativa da sinceridade tornou-se um traço saliente, talvez até definidor, da cultura ocidental.


Thrilling não fará grandes esforços para situar o “nascimento” da sinceridade, mas emprega um verso de Shakespeare como espécie de símbolo: Em Hamlet, estava Polônio muito preocupado com a ida de seu filho Laertes a Paris, e preocupado como bom pai que vê o filho viajar para o distante estrangeiro, o aváro e interesseiro Polônio entrega-lhe algo que talvez seja mais precioso que ouro, um cuidadoso conselho:

Mas, sobretudo, sê a ti próprio fiel;

Segue-se disso, como o dia à noite,

Que a ninguém poderás jamais ser falso.


A personalidade de Rafael Hitlodeu, segundo descreveu Morus, é bastante peculiar: à parte de conhecer bem o latim, e de dominar o grego com perfeição, pois foi devoto ao estudo da filosofia, filho de Portugal, “jovem ainda, abandonou, seu cabedal aos irmãos; e, devorado pela paixão de correr mundo, amarrou-se à pessoa e à fortuna de Américo Vespúcio”. A descrição é muito adequada às que Gilberto Freyre do caráter português, “responsáveis pelo muito que há e tem havido de aventura e também de inesperado, de imprevisto, de surpreendente - de louco, como pareceu a Oliveira Martins - nas atitudes e realizações portuguesas na Europa e no Ultramar”.

O esforço de Gilberto Freyre em substancializar o caráter aventureiro do português por meio da categoria de raça, aqui será desprezado em troca de um entendimento de que essa personalidade aventureira - que preferirei tratar como desterritorializada, em referência aos estudos de Deleuze e Guattari -, é produto de uma economia material do desejo. Não quero aqui responder tais perguntas, mas somente abri-las: o que levaria homens (principalmente, mas também mulheres) a desenraizar-se, a abdicar de família, amigos, lugares, memórias, da cidade em que nasceram e viveram (a cidade é antes de tudo uma rede afetiva), para embarcar em uma aventura rumo ao desconhecido? 

Como disse, aqui não plano esboçar respostas que dizem respeito mais a uma história social do que ao ensaísmo que aqui pratico e que compreendo antes de tudo como um abrir de portas para novas saídas teóricas e metodológicas. Como historiador que, para adotar o dúbio apanágio freyreano, se considera um intuitivo, simplesmente gostaria de rever a nossa visão sobre o passado, contribuir para a sua re-imaginação, o que, de certa forma, aproxima o meu gênero de historiografia menos da empiria positivista e documental do que um esforço hermenêutico, e até literário. 

Retomemos a Rafael Hitlodeu, que, mesmo sendo uma entidade fictícia, esculpida para os caprichos retóricos-políticos de Thomas Morus, é incontornável que sua figura seja a de um viajante que, além de português, poderia ser descrito, empregando o conceito de Deleuze e Guattari, como um esquizo. Pois Rafel Hitlodeu

trampôs o limite, a esquiza que mantinha a produção do desejo sempre à margem da produção social, tangencial e sempre repelida. O esquizo sabe partir: ele faz da partida algo tão simples quanto nascer e morrer. Mas, ao mesmo tempo, sua viagem ocorre estranhamente no mesmo lugar. Ele não fala de um outro mundo, ele não é de um outro mundo: mesmo deslocando-se no espaço, é uma viagem em intensidade, em torno da máquina desejante que se erige e permanece aqui. [...] Esses homens do desejo [...] são como Zaratustra: conhecem incríveis sofrimentos, vertigens e doenças. [...] Eles devem reinventar cada gesto. Mas um tal homem se produz como homem livre, irresponsável, solitário e alegre, capaz afinal de fazer e dizer algo de simples em seu próprio nome, sem pedir permissão, desejo a que nada falta, fluxo que atravessa as barragens e os códigos, nome que não mais designa eu algum. Ele simplesmente deixou de ter medo de devir louco. Ele vive sua vida como sublime doença que não mais o atingirá. O que vale, o que valeria aqui um psiquiatra? [...]  A loucura não é necessariamente um desabamento (breakdown); pode ser também uma abertura de saídas (breakthrough)... O indivíduo que faz a experiência transcendental da perda do ego pode ou não perder de diversas meneiras o equilíbrio. Pode, então, ser considerado louco. Mas ser louco não é necessariamente ser doente, mesmo se em nosso mundo os dois termos se tornaram complementares… Partindo do ponto de vista da nossa pseudo saúde mental, tudo e equívoco. Esta saúde não é uma verdadeira saúde.


Hitlodeu, aventureiro e desgarrado, esquizo em tantos sentidos: por abandonar a raíz edipiana da família, por deixar seu desejo esticar-se até por dentro de um barco e rumar ao desconhecido. Como Deleuze e Guattari, para fundar sua imagem-conceito do esquizofrênico, não recorreram à experiência histórica dos viajantes e dos desterrados? “Édipo supõe”, afinal, “uma fantástica repressão das máquinas desejantes”. E contra tais forças que, ainda asism, o jovem esquizo Hitlodeu abandonou tudo em seu “passeio do esquizofrênico”: família, emprego, pátria.


Eu pouco me inquieto com a sorte dos meus, retomou Hitlodeu. Creio ter cumprido sofrivelmente os meus deveres para com eles. Os outros homens só abrem mão de seus bens já velhos e na agonia, e é ainda chorando, que renunciam ao que suas mãos desfalecentes não mais podem reter. Eu, cheio de saúde e juventude, tudo dei aos meus parentes e amigos. Eles não se queixarão, espero, do meu egoísmo; não exigirão que, para cumulá-los de ouro, eu me faça escravo de um rei.


Desenraizado da pátria, do dinheiro, da família, quase como Diógenes, Rafael Hitlodeu não precisa e não deseja integrar-se às cortes, às belas palavras, ao capital simbólico que lhe daria poder entre as classes dominantes. Um viajante, um estrangeiro, um filósofo, os laços cortados de todas necessidades impostas pela boa sociedade e meios de produção, pode formular a esquizofrênica posição da sinceridade, pode abdicar das cortes, da economia libidinal que lhe enoja e que não deseja integrar.

Surge, na Utopia, a incontornável distinção entre o mundo público da política, o mundo da mentira e do ardil, e o mundo privado da amizade, em que a verdade, e principalmente, a sinceridade, se torna lícita. Em contraste com a dissimulação da corte, com os códigos pomposos e eloquentes dos cortesãos, escravos de seu desejo de agradar, do fração de ouro que retiram dali, a sinceridade de Rafael germina como, primeiro, condição de dizer a verdade sem embaraços, pois está ali com amigos, não com adversários, e segundo, pela possibilidade de deleitar-se com esse discurso assim como quem aprecia a delícia de bons jantares e a boa companhia de um conviva.

Esse homem estrangeiro, que entregou sua fortuna para correr o mundo, que se fez desterritorializado, sem esposa ou família, sem laços de vassalagem com nenhum governo, rejeita a necessidade de participar de linguagem alguma, rejeita a obloquidade da retórica, e como virtude, pretende falar como ele próprio falaria, falar seus próprios pensamentos e impressões, e portanto, falar a verdade.




Em minha família ninguém nunca me ensinou a ler, mas sozinho aprendi a cultivar os livros, a manejá-los, e em outras viagems que aprendi a nunca viajar com um único livro. Me convém, às vezes, os livros que me levem para longe, para espaços e tempos alheios aos meus, e foi pensando nisso ou por simples gesto inconsciente que deixei em minha bolsa uma edição de A Utopia, livro de Thomas Morus, em que se descreve os prodígios experimentados pelo intrépido e sábio Rafael Hitlodeu.

Por coincidência ou não, um outro livro de viagens, pensei, um pouco aborrecido, enquanto folheava as páginas. O livro de Thomas Morus, contudo, além de escrito há cinco séculos atrás (estou enfadado dos meus e dos nossos problemas) possui como como vantagem muitíssimo singular a narração de uma ilha que não existe, o que, como tenho aspiração a ficcionista, me interessou imediatamente.

Passei a ler o livro, e de início me desagradou essas largos prolegômenos que introduzem e justificam o que afinal será narrado; no curso da leitura, contudo, passei a me interessar, e até mesmo a me afeiçoar, àquela discussão preliminar sobre a política dos países europeus, especialmente da Inglaterra, já que Thomas Morus era originário da terra do chá e do fish and chips (sei estar cometendo anacronismos). 

Na história contada por Morus, que rapidamente se ramifica em um diálogo em estilo socrático, o protagonista Rafael Hitlodeu insistirá, mesmo que à revelia de seus ouvintes (o próprio Morus incluso), de que as nações europeias muito deveriam aprender com os costumes e instituições não apenas dos antigos, mas dos povos do novo mundo, principalmente dos utópicos, país em que viveu por muitos anos e que contudo retornou somente pelo pretexto de levar a boa nova ao velho mundo. 

Do extenso diálogo, é de meu interesse ressaltar somente alguns momentos capitais para a discussão que planejo desenvolver a seguir. Rafael Hitlodeu e Thomas Morus iniciam uma amistosa discussão sobre a deliberação política, naquele tempo realizada nas cortes reais, e depois de estabelecerem, sempre em ritmo de diálogo, um dizendo A e o outro replicando B, atingirem a uma espécie de aporia, em que Rafael Hitlodeu anuncia seu mais absoluto ceticismo diante da política das cortes: 


- Mas, dizei-me, caro Morus, pregar uma tal moral a homens que por interesse e por sistema se orientam por princípios diametralmente oposto não é contar histórias à surdos?


Thomas Morus, que na narrativa ocupa mais ou menos o lugar de interlocutor ingênuo, que faz contra-ponto à razão, insiste em discordar de seu colega, e segue sua defesa em favor da participação de filósofos e homens de boa índole e esclarecidos como o próprio Rafael Hitlodeu, dentro da vida pública das cortes, mas com a ressalva de que o lugar da verdade, do convencimento e, por fim, da política, não é bem na sala de deliberação oficial, diante da corte e do rei, mas sim nos corredores, nos bastidores, nos jantares, onde a inveja, a vaidade e a cobiça são refreadas pela amizade e vontade de saber que anima aos contendentes: 


É perfeitamente inútil dar conselhos quando se tem a certeza de que serão repelidos quer na forma, quer no fundo. Ora, os ministros e políticos de hoje estão impregnados de erros e preconceitos; como quereis bruscamente modificar suas crenças e fazer penetrar, de chofre, em suas cabeças e em seu coração, a verdade e a justiça? Esta filosofia escolástica está no seu lugar em uma conversação familiar, entre amigos; está fora de propósito nos conselhos dos reis, onde grandes coisas são tratadas com grande autoridade e em face do poder supremo. (p. 58)


A discussão se prolonga, seguindo um caminho já gasto pelo menos desde os diálogos platônicos, em que com muita eloquência Thomas Morus advoga pela pertinência da retórica em tais espaços públicos, e ressalta que a verdade, a filosofia, precisa estar dita, nessas condições, de forma “oblíqua”, para assim ser capaz de acolhida. A resposta de Rafael Hitlodeu é inflexível, e questiona o quanto poderia a verdade adequar-se ao bem falar, à eloquência e aos jogos retóricos das cortes, sem correr o risco de autodestruir-se. 

Essa argumentação, embora seja muito interessante, contudo não será o tema do assuntos aqui discutido. O que interessa, verdadeiramente, é a colocação de Thomas Morus, de que tais assuntos, a verdade, a justiça, a filosofia, não são bem acolhidos pelas cortes, pelo espaço institucional da política, em que a lei é o jogo maquiavélico e a veidade guerreira dos cortesãos. A verdade, a justiça, a filosofia, só é permitida florescer, pelo menos é uma das possíveis morais do diálogo, se entre amigos, em banquetes e momentos de descontração, momentos como o que eles próprios, no referido diálogo, alegramente desfrutam. 

Por mais que Rafael Hitlodeu resista de todas as maneiras, com os mais astutos argumentos, de expor seu pensamento diante de uma assembleia real, quando ali, diante dos amigos, é como se estivesse ccom a guarda baixa; parece disposto não apenas falar, mas, diz aos dois confrades, "revelar-vos o fundo de minha alma, e dizer-vos os meus pensamentos mais íntimos". 

Para além de um pacto de verdade, entramos na aliança e na amizade, e mais do que na simples zona de cordialidade, abre-se ali um espaço de confissão, não no sentido de intimidade, como caracterizariam as Confissões de Rousseau, mas à possibilidade de se discutir a verdade e a ciência de maneira limpa, ou pelo menos de maneira que o falante não precisa recear ser sincero: que pode dizer e simplesmente dizer as impressões, as verdades, que atravessam sua alma, sem temer o ridículo e a represália que uma corte, organizada ao redor dos jogos maquiavélicos e disputadas de poder, vedam ao falante pelo recurso do constrangimento. 

As cortes reais, pelo menos conforme desenhadas no livro de Morus, tratam-se de verdadeira máquina de guerra libidinal: são “conselhos onde reinam a inveja, a vaidade e o interesse”; “Intenta, alguém, apoioar uma opinião razoável na história dos tempos passados, ou nos costumes dos outros povos?”, se questiona Rafael Hitladeu, que não aguarda resposta, e continua a demonstrar as nuancias libidinais com que permeia a lógica racional de tais espaços: “se mostram surpresos e transtornados, e com o amor-próprio alarmado como se fossem perder a reputação de sábios e passar por imbecis


Eles quebram a cabeça até encontrar um argumento contraditório, e, se a memória e a lógica lhe minguam, entrincheram-se nesse lugar-comum: ‘Nossos pais assim pensaram e assim fizeram; ah! queira Deus que igualemos a sabedoria de nossos pais! Depois se assentam, pavoneando-se, como se acabassem de pronunciar um oráculo.


Como argumenta Rafael Hitladeu, como quem relembra a inconveniência de Socrátes e de seu destino selado pela cícuta, que tais espaços são incapazes de acolher a verdade simplesmente pois estão tomados pelas paixões - pela surpresa, pelo transtorno, pelo amor-próprio, os cortesões sentem-se alarmados, temerosos de perder a reputação de sábios, de se passar por imbecis; e sua defesa, pavoneando-se com a eloquência e aparato dialético ensinados (“a pomposa dialética desses polemistas categóricos”.

Nas sociedades de cortes, tudo que há é a dissimulação, o espetáculo, o puxa-saquismo, a lambição de botas dos poderosos. E depois do longo discurso de Rafael Hitladeu sobre os problemas do sistema carcerário e econômico dos ingleses, bastou um dos convivas erguer a voz e contrária-lo com um comentário breve, para que “todos os ouvintes aplaudiram com arrebatamento esta magnífica sentença”. O diálogo, no entanto, guarda aspectos (trági)cômicos, e na sequência, bastou o cardeal dar razão ao estrangeiro Hitledeu para que “os louvores mais exagerados acolheram as opiniões expedidas por Sua Eminência, as quais não tinham encontrado senão desprezo e desdém quando sozinho [quando pela boca de Hitladeu, melhor dizendo] se sustentara”. 

 Toda essa longa história foi contada pelo viajante português a Thomas Morus e também ao silente Pedro Gil (este quase não intervém no curso do diálogo) para justificar o porquê de um homem tão eloquente e sábio como ele preferia se manter longe das cortes, espaços regrados pela aparência e pelo querer ser, pela necessidade de fazer boa-fé e de se amigar, mas também insultar e se elevar acima dos demais. 

Nas cortes, argumenta Hitledeu, a filosofia não poderia ser realmente feita. Para a verdade, para a conversa france, era necessário outro espaço, como a privacidade de um jantar, as deliciosas comidas e aguardentes bebidas que intercalam o doce verbo do logos. Só assim que o enunciado é capaz de, se não ao menos alcançar verdade das coisas eternas (lembremos que o diálogo é antes de mais nada sobre política, sobre a economia e sobre a pragmática, e não alcança ae metafísica), pode pelo menos entregar, em primeiro lugar e sem embaraços, a verdade da alma. Aos nossos amigos, afinal, não temos o porque mentir, não temos o que dissimular, e somente nessas circunstâncias que seremos capazes de entregar-lhes o verdadeiro conhecimento por nós experimentados, principalmente se ele é assim tão perigoso e movediço de ser dito ao público das cortes.  

Morus ainda deseja dar ao amigo lições de retórica, prescrevendo que um sábio como o amigo não deveria desistir das cortes, que a verdade precisa convir ao público e espaço em questão para tornar-se eficaz:

"[assim] convém agir quando se delibera acerca dos negócios do Estado, no seio do conselho real [...] Segui o caminho oblíquo - ele vos conduzirá mais seguramente à meta. Aprendei a dizer a verdade com propriedade e propósito". 


Rafael, contudo, é irredutível: 


"Mentiria, se falasse de maneira diferente da que vos falei. A mentira é talvez permitida a certos filósofos, mas não está em minha natureza. Sei que minha linguagem parecerá dura e severa aos conselheiros do rei [...]". 


Há, nos discursos que servem de prolegômeno à descrição da ilha de Utopia, a expressão do desconfortável desencontro entre esses dois espaços, o privado e o público, que também é o desencotro de duas linguagens, a do cortesão, transpassada pela eloquência e pelos ornamentos da retórica, e aquela que, digamos, de maneira anacrônica, protorromânticamente, quer ser chamada de uma linguagem da alma. Digo protorromantica pois não se constrói como negação ou ausência de retórica - e um estudo cuidado mostraria que o discurso de Hitledeu está adequadamente composto por uma série de figuras e citações clássicas -, mas pela percepção de que o espaço do poder é atravessado por pulsões vis, de invejas e rivalidades, que contrariam a busca da verdade e o conhecimento adquirido pela experiência (não esqueçamos, afinal, que Rafael Hitladeu, apesar de filósofo, é também um viajante, e que em seu personagem se acumulam esses dois capitais aparentemente contraditórios, a especulação filosófica e o empirismo da experiência).

Enfadado pela longa leitura, mais de setenta páginas feita sob a luz fraca do ônibus (lá fora já anoitecera, e espiando por entre a cortina tive vislumbres impressionistas ou imaginei ter dos molungus retundos, à borda das cabimbas cheias, as caraíbas e a baraúnas à margem dos ribeirões refertos, a púrpura das largas flores vermelhas ocultas pela penumbra, descritos em certa páginas por Euclides…). 

Antes de tentar dormir no desconfortável semi-leito, pego meu caderno e anoto certas impressões de leitura: 

A verdade, n’A Utopia, não implica somente em questão de coragem, ou mesmo de virtude, de colocá-la para fora da gargante, em estado de clara enunciação; exige também a compaixão e a amizade de acolhê-la, de deixá-la germinar dentro de si. 

Há, sem dúvida, na troca das palavras, essa alquimia libidinal; e se o discurso de Rafael Hitlodeu fala contra a artificialidade dos cortesões, sempre dispostos a dissimular em prol do seu objetivo particular e contra os bens da nação, em seu lugar Hitlodeu parece propor uma linguagem transparente, que embora não dispense certos artifícios da retórica clássica, em alguns espaços, talvez em meio à algumas brechas de seu classicismo (que, à propósito, diz-se no príncipio do texto ser mais calcado nos gregos do que nos latinos - o que me parece razoavelmente sintomático),  podemos entrever a aparição dessa  nova espécie de retórica: a sinceridade.

De Lionel Trilling, Sinceridade e Autenticidade (livro que não trouxe comigo para a viagem, e que portanto só pude verificá-lo em casa - assim entrego, de bom grado, admito, o anacronismo e artificialismo que participam de todo relato):


Se o homem sincero é aquele que evita ser falso sendo verdadeiro para consigo mesmo, temos que esse estado de existência pessoal não deve ser conquistado sem um intenso esforço. Não obstante, em certo momento da história alguns homens e classes de homens passaram a conferir tal esforço suprema importância na vida moral; desse  modo, por cerca de quatrocentos anos, o valor atribuído à iniciativa da sinceridade tornou-se um traço saliente, talvez até definidor, da cultura ocidental.


Thrilling não fará grandes esforços para situar o “nascimento” da sinceridade, mas emprega um verso de Shakespeare como espécie de símbolo: Em Hamlet, estava Polônio muito preocupado com a ida de seu filho Laertes a Paris, e preocupado como bom pai que vê o filho viajar para o distante estrangeiro, o aváro e interesseiro Polônio entrega-lhe algo que talvez seja mais precioso que ouro, um cuidadoso conselho:

Mas, sobretudo, sê a ti próprio fiel;

Segue-se disso, como o dia à noite,

Que a ninguém poderás jamais ser falso.


A personalidade de Rafael Hitlodeu, segundo descreveu Morus, é bastante peculiar: à parte de conhecer bem o latim, e de dominar o grego com perfeição, pois foi devoto ao estudo da filosofia, filho de Portugal, “jovem ainda, abandonou, seu cabedal aos irmãos; e, devorado pela paixão de correr mundo, amarrou-se à pessoa e à fortuna de Américo Vespúcio”. A descrição é muito adequada às que Gilberto Freyre do caráter português, “responsáveis pelo muito que há e tem havido de aventura e também de inesperado, de imprevisto, de surpreendente - de louco, como pareceu a Oliveira Martins - nas atitudes e realizações portuguesas na Europa e no Ultramar”.

O esforço de Gilberto Freyre em substancializar o caráter aventureiro do português por meio da categoria de raça, aqui será desprezado em troca de um entendimento de que essa personalidade aventureira - que preferirei tratar como desterritorializada, em referência aos estudos de Deleuze e Guattari -, é produto de uma economia material do desejo. Não quero aqui responder tais perguntas, mas somente abri-las: o que levaria homens (principalmente, mas também mulheres) a desenraizar-se, a abdicar de família, amigos, lugares, memórias, da cidade em que nasceram e viveram (a cidade é antes de tudo uma rede afetiva), para embarcar em uma aventura rumo ao desconhecido? 

Como disse, aqui não plano esboçar respostas que dizem respeito mais a uma história social do que ao ensaísmo que aqui pratico e que compreendo antes de tudo como um abrir de portas para novas saídas teóricas e metodológicas. Como historiador que, para adotar o dúbio apanágio freyreano, se considera um intuitivo, simplesmente gostaria de rever a nossa visão sobre o passado, contribuir para a sua re-imaginação, o que, de certa forma, aproxima o meu gênero de historiografia menos da empiria positivista e documental do que um esforço hermenêutico, e até literário. 

Retomemos a Rafael Hitlodeu, que, mesmo sendo uma entidade fictícia, esculpida para os caprichos retóricos-políticos de Thomas Morus, é incontornável que sua figura seja a de um viajante que, além de português, poderia ser descrito, empregando o conceito de Deleuze e Guattari, como um esquizo. Pois Rafel Hitlodeu

trampôs o limite, a esquiza que mantinha a produção do desejo sempre à margem da produção social, tangencial e sempre repelida. O esquizo sabe partir: ele faz da partida algo tão simples quanto nascer e morrer. Mas, ao mesmo tempo, sua viagem ocorre estranhamente no mesmo lugar. Ele não fala de um outro mundo, ele não é de um outro mundo: mesmo deslocando-se no espaço, é uma viagem em intensidade, em torno da máquina desejante que se erige e permanece aqui. [...] Esses homens do desejo [...] são como Zaratustra: conhecem incríveis sofrimentos, vertigens e doenças. [...] Eles devem reinventar cada gesto. Mas um tal homem se produz como homem livre, irresponsável, solitário e alegre, capaz afinal de fazer e dizer algo de simples em seu próprio nome, sem pedir permissão, desejo a que nada falta, fluxo que atravessa as barragens e os códigos, nome que não mais designa eu algum. Ele simplesmente deixou de ter medo de devir louco. Ele vive sua vida como sublime doença que não mais o atingirá. O que vale, o que valeria aqui um psiquiatra? [...]  A loucura não é necessariamente um desabamento (breakdown); pode ser também uma abertura de saídas (breakthrough)... O indivíduo que faz a experiência transcendental da perda do ego pode ou não perder de diversas meneiras o equilíbrio. Pode, então, ser considerado louco. Mas ser louco não é necessariamente ser doente, mesmo se em nosso mundo os dois termos se tornaram complementares… Partindo do ponto de vista da nossa pseudo saúde mental, tudo e equívoco. Esta saúde não é uma verdadeira saúde.


Hitlodeu, aventureiro e desgarrado, esquizo em tantos sentidos: por abandonar a raíz edipiana da família, por deixar seu desejo esticar-se até por dentro de um barco e rumar ao desconhecido. Como Deleuze e Guattari, para fundar sua imagem-conceito do esquizofrênico, não recorreram à experiência histórica dos viajantes e dos desterrados? “Édipo supõe”, afinal, “uma fantástica repressão das máquinas desejantes”. E contra tais forças que, ainda asism, o jovem esquizo Hitlodeu abandonou tudo em seu “passeio do esquizofrênico”: família, emprego, pátria.


Eu pouco me inquieto com a sorte dos meus, retomou Hitlodeu. Creio ter cumprido sofrivelmente os meus deveres para com eles. Os outros homens só abrem mão de seus bens já velhos e na agonia, e é ainda chorando, que renunciam ao que suas mãos desfalecentes não mais podem reter. Eu, cheio de saúde e juventude, tudo dei aos meus parentes e amigos. Eles não se queixarão, espero, do meu egoísmo; não exigirão que, para cumulá-los de ouro, eu me faça escravo de um rei.


Desenraizado da pátria, do dinheiro, da família, quase como Diógenes, Rafael Hitlodeu não precisa e não deseja integrar-se às cortes, às belas palavras, ao capital simbólico que lhe daria poder entre as classes dominantes. Um viajante, um estrangeiro, um filósofo, os laços cortados de todas necessidades impostas pela boa sociedade e meios de produção, pode formular a esquizofrênica posição da sinceridade, pode abdicar das cortes, da economia libidinal que lhe enoja e que não deseja integrar.

Surge, na Utopia, a incontornável distinção entre o mundo público da política, o mundo da mentira e do ardil, e o mundo privado da amizade, em que a verdade, e principalmente, a sinceridade, se torna lícita. Em contraste com a dissimulação da corte, com os códigos pomposos e eloquentes dos cortesãos, escravos de seu desejo de agradar, do fração de ouro que retiram dali, a sinceridade de Rafael germina como, primeiro, condição de dizer a verdade sem embaraços, pois está ali com amigos, não com adversários, e segundo, pela possibilidade de deleitar-se com esse discurso assim como quem aprecia a delícia de bons jantares e a boa companhia de um conviva.

Esse homem estrangeiro, que entregou sua fortuna para correr o mundo, que se fez desterritorializado, sem esposa ou família, sem laços de vassalagem com nenhum governo, rejeita a necessidade de participar de linguagem alguma, rejeita a obloquidade da retórica, e como virtude, pretende falar como ele próprio falaria, falar seus próprios pensamentos e impressões, e portanto, falar a verdade.


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