domingo, 23 de abril de 2023

reflexões sobre o diário: a trama por meio da repetição e a retórica da sinceridade.

 Se hoje o diário se tornou um gênero plástico, capaz de comportar as linguagens mais múltiplas e estranhas, e portanto experimental - Os diários de Emílio Renzi, por exemplo, já vi classificarem como laboratório de escrita - é preciso esclarecer que Tempo morto e outros tempos, segue os preceitos mais ordinários do gênero: a narração, como no diário mais típico, está fundada nos pormenores cotidianos, às coisas íntimas e banais com que o personagem vive no dia-a-dia. Ocorre também a sensação de repetição e monotonia, com o texto sucedendo-se sem qualquer impressão de trama, de modulação narrativa e dramática. A monotonia, contudo, é vez ou outra interrompida pelas irrupções de acontecimentos inesperados, capazes de produzir sensação de ação e movimento da narrativa, ou, ainda, por ocasionais ocorrências de episódios indecorosos - as confissões, os trechos que tratam daquilo que não poderia ser enunciado em público, costumam ser um dos pontos que rasgam o aspecto de repetição que caracteriza a escritura do diário -. 

A passagem dos dias e episódios, marcadas datas do cabeçalho, por si só impõe ao leitor a sucessão narrativa, mesmo que essa seja lenta, monótona e repetitiva. Poderíamos dizer que o diário carece de trama, e que por tratar de escrita íntima, do eu, seu intuito narrativo seria antes mais próximo a de um retrato do que de uma história autêntica, mas isso seria ignorar que, embora não se trate de uma trama aristotélica, classicamente repartida em início, meio e fim, há sim no diário uma economia do material narrativo e do efeito a ele correlato. A repetição e o não-acontecimento, dentro deste ponto de vista poético, são na verdade truques ou distrações, que preparam o leitor para o choque de um evento mais pitoresco ou dramático, como a morte de um ente querido ou uma briga em um bar; e há, como também indiquei, o pormenor da confissão, a escritura do segredo, que sempre interrompe a sucessão monocromática e fria do diário e faz suas páginas ficarem vermelhas de tanto calor.

É incontornável, contudo, que o diário típico é dedicado à narração da vida interior, e que a exterioridade e o acontecimento estão subordinados às impressões exercidas na ou pela subjetividade de seu escritor. Muitas vezes, inclusive, o diário assume certo aspecto de ensaio - em casos de diários de intelectuais, imagino, esse aspecto deve ser ainda mais recorrente -, de modo que, tal qual se lesse ao Discurso do Método, em um diário muitas vezes acompanhamos as reflexões do protagonista, em primeira pessoa. O diário, contudo, se afasta relativamente de um ensaio como Discurso do Método por por conta de uma suas principais características: a de se mostrar como escritura fresca, imediata, pulsional, irrefletida, automática, em que o autor, se não de maneira irrefletida, pelo menos de forma casual, anota sobre aquilo que pensou ou viu. É o que poderíamos nos referir como uma retórica da sinceridade, que faz com que as palavras estejam brotando agora da mente do escritor, a tinta ainda fresca, as paixões, muitas vezes, ainda agitadas pelo acontecimento.

Faço essa digressão sobre o aspecto formal e retórico do diário para desfazer um engano a ele muito associado: de que, por tratar-se de uma escritura da sinceridade, regida pela lógica da confissão, da intimidade, fosse uma espécie de língua capaz de acessar a uma realidade mais profunda, ou ainda, desprovida de artifícios. 

Faço questão de esclarecer o aspecto convencional, genérico, retórico e formal da escritura de um diário para acentuar algo a muito conhecido: que os diários de Freyre foram reescritos e editados antes de serem publicados. Quero dizer com isso que, embora emule muito adequadamente toda a retórica da sinceridade, que faça uso de um registro cru, objetivo e inocente, e seu estilo parece guardar relação simplesmente referencialista entre palavra e a subjetividade que descreve, o diário de Freyre, ao contrário do diário que poderíamos chamar de autêntico, é evidentemente uma obra de literatura, o que, curiosamente, faz do sociólogo de certa forma nesse gênero, hoje tão em alta, que costumam chamar de auto-ficção.

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