segunda-feira, 24 de abril de 2023

trechos mortos

 Dizem que o gol mais lindo do Pelé foi um que ele não fez. Até mesmo o melhor dos poetas possui limites: difícil definir aquele drible que Pelé deu em Mazurkiewicz se não como genial. Pelé, no entanto, chutou para fora. A entrada de Trasímaco, no primeiro livro d’A república, é análogo à guerra de classes para a história; ou, ainda, à genealogía que Nietzsche predica para a moral; e não importa realmente que Trasímaco no fim seja derrotado, A mera possibilidade de testemunhar a possibilidade do milagre é privilégio para poucos. Vislumbrar com os próprios olhos a possibilidade do impossível, é algo que comove, e que para sempre iremos guardar na memória. Assim como o gol que Pelé perdeu,  feito de o fato de Trasímaco quase calar a boca de Sócrates deveria ser monumentalidade como um dos grandes feitos da história.


Toda narrativa deixa alguma coisa de fora. O historiador para sempre sofrerá o destino de Heródoto, que pai da história, foi também pai da mentira. Carreguemos, no entanto, sem qualquer vergonha esse epíteto. A história, afinal, é uma arte de revelação, mas não desejo recorrer à metáfora gasta por certos filósofos alemães, que insistiam em tratar a verdade a partir do grego aletheia, que astutamente definem a verdade por meio da negação: lēthē, deusa do esquecimento, e também nome do rio de cuja água os mortos bebiam para se aliviarem das memórias que lhe atormentaram durante a vida. A verdade, alētheia, portanto, equivaleria a recusa de beber dessa água suja, de não permitir esquecer-se. 

Por que não esquecer, no entanto, se a memória, isto a psicanálise hoje trata de discutir, nos causa tanta dor? O esquecimento da morte, a aniquilação total da memória, da consciência do pensar: seria a solução? 

Se eu não me matar amanhã é porque ainda amo alguma coisa. 

Se quero lembrar daquele dia com X. é porque a lembrança não apenas atormenta, mas também rejubila.

Pulsão de morte e pulsão de vida, as duas correm dentro de mim. Preciso me matar, mas apenas certa parte: preciso esquecer o que me faz mal. Mas o que me faz mal? Eis a importância da psicanálise: tomar consciência do mal que carregamos em nós mesmo, e por meio da narração, da história, transformá-lo em outra coisa. 

É preciso contar de novo a mesma história.

É preciso compreender que a mentira liberta. 

O que penso ser é uma mentira, graças a Deus,

É preciso saber criar a verdade. 

A história trata desta criação plástica da verdade.


Comecei a leitura do livro já pelo seu princípio, o que significa dizer que fiz o ortodoxo movimento de de pular os prefácios, que nas mãos de Gilberto - isso descobri tarde demais, depois de já tê-lo lido até quase a exaustão - pior do que atrasar a leitura que o leitor ânsia, possui também o inconveniente de submetê-la a  explicações demoradas e laboriosas sobre aquilo que será visto em primeira mão pelo leitor. 

Os prefácios, se for para serem lidos - digo isso por minha conta e risco - é melhor fazê-los somente depois, quando já se tem alguma condição de comparar as suas impressões com as do prefaciador. Ler um livro é como fazer uma viagem: pegar o atalho do prefácio é muitas vezes como deixar-se levado por um guia, que lhe promete mostrar o louvre, algum monumento importante, um restaurante badalado, mas confesso que abomino os guias de viagem, esses manuais pré-digeridos que estragam a experiência da travessia com comentários impertinentes, que rapidamente colonizam a imaginação do leitor. Toda viagem deveria ser um pouco de descoberta, de se deparar com o inesperado. O mesmo vale para a leitura.


A partir da tecnologia do engenho, dos ganhos obtidos com a venda do açúcar e exploração de escravos africanos - estou empregando, evidente, o modelo de Gilberto Freyre -- os invasores europeus promoveram verdadeira reterritorialização daquele espaço.

Trato de reterritorialização em sentidos diversos, que abrange, ao mesmo tempo, transformações no espaço físico-ecológico, na geografia política, das alianças e pertencimentos dos povos originários, e também, em sentido mais próximo do trabalho de Deleuze & Guattari, uma transformação na própria subjetividade das pessoas que ali viviam.



Em sua arqueologia, Andrea Daher paira sobre a figura de Ferdinand Denis, viajante francês cujas obras foram monumentalizadas não na literatura francesa, mas sim na brasileira, já que, pelo que indica a historiadora, teria sido ele um dos pioneiros em propor, para o desenvolvimento da literatura brasileira - originalmente brasileira -, “um verdadeiro protocolo do olhar”. Daher também indicará que a proposta do francês estava em consonância com um “dispositivo em voga no século XIX”, os “panoramas”, exemplificado por ela por meio de “pinturas monumentais da cidade do Rio de Janeiro”, exigida em Paris em 1824, na Passage des Panoramas do boulevard Montmartre, e executada por G.P. Rommy a partir de desenhos enviados do Brasil por Félix Taunay, A Denis, junto de Hippolyte Taunay, coube o desenvolvimento de um livro, descrito por Dahar como “uma espécie de guia de decifração do panorama”,  

Opinião similar foi também manifesta por Gonçalves de Magalhães, que assim como Ferdinand, criticou a educação estrangeira porque ela “cegava na contemplação de uma Natureza grandiosa, reduzindo-os [os poetas brasileiros] afinal a meros imitadores”.





O principal, contudo, é certa sensação de má-consciência, de busca por certa experiência de autenticidade, muito visível em seu desencanto com o que chamava de literatice, ou ainda, com os modos de vida dos literatos e bacharéis.



No segmento de orla marítima,entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um aparelho litoral revolto, feito de envergadura desarticulada das serras, riçado de cumeadas e corroído de angras, e escancelando-se em baías, repartindo-se em ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à maneira de escombros do conflito secular que ali se trava entre os mares e a terra;  em seguida, transposto o 15° paralelo, a atenuação de todos os acidentes — serranias que se arredondam e suavizam as linhas dos taludes, fracionadas em morros de encostas indistintas no horizonte que se amplia; até que em plena faixa costeira da Bahia, o olhar, livre dos anteparos de serras que até lá o repulsam e abreviam, se dilata em cheio para o ocidente, mergulhando no âmago da terra amplíssima lentamente emergindo num ondear longínquo de chapadas...


O trecho que transcrevo, admito, para além dos propósitos do ensaio, também possui certo aspecto pitoresco, mas uma espécie de picturação dadaísta, de significantes que já não conseguem nada dizer; ou, para mantermos a metáfora visual, trata-se de uma écfrase negativa, em que as palavras surgem, mas sem qualquer luz, sem qualquer capacidade de visão. A descrição, a cor local, e enfim, a própria língua, é uma espécie de código, social e historicamente partilhado, é verdade: e mais que isso, é uma forma de conhecer, saber, perceber: a economia de significantes que estrutura cada cultura é também parte do mundo em que vive essa cultura.  



Não há nada de público nela [na vida de Lúcio]. Todos os seus acontecimentos são uma questão privada de homens isolados: eles não podem ocorrer “às vistas do mundo”, publicamente, na presença de um coro, não estão sujeitos a um relato público (para todo o povo) na praça”. Eles só ganham um sifnificado público específico onde se tornam crimes. A delinquência é aquele momento da vida privada em que ela se torna pública, por assim dizer, a contragosto. No mais, essa vida é constituída de segredos de alcova (traições de “esposas más”, impotência dos maridos, etc), segredos do lucro, pequenos embustes do dia a dia, etc.


 Assim, explica Bakhtin, o romance grego resolveu o problema de representar algo que, por conta  vida e o homem privado:

Ele aplicava formas público-retóricas (naquela época já amortecidas) externas e inadequadas ao conteúdo da vida privada, o que só era possível nas condições do tempo grego da aventura [aqui Bakhtin refere-se aos saltos velozes da narrativa, que sem grandes sutileza vai de um episódio ao outro] e da natureza extremamente abstrata de toda a representação [ou seja, o cenário extremamente vazio em que a ação se situa]. Além disso, nessa mesma base retórica o romance grego introduziu também o processo criminal, que nele desempenhou um papel muito importante. O romance grego ainda empregou parcialmente formas do cotidiano como, por exemplo, a carta.

Como ia dizendo, desconheço a repartição original das sessões d’A utopia. Minha simplória edição de bolso, contudo, reparte o livro em dois discursos. O discurso relativo à descrição da ilha de Utopia, embora anunciado desde o início, é precedido por um discurso primeiro, que atrasa o esperado relato da ilha de Utopia, e impõe ao leitor, ansioso pelo pitoresco, a paciência de atravessar um longo diálogo - cuja duração, em minha edição de bolso, é de 42 páginas - travado entre Morus e Hitlodeu sobre um tema que, no tempo, imagino, era ordinário para aqueles aristocratas. O diálogo discute temas diversos, principalmente relativos à economia política, às melhores maneiras que deve-se organizar a sociedade, e se prepara o leitor para o relato seguinte, das maravilhas vistas por Rafael em Utopia, é por meio da crítica - que em certos momentos, alcança até a sátira - dos costumes e instituições europeias, que se levarmos em conta o que viu e pensou Rafael, muito teriam melhorar se tomassem como exemplo as instituições utópicas.

O diálogo entre Morus e Rafael, embora se ramifique em um segundo diálogo, rememoração da experiência que Rafael teve em certa corte inglesa, se desenvolve a partir de uma estrutura e ritmo simples, como Rafael argumento que  A, e depois Morus, apesar de lhe conceder sempre alguma razão, replicando que B, e assim até se atingir uma espécie de aporia ou impasse intransponível, quanto ao absoluto ceticismo de Hitlodeu diante da política realizada nas cortes: “Mas, dizei-me, caro Morus, pregar uma tal moral a homens que por interesse e por sistema se orientam por princípios diametralmente oposto não é contar histórias à surdos?” 


É perfeitamente inútil dar conselhos quando se tem a certeza de que serão repelidos quer na forma, quer no fundo. Ora, os ministros e políticos de hoje estão impregnados de erros e preconceitos; como quereis bruscamente modificar suas crenças e fazer penetrar, de chofre, em suas cabeças e em seu coração, a verdade e a justiça? Esta filosofia escolástica está no seu lugar em uma conversação familiar, entre amigos; está fora de propósito nos conselhos dos reis, onde grandes coisas são tratadas com grande autoridade e em face do poder supremo.


Há, no diálogo, uma demarcação de dois espaços: o primeiro é o idílico jardim, da “conversação familiar, entre amigos”, em que Rafael e Morus, sim, se antagonizam, sem abdicarem nem da verdade e nem mesmo da cordialidade. O outro espaço é o da corte, em que a aristocracia política, ao deliberar sobre assuntos de ordem pública, no entanto, sob a linguagem cifrada pela retórica e pelo bem-dizer, disputam verdadeira guerra libidinal: viciosos, seja pelos costumes ou má-índole, movem-se simplesmente pelas paixão, pelo desejo antes de agradar do que de enunciar o bom, o justo, o verdadeiro.

 Rafael Hitlodeu resista de todas as maneiras, com os mais astutos argumentos, de expor seu pensamento diante do mundo público, regrado pelo fazer parecer, pela aparência e pelo efeito do discurso, e enfim, dito de maneira sucinta, pela mentira. Contudo, quando está ali, sentado no jardim, ambiente privado, em que nada deseja esconder, em que ninguém a palavra precisa manipular, Rafael parece disposto não apenas a falar, mas, conforme diz aos amigos, deseja mesmo "revelar-vos o fundo de minha alma, e dizer-vos os meus pensamentos mais íntimos". 

Não se trata de revelar a alma, os pensamentos mais íntimos, no sentido confessional de um Rousseau; mas simplesmente de ser sincero: entre amigos, não é preciso vestir as máscaras, nem participar dos jogos de bajulação e eloquência que animam a corte. É entre os amigos que a verdade poderia ser discutida, parece sugerir




É um diálogo que tenciona o que poderíamos chamar de retórica, desse saber destinado ao emprego das palavras, que estuda a eloquência e o bem-dizer, com um outro saber, digamos, da filosofia, que antes de mais nada, orienta-se pelo intelecto, pela honestidade da razão, e que, embora não exatamente lhe recusa, certamente demonstra desprezo pela retórica, por essa ciência que ensina o homem a orientar-se, antes, em um mundo dirigido pelas paixões, em vez de neles cultivar o amor pela verdade.



Quando no jardim de amistosa discussão sobre a deliberação política, naquele tempo realizada nas cortes reais. A história se desenvolve a partir da estrutura e do ritmo de diálogo; um dizendo A; o outro replicando B, até atingirem uma espécie de aporia ou impasse intransponível, quando Rafael Hitlodeu anuncia seu mais absoluto ceticismo diante da política realizada nas cortes: 


  (o teatro, se pensado a partir de sua peculiaridade de ser arte coletiva, feita a muitas mãos, muitas vezes traduz o minimalismo da descrição em espaço para a imaginação e trabalho do cenógrafo)

Se o diálogo de Platão inicia-se sobre as virtudes da velhice - segundo Céfalo,  benéfica por livrar o homem de desejar o sexo, o amor, as mulheres, e permitir que se entregue alegremente ao gozo masculino pela conversação, logo em seguida, quase que por acidente, Céfalo tocará no coração da República, ao afirmar que ”as tensões dos desejos diminuem, ocorre exatamente oque Sófocles dizia: que nos liramos de muitos tiranos furiosos”. Sócrates ficou  “admirado com o que ele dizia”, e para que o velho siga falando, muda a direção da conversação, e o texto gradualmente passa a falar não mais sobre o amor ao sexo, mas ao amor ao dinheiro.

N retratam a filosofia como gozo de conversação, um gozo que Céfalo associa à decadência do corpo pelo tempo, a substituição dos prazeres da carne pelos do intelecto, e o texto d’A república atingirá mais evidente elogio do celibato (e, também, da filosofia como essa espécie de sublimação erótica masculina), quando Céfalo, que é um celibatário entrado em anos, diga-se de passagem, refere-se ao caso de Sófocles, a que perguntaram, quando já envelhecido:

“Como te encontra, Sófocles, em relação ao amor? És capaz, ainda, de estar com uma mulher?” E ele respondeu: “Nem me recordes, bom homem, livrei-me do amor com a maior satisfação, como quem escapa de um senhor furioso e truculento”.

Não desejo prosseguir pelo caminho d’


 que nossa mitologia e repartição do saber insiste em localizar sua

 inscreve como originários de sua vida - 

Minha conferência, portanto, é antes de mais nada um ensaio.

publicização de um pensamento que me ocorreu, 

embora seja meu objetivo pensá-lo como marca da produção e controle do saber no Brasil, 

Gilberto Freyre, evidentemente, é meu principal instrumento de análise, contudo não me ocorreu durante o exame 

Esse ensaio, que aqui apresento,



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