sexta-feira, 19 de maio de 2023

A CRIANÇA E O LIVRO

O garotinho que, pela primeira vez, sem nada saber do que tem em mãos, encontra na estante de sua casa um livro - digamos, um Robinson Crusoé, um Harry Potter, ou podemos imaginar iniciações mais picantes, mais sérias, talvez a Ilíada, ou Amar, Verbo Intransitivo, quem sabe O mulato, ou mesmo, imaginem!, Casa-grande & Senzala…- e em sua curiosidade inocente, abre o livro - as capas geralmente convidam as crianças a descobrir o que há lá dentro - e quando chega na primeira página dá de cara com tal sucessão de parágrafos, tantas palavras, a grafia preta tediosamente pairando no branco da página, e ele verifica que o livro parece prosseguir assim, até o final, mais de cem, duzentas, trezentas páginas nesta monotonia sem som e imagem, e por algum motivo que não sou sequer capaz de imaginar, retorna até a primeira e começa a ler, e que por motivos, estes consigo imaginar, e às vezes, quando leio e atinjo a proeza de esquecer que leio - do jeito que falo, parece que trato de uma experiência mística… ai de nós, pobres leitores profissionais” - mas nestes raros momentos de alegria em que a leitura se torna inocente, sente-se como Adão, imagino, deve ter se sentido ao ver o éden pela primeira vez, ou como Eva, extraída de sua costela, deve ter tremido diante dp tão belo fruto do que foi proibido… e com o livro em mãos, digamos, O supermacho, de Alfred Jerry - retiro exemplos ao acaso, olhando os livros que pairam ao meu lado, em minha estante… imaginem uma tão inocente criança cuja iniciação literária fosse a partir de um escrito tão sexual… Freud diz que a sexualidade infantil já está desenvolvida muito antes da criança aprender a ler, e que a criança já deseja quando instintivamente abocanha o mamilo da mãe… - seja qual for o livro, seja qual for esta primeira leitura, seu corpo de criança sofrerá de alguma coisa que ela sequer sabe nomear, mas que é tão doce quanto o leite materno… sabe ou não sabe que realiza uma experiência milagrosa, que realiza um gozo que para nós, já leitores, podemos somente roçar por meio da fantasia, da imaginação, da ficção, do mito… 

O que deve ser ler sem saber o que está lendo, de repetir no mundo das letras aquilo que ocorre quando saímos pela vagina de nossa mãe e que o impacto é tamanho que não podemos fazer outra coisa senão chorar, porque tudo é novo, experimentado pela primeira vez… o cheiro agradável de alguma fragância da enfermeira, mas provavel que o primeiro cheiro seja desagradável, pois, em partos normais, é comum que a mãe, pela extrema força feita, inevitavelmente defeque… mas já existe distinção entre agradável e desagradável? talvez o excremento seja fragrância, talvez a fragrância seja excremento, para aquele narizinho que acabou de ser apresentado ao mundo… - e não sei se recém-nascidos são capazes de visão, mas alguma luz deve atingir sua retina, alguma sugestão de cor, o que será que deve lhe significar, se já for possível a semântica, aquilo que chamamos de amarelo, ou então, quem sabe, o azul?, e como deve ser esmagadora  aquilo que, para nós, é a simples e anestesiada sensação de estar do lado de fora, os tantos ruídos dos mais variados que nos acostumamos, o frio que devemos sofrer quando saímos, quando comparado ao calor do útero que, talvez, já havíamos aprendido a amar, mesmo que naquele estágio talvez fossemos ainda mais animais do que humanos, e não sei em que altura desenvolve-se o cérebro, e também ignoro o que deve sentir um protozoário ou uma minhoca, que os anatomistas dizem não possuir cérebro…

 

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