sábado, 20 de maio de 2023

O CASO AIRA

O caso Aira é curioso: não me atraiu não por conta de sua ficção, cujo primeiro livro li em uma disciplina da pós-graduação do departamento de letras e cujo título nem me lembro. Simplesmente achei tedioso, e o pior, insípido.

Certos gêneros mais estranhos de arte, essa é a verdade, quase sempre necessitam de alguma introdução ou comentário para que possa ser apreciada.

A arte de vanguarda, a arte nova: se rompeu tão radicalmente com a língua e a tradição pretérita, como o pobre e simples leitor, nela e por ela cultivado, como ele será capaz de entender tamanha estranheza?Como o leitor poderá gozar desta língua que desfez a língua a que conhece e está acostumado?

Por isso que a arte de vanguarda, antes de que possa ser lida como arte, muitas vezes se faz preciso algum tipo de preparação, e por conta disso, talvez, é comum que a crítica precise preceder a obra: para assim iniciar o leitor, prepará-lo e educá-lo para o que está por vir.

Só voltei a me interessar por César Aira quando li um ensaio seu, em que explicava seu procedimento. A arte de escrever quase sem trabalhar. A arte de escrever de outro lugar que não a partir da vida social e psicologicamente limitada do escritor. A arte de produzir escritos estranhos. A arte de assumir múltiplas formas. Foi César Aira quem me entregou as chaves para compreender uma coisa que ainda hoje me coloca para pensar quando penso em literatura: como, afinal, fazer uma história acéfala? Como fazer a literatura ir além da curta imaginação, dos vícios de linguagem e escrita do autor?

Na mesma época, um escritor bem diferente, Burroughs, me entregava a senha para um procedimento contrário, mas simétrico neste objetivo de produzir uma literatura estranha,; não me refiro exatamente aos cut-ups - estes são apenas fração do procedimento -; porque para Burroughs, escrever era espécie de mágica, e o escritor deveria ser um xamã. O corpo era apenas meio para a língua a ser preparada, mas um meio a ser transformado.

Burroughs era um escritor-viajante; precisa sofrer, experimentar, morrer e renascer, porque só assim era capaz de ser escritor. E se a metamorfose do corpo criava uma nova língua, a escrita também tinha o mesmo poder, e sem que perceba, o escritor está falando não a "própria língua", mas uma outra, que nem ele conhecia, e que começa a conhecer enquanto escreve.

Possui o escritor uma língua própria? Pensam geralmente que sim, e a isto costumam referir como estilo, sua individualidade dentro da língua da literatura. Contudo, o escritor que vislumbro, aquele em atividade, um escritor-corpo, no seu limite, diria que não, o escritor não possui uma língua própria; ou ainda, trabalha contra ela.

A obra, o objeto, o vômito, este sim é facilmente fixado como língua, e quando a obra é monumentalizada pela crítica, quando seus livros adquirem reputação e participam de conversas vulgares, é neste momento que reconhecemos os limites humanos do escritor, este ser humano que, ao longo da vida, é biopsicoquimicamente especializado para desejar uma outra língua que não a sua.

Essa ideia de escritor me foi ensinada por César Aira. Talvez seja um modelo de escritor adolescente, ainda capaz de fluir facilmente entre línguas, ainda capaz de cortar com facilidade as raízes que elas representam. Depois de velhos, homens devidamente formados, esta plasticidade talvez se reduza por motivos cognitivos, culturais, psicológicos, ou algum outro. César Aira, no entanto, tentou bolar métodos para seguir escrevendo como este adolescente, sempre fazendo sua língua correr para o estrangeiro, para o outro. O que é o procedimento - se ele existe! - se não tentativa de reduzir ao máximo possível a subjetividade que escreve?

Também é a possibilidade de escrever muito: com facilidade, rapidez e com alegria. César Aira é viciado em escrever, e me parece um viciado alegre. É um escritor hedônico. Publica duas ou três novelitas por ano. Devo ter lido quase duas dezena delas: Algumas achei incríveis, já outras - e admito: eram a maior parte -, não eram exatamente ruins, somente perfeitamente esquecíveis.

Essa é a pior parte da literatura de César Aira. A quantidade acaba ocultando a qualidade. A prosa geralmente rápida e insossa, de tom objetivo, às vezes escrita tão branca quanto a de José Agrippino de Paula, literalmente cansa, e pior que cansar, desinteressa. Espero verdadeiramente que ao fim da carreira o autor ou um editor faça uma boa seleta de suas novelas, creio que seria muito positivo para seus leitores.

A qualidade, ou melhor, a constância, no caso de Aira, é contudo questão menor, pelo menos no caso dos leitores dedicados, os nerds mais obsessivos que gostam de páginas estranhas - porque sim, mesmo que insosso, Aira sempre tem seu quê de estranho. O leitor obsessivo, se insiste em ler as novelas de Aira, se tem coragem de atravessar o tédio - e por que não aprender a ler tediosamente? por que a literatura precisa chocar o tempo todo? por que queremos tanto nos comover? - se o leitor vence o anacronismo dos livros de Aira, em algum momento passará a se afeiçoar, e talvez também comece a perceber algumas coisas que pelo menos eu fui percebendo.

César Aira é realmente um escritor para ser lido sistematicamente; seus livros, quando lidos em série - esta me parece a melhor maneira de lê-lo, em série, como se fossem histórias em quadrinhos... ler a um único livro de César Aira exige o cuidado da curadoria, porque muitos dos alegados grandes livros do escritor são grandes somente para os já iniciados... se for ler um único livro de César Aira para ver o que acha - coisa que não recomendo, o melhor é pegar uns quatro ou cinco, mas sei que temos muitos livros a ler e tão pouco tempo... - bom, que ao menos faça uma boa pesquisa, se informe com leitores mais experientes, ou irá correr o risco de desqualificar um bom escritor, e talvez de ainda bradar por aí como os críticos e intelectualizados cultuam porcarias herméticas.

A leitura de César Aira deve ser feita serialmente, porque passamos a se divertir de verdade quando compreendemos que, postas em conjunto, formam um sistema, mas não um sistema fechado, um monólito, mas um sistema que corre feito um rio, um sistema que escorre feito mijo, um sistema que como todo sistema possui repetição, mas que mesmo as repetições estão deslocadas, como em uma comédia, em que os personagens ocupam as funções equivocadas.

César Aira, evidente, possui um sistema, mas um sistema de múltiplas línguas, e línguas que se sabem literárias e artificiais, em que o tempo todo o mesmo se desloca para um outro lugar, e quando menos esperamos, na novela X reaparece a mesma situação ou objeto da novela Y, e foi quando reparei neste jogo, nesta brincadeira, que passei a gostar de lê-lo.


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