quinta-feira, 16 de maio de 2024

O CÉLEBRE CONCURSO DE TOBIAS BARRETO

Quatro outros intelectuais inscreveram-se no concurso. O primeiro, José Augusto de Freitas, formou-se na Faculdade em 1879 e foi, mais tarde, deputado federal por seu estado, tendo participado da discussão do Código Civil. Ao candidatar-se, era tido sob a proteção do lente J. J. Seabra, posterior chefe político na Bahia, ascendendo, no período republicano, à direção do tradicional centro de ensino pernambucano. Nos começos da década de 80, era considerado, pelos estudantes, um dos professores mais reacionários, o que fazia circunscrever-se a colônia baiana as preferências por seu candidato. Os outros eram: Lomelino Drumond (diplomado pela Faculdade em 1972), Gomes Parente e Machado Portela Filho.

Alguns depoimentos dão-nos a adéia viva e palpitante do evento. O primeiro, de Graça Aranha, na época cursando o primeiro ano e recém-chegado do Maranhão, desajustado e ainda criança. assim registra o fato no livro de memórias que nos deixou incompleto: 

"Esse martírio obscuro, informe, ia cessar. Abrira-se o concurso para professor substituto da Faculdade. Foi o concurso de Tobias Barreto. Eu já havia iniciado os meus estudos na Academia. Era superior ao meu preparo, e professado sem clareza, sem o fluído da comunicação. José Higino, o pesado mestre spenceriano, nos enjoava e nós não o entendíamos. A outra matéria era o Direito Romano, mais compreensível; porém, que professor calamitoso era o velho e ridículo Pinto Júnior! O concurso abriu-se como um clarão para os nossos espíritos. A eletricidade da esperança nos inflamava. Esperávamos, inconscientes, a coisa nova e redentora. Eu saía do martírio, da opressão para a luz, para a vida, para a alegria. Era dos primeiros a chegar ao vasto salão da Faculdade e tomava posição junto à grade que separava a Congregação da multidão dos estudantes. Imediatamente Tobias Barreto se tornou o nosso favorito. Para estimular essa predileção havia o apoio dos estudantes baianos ao candidato Freitas, baiano e cunhado do lente Seabra. Tobias, mulato desengonçado, entrava sob o delírio das ovações. Era para ele toda a admiração da assistência, mesmo a da emperrada Congregação. O mulato feio, desgracioso, transformava-se, na arguição e nos debates do concurso. Os seus olhos flamejavam, da sua boca escancarada, roxa, móvel, saía uma voz maravilhosa, de múltiplos timbres, a sua gesticulação transbordante, porém sempre expressiva e completando o pensamento. O que ele dizia era novo, profundo e sugestivo. Abria uma nova época na inteligência brasileira, e nós recolhíamos a nova semente, sem saber como ela frutificaria em nossos espíritos, mas seguros de que por ela nos transformávamos. Esses debates incomparáveis eram pontuados pela contínuas ovações que fazíamos ao grande revelador. Nada continha o nosso entusiasmo A Congregação, humilhada em seu espírito reacionário, curvava-se ao ardor da mocidade impetuosa. Prosseguíamos impávidos, certos de que, conduzidos por Tobias Barreto, estávamos emancipando a mentalidade brasileira, afundada na Teologia, no Direito Natural, em todos os abismos do conservantismo. Para mim, era tudo isso delírio. Era a alucinação e que um estado inverossímil que eu desejava, adivinhava, mas cuja realização me parecia sobrenatural. Tobias Barreto fez a sua prova de preleção oral. O orador atingiu a minha sensibilidade no auge da eloquência. Quando terminou, recebeu a mais grandiosa manifestação dos estudantes, a cujo entusiasmo aderiram os lentes unânimes".

Gumersindo Bessa, em carta dirigida a um conterrâneo, aluno da Faculdade de Direito de São Paulo, e posteriormente divulgada pela imprensa de Aracaju, registra as suas impressões no próprio decorrer do concurso. Informa, de início, que "avaliar-se em mais de mil as pessoas que têm afluído à sala dos graus não é exagero. É um barulho enorme desde as 7 horas da manhã, na Academia, para achar-se lugar". As provas orais consistiam em arguição realizada pelos próprios candidatos. Assim, no primeiro dia, coube a Lomelino Drumond inquirir a Tobias Barreto em matéria de Direito Eclesiástico. O sergipano aproveitaria a oportunidade para defender algumas de suas idéias a propósito da religião, para escândalo da banca examinadora. No segundo, a arguição estaria a cargo de José Augusto de Freitas. "Reuniu-se a baianada em grupo", prossegue o missivista", para aplaudir o jovem sábio. Os sergipanos e os maranhenses nos reunimos de outro lado para aplaudir o Tobias; e o negócio assumiu proporções de uma luta, que ainda continua e terá tristes consequências, por termos contra nós o Seabra, que se julgou desacatado pela nossa atitude a favor de Tobias". Travou-se a polêmica em torno à validade do Direito Natural. "O Freitinhas", acrescentou Gumersindo Bessa, "empregou um termo que ignorava, para exprimir que era da velha escola, da antiga filosofia. O Tobias ridicularizou-o sem piedade. A baianada retirou-se confusa e envergonhada, e o sergipano levantou-se coberto de aplausos. No outro dia, arguiu Tobias por sua vez. Foi um dia para sempre memorável".

Diversos problemas estiveram em debate, temas, em particular, filosóficos. Segundo o mesmo depoimento, "encareceu o sergipano de José Augusto de Freitas que definisse o que entendia por entidade metafísica. 'entidade metafísica é tudo o que precede e fica independente da sociedade e de suas leis positivas', respondeu Freitas. (Bravo)

"'A época terciária e quaternária mesmo, precederam a sociedade e ficam independentes de suas leis positivas, logo, as épocas terciária e quaternária são entidades metafísicas'. (Gargalhadas gerais.) Aí o Freitinhas empalideceu e disse: 'Isso não é lógica'.

"O Tobias disse: 'É muito boa lógica, Sr. Dr.; mas a lógica não entra em todas as cabeças, porque, se ela entrasse em algumas, produziria o mesmo efeito o que havia de produzir um touro bravo que entrasse em um armazém de vidros' (Gargalhadas)."

O trecho transcrito indica que o futuro professor da Faculdade recorreu sobretudo ao ridículo, durante o célebre concurso, para combater os pontos de vista dominantes no seio da Congregação.

"Chegando a vez do candidato Machado Portela de arguir Tobias", continua Gumersindo Bessa, "não se atreveu a fazê-lo. Limitou-se a pedir-lhe que explicasse a tese, segundo a qual, 'de todos os sistemas filosóficos, só o monismo pode nos dar a verdadeira concepção do direito'".

Eis como o autor da carta reagiu à oração de Tobias Barreto: "Esta é uma verdadeira novidade entre nós, e foi essa a razão pela qual todos aplaudiram a lembrança do Portela. Indaga por aí, por São Paulo, se há um só estudante, um só lente, que tenha ouvido falar em monismo. Ninguém aparecerá. Se duvidas, atira aí no meio da Academia a palavra simbólica. Suporão que tu foste arrancar da boca da esfinge, pois aqui não houve um doutor que a soubesse. Hoje todos sabem que existe um sistema filosófico chamado monismo e qual seja ele. Aprenderam de Tobias, o espírito mais adianto deste país".


MERCADANTE, Paulo. PAIM, Antonio. "Introdução". In: BARRETO, TOBIAS. Estudos de filosofia. 3º edição. Rio de Janeiro: Record; Brasília: INL, 1990, pp. 41 - 43

 

 

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