sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

50. RONDA NOTURNA

50.      RONDA NOTURNA

 

A parte mais noctâmbula da sociedade saía das óperas e comédias que enchiam os teatros do centro e se dirigia, pelas ruazinhas escuras, como grupelhos de formiga, até os espaços propriamente de boêmia. Vinha Nina Rodrigues e Azevedo Diniz em um desses bandos, de braços e a conversar sobre o espetáculo recém-assistido:

                - Eu não estou dizendo que ela mereceu o destino horrendo; é só muito conveniente que a tribuna sequer ouvisse o lado do pai.

                - Ouvir o lado do pai? Como você pode sequer sugerir coisa dessas? O lado do pai não ficou claro, depois de vermos com nossos próprios olhos o seu temperamento? A maneira rude com que foi criado, suscitando a formação não somente de paixões vis, mas de uma verdadeira personalidade criminosa?

                - Está exagerando. Criminoso é quem mata, quem estupra. O pai poderia estar errado, e nenhuma filha deveria ser tratada assim. Claro, é tão óbvio que todo o coro ficou do lado dela. Ninguém deseja defender um sujeito desses.

                - E no entanto, você está defendendo.

                - Não defendo o indefensável, mas demonstro de fato que exista alguma coisa de errada com a defesa.

                - Você me disse que havia já esquecido os anos da Escola da Direito. Que sempre ao encontrar os amigos daquela época, você em seguida se sentia imundo.

- Não é bem assim.

- Você todo final de semana terminava em seu quarto de pensão, bebendo sozinho, introduzindo comprimidos de ópio, até não mais sentir coisa alguma.

                - Eu nunca falaria com uma poesia estúpida dessas. Sentir coisa alguma? Quem deixa de sentir? Quando estou caindo de bêbado, claro que ainda estou sentindo. É só como se as impressões fossem infinitesimais, e por isso mil vezes mais refinadas e puras. A gente rude, acostumada com a sensualidade disso tudo – e apontou a cidade boêmia que se agitava ao seu redor – não consegue sequer cogitar as delícias possíveis somente sob esse gênero de sub-sensitividade, de sub-racionalidade, que eu me especializei em estudar.

                - Andou saindo com o Thomas?

                Desde que Thomas Plínio se juntou com Lola Baruch, havia se tornado um tipo diverso de homem. Antes era boêmio e estúpido, e na verdade, essa hoje era ainda sua fama, já que para muitos, que não viam mais Thomas Plínio a desfrutar da boemia, imaginavam que tivesse morrido. O que aconteceu, contudo, foi o perfeito contrário: Thomas Plínio chegou até sua mãe em um certo dia de terça-feira, depois de ter passado a madrugada vomitando, e começou um diálogo cheio de interrupções e reticências, que pelo meio dos mais variados assuntos, adiou o tema da conversação: Thomas Plínio havia sido expulso do seminário depois de um incidente envolvendo alguns coroinhas. Tudo aquilo era muito injusto, ele justificava para a mãe, tentando controlar as lágrimas que não obstante visivelmente escorriam pelos seus olhos. O pai assistia a tudo, silente, sem dizer um ai. A mãe em algum momento também não resistiu e foi às lagrimas. Depois, beijou o rosto do filho e disse que daria-se um jeito, papai conhecia um professor importante da faculdade e arranjaria uma vaga para ele, reaproveitando todos os créditos possíveis de sua antiga formação de padre. Thomas Plínio ficou hesitante, porque nunca havia se imaginado doutor. Na verdade, Thomas Plínio jamais havia imaginado nada: por toda sua infância ele foi conduzido, como uma vaca pelo pastoreio, a quem se mostra onde comer a grama e tomar sol. Admitiu-se certa vez para Lola Baruch: fui aceitando a ideia que mamãe fez de que eu fosse padre. Claro, por que não? Ora, não parecia mal assim. Eu não era particularmente um devoto quando menino, mas ia as missas, sobretudo para comer balas e brincar com as outras crianças. Fiz a primeira comunhão como se realiza uma tarefa aborrecida, mas a qual sequer se compreende a sua finalidade. Quando no seminário, cheguei mesmo a desfrutar das aulas de teologia. Eu pensei para mim mesmo, talvez é isso, eu deveria mesmo ser padre, e o destino é mesmo só uma banalidade: vive-se bem em qualquer dos mundos. Só que em muito pouco tempo me desviei, e trilhei todos os caminhos que não deveria. Hoje sinto vergonha.

                Para Lola Baruch, que passava horas ouvindo as lamentações de Thomas Plínio e às vezes já se sentia até mesmo aborrecida, e perguntava-se, no meio dessas histórias intermináveis, se valeria mesmo a pena empregar o seu tempo assim. Pensava nas possibilidades: (1) Chutar esse escroto e voltar para casa de papai. E passou então a recordar da infância com muita doçura, como se fosse a época de ouro da sua vida. Lembrou das bondosas mãos de Branca, remendando a sua velha bonequinha, e contando histórias de sua vida:

— Você realmente já foi uma menina, Branca? — perguntou Lola, os olhos nas ágeis falanges a correr agulha pelo tecido puído da boneca. Dona Branca riu baixo, e disse que já havia sido menina sim. Lola no entanto replicou que não podia acreditar, porque havia algo impossível nisso. Dona Branca parecia eterna, com pano de prato, lenço na cabeça, desse sempre obedecendo as gerações dos Baruch.

Ela entregou a boneca para a menina, que lhe abraçou e respirou o cheiro do pano velho, que nem os dos lençóis, herdados de sua avó, que lhe cobria nas noites mais frias. Branca prosseguiu:

— Era bem diferente, isso eu posso dizer. Não havia, naquela época, nenhuma boneca para brincar. Só vi uma boneca depois de velha, e me repugnou que alguém pudesse entregar réplicas humanas para as crianças cometerem seus sadismos. Me enojava flagrar sua mãe e sua tia brincando de coisas erradas com aquelas bonecas de pano. E eu tinha que costurar depois os fios soltos, me sentindo uma faxineira de alcova. Praticamente sentia o cheiro, e concluía que somente podia ser transpiração das meninas. Nem dez anos na cara e já eram malignas: aquele cheiro somente podia ser transpiração de mulher presa ao pano.

Lola, brincando indiferente com a boneca:

- Mas o que fazia se não brincava de boneca?

- Tinha outras coisas. A gente corria de um lado para o outro, tomava banho de rio, conversava, ouvia os velhos contarem histórias, jogava um monte de brincadeira. Nhô Baruch não compreende quando digo-lhe com todas as letras que essa sociedade em que vivemos está uma decadência das mais imundas. Veja as ruas cheias de mendigos e vadios, a viver no limitar da fome e do vício. Que civilização poderia conter esses projetos de seres humanos e ainda se orgulhar da obra da própria raça? Que fosse aqui Paris, e eu diria: talvez exista alguma coisa de valor, mas aqui não é Paris. E os malditos, para fazer todo mundo de trouxa, destinaram uma série de leis para importar uma enorme população de pombos, com a desculpa de que a experiência parisiense mostrava como essas aves contribuíam para as condições higiênicas da cidade. E quando a cidade ficou infestada por essa praga infernal, e não se podia nem mais levar um tabuleiro de doces para trabalhar em paz que se ajuntava uma gangue desses pássaros importados não de Paris, mas das profundezas dos infernos. Conheci gente boa e honesta que perdeu fornadas inteiras de mercadorias por conta desses demônios parasitários. Roubam o produto do nosso trabalho suado, e o Senado ainda resolveu proibir os mata-ratos de caçá-los, com a desculpa de que as penas dos pombos estavam infectadas com um micróbio causador de doenças terríveis. Eles fabricam as notícias, e ainda acreditam que estão contribuindo para o esclarecimento! Uma sociedade assim jamais poderia se orgulhar de si mesma, jamais, a menos que esteja tão decadente que já não possua mais qualquer consciência dos bons e elevados valores, e por isso se entregue às práticas mais horrendas como se fossem simples trivialidades. Falta é vergonha.

Lola fechou os olhos e viu: uma menina de pés descalços, um rio correndo, pedras quentes de sol. Branca era uma criança, e isso era tão estranho que deu vontade de rir. Encostou a cabeça no braço da cadeira onde Branca se sentava, entregou de volta a boneca e disse que havia uma falha. A negra olhou meticulosamente a boneca e voltou a fazer a agulha entrar e sair. Lola disse:

— E sua escrava? Como ela era?

- Eu não tive escravas. Escravos não possuem escravos, bobinha.

- E de quem você judiava quando ficava brava?, espantou-se Lola.

- De meus irmãos mais novos, mas às vezes nos juntávamos para pregar peças em nosso tio, que era um palerma, não fazia nada para ninguém, era um imprestável que dormia às três da manhã e acordava para almoçar a comida de minha mãe. Não entendia como meu pai e meu avô toleravam aquele mequetrefe. Teve uma vez que fomos até ele e dissemos que sua rede estava pegando fogo. O idiota amava a rede mais que tudo, e mesmo que não tivesse acreditado, ficou claramente receoso. Foi então para casa apressado, bem a tempo de ver a sua rede querida se apagar em cinzas.

- E quem contava histórias?

- Os velhos tinham prioridade na fala, e passava muito tempo ouvindo a voz de meus amigos. E agora, cuidando dessa casa, e agora cuidando dessa boneca velha que foi da sua mãe, me acostumei a ouvir a sua.

                (2) chutar Thomas Plínio e casar com Azevedo Diniz. Ele tivera problemas com a justiça, mas nada havia sido provado. Era, até onde podia-se dizer, um bom homem. Formado, e ganhava um salário justo desde que foi nomeado. Fez-se então séries de cálculos econômicos, e comparou a vida de filha com a vida de esposa, e constatou a extrema estupidez de toda a matemática. Passou dias sorumbáticas, querendo ser nada, quando depois da seguinte lembrança, decidiu casar-se com Azevedo Diniz:

               

                Era um dia como qualquer outro. Lola chegou, de braços dados com sua mãe e tia, e um rapaz tirou o chapéu para cumprimentar. A tia virou o rosto e ao entrarem lastimaram a juventude. Noutro dia, dessa vez com Branca, reviu Azevedo Diniz e, para sua surpresa, se dirigiu até as duas. Conhecia Branca, e lhe cobriu de galanteios, como se Branca fosse uma mocinha. Chegou em casa e viu no espelho o próprio corpo e não compreendeu o que se passava. Então, a porta sua abriu e era seu pai, que recuou depois de ver a filha nua. Desde então, passou a nutrir uma paixonite incestuosa pela filha. Uma vez que bebeu foi espiá-la no quarto. Viu a jovem repousar na cama. Fechou a porta e se matou. Tudo diante da mãe, que depois contou tudo secamente à filha.

                Só que quando Lola Baruch foi procurar Azevedo Diniz, soube que ele estava com Nina Rodrigues, e teve que resignar voltar à casa do pai. Todo o seu pensamento não serviu para nada, e Lola Baruch disse para si mesma que era a última vez que viria a pensar alguma coisa. Por isso compreendeu quando, ao enfim sentarem em uma mesa de bar, Azevedo Diniz concluiu sua argumentação dizendo que gostaria de ser um protozoário. Seus experimentos com alterações sensoriais fizeram-lhe concluir empiricamente que a consciência primitiva das amebas é muito mais avançada do que a humana. Era muito superior aquele mundo microorgânico das sensações mínimas, das intensidades infinitesimais, cujo cume da consciência era, quando mundo, o sonho, ou ao menos impressões de sonho, como aquelas que se experimenta depois de acordar no meio do sono, sentir roçar em nós algum pensamento, e imediatamente voltar a dormir.

                Ficaram então em silêncio para ouvir a música que tocava nos roufenhos fonógrafos do botequim. Ao lado, um fuzileiro naval, aos berros com turcos, acrescenta a sua voz aos dos cavaquinhos e violões que escapam da vitrola. Pelas calçadas, paradas às esquinas, à beira do ponta do pé, carregadores espapaçados, rapazes de camisa de meia e calça branca bombacha com o corpo flexível dos birbantes, marinheiros, bombeiros, túnicas vermelhas e fuzileiros – uma confusão, uma mistura de cores, de tipo, de vozes, que fez Nina Rodrigues e Azevedo Diniz temporariamente esquecerem os problemas. No dia seguinte acordaram de ressaca, a cabeça doendo, e o corpo exausto de tanto se distrair.


terça-feira, 14 de janeiro de 2025

aforismos sobre o prazer

 1. se o princípio do prazer já foi considerado o guardião da vida, a experiência da dependência química demonstra sem dar margem para dúvidas o poder mortífero do prazer.

2. a psicologia mecanicista muito habilmente confundiu a produção libidinal com simples movimentos de encher e esvaziar, como se o prazer fosse ou um gás que se acumula e depois estira, ou então, seu reverso, um estado de repouso absoluto, subitamente rompido por forças estrangeiras. mas, se como acreditamos, existe alguma verdade nessa mecânica libidinal (freud já havia falado sobre como os saculejos de um trem ou ônibus são capazes de estimular sexualmente seus passageiros), o prazer no entanto não parece nascer nem de um aumento na excitação (orgasmo), e nem de seu oposto (nirvana), muito embora possa ser produzido pelos dois. seria então mais conveniente ver o prazer não como um movimento unidirecional, mas sim como um ritmo, uma cadência coreografada, em que o prazer se produz a partir de cortes e fluxos sucessivos.

3. freud escreve que o nirvana representa a tendência do ser vivo à morte; o prazer e a libido, representam a sua tendência à vida; e ainda, a realidade representa as influências do meio externo sobre o ser. 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

ARREBOL QUADRADO 100# um discurso do método a pretexto de um trauma de guerra (feat. garudadeity)

Começo a escrever essas memórias a partir de uma lembrança desprovida de qualquer sentido, vinda do recôndito inconsciente para o claro pensar, sem que eu pudesse dar com as razões precisas para seu aparecimento. Sei que todo pensamento possui uma causa, mas a verdade é que já me alongo demais - em breve preciso sair para tomar ao bonde; passo então ao relato, com a esperança de que ele possa esclarecer sobre as origens dessa erupção mnemônica improvável. 

Como a lava que a terra, em momentos mais importunos, desatina a cuspir de seu recôndito, me veio aquela maneira pausada e cheia de gírias com que Isaías Brasileiro me contava de suas memórias de guerra. 

Antes de passar ao seu discurso de imediato, prefiro fazer breve perfil desse sujeito. Sei que assim não se pode remediar a ausência daquela presença física, do encanto e magnetismo das histórias que saem da boca de seres orgânicos. O papel do livro é muito mais tedioso que o corpo a fazer marabales e gritar palavras belíssimas, mas como meu corpo foi terrivelmente reprimido pelos métodos terapêuticos dos doutores jesuítas, minha língua se paralisou e meu corpo se endureceu em posições predeterminadas pelos exercícios de Ignácio de Loyola.

Todos os rapazes, desde o tempo do colégio, gostavam de ler sobre a guerra. Na verdade, desde os tempos de minha infância, eles já brincavam de polícia e ladrão e, na falta de companhia, pegavam seus bonequinhos de soldados para reencenar as carnificinas da história. Claro que na cabeça da criança tudo é muito inocente, e nada sabem da realidade que um sargento legítimo, como era o caso de Isaías Brasileiro, era testemunha ocular. Ao ouvir Isaías falar-me sobre a realidade da guerra, ele parecia esperar que eu me apavorasse, mas me encantou a descrição da carnificina. Percebendo que estava me divertindo, Isaías foi se soltando, e passou ao relato da vez em que enfiaram uma granada no cu de um prisioneiro. Isaías apostou que dividia o paraguaio em dois; seu companheiro, Erick Von Struck, disse que o fêmur era mais resistente do que aço industrial, e que apesar da avaria causada em todos os órgãos, o corpo do paraguaio preservaria a sua organização contínua. Eles então tiraram o pino, correram para longe e dispararam um tiro na cabeça do prisioneiro. O impacto foi suave, quase não saiu sangue. O paraguaio então caiu, com leveza, ao chão, como se fosse uma pluma, mas com impacto suficiente para acionar o mecanismo da granada e fazer seu corpo ir pelos ares. Depois do estampido, Isaías e Erick se aproximaram, apertando suas carteiras contra os dedos, ansiosos para ver o resultado daquele joguete. Quando Erick alcançou o cadáver, gritou e dançou, cheio de alegria, ao ver que, apesar da barriga do paraguaio ter desaparecido por completo, restando apenas um monte volumoso de tripa e sangue, e que muitos ossos dos braços e pernas tivessem rebentado, a estrutura do corpo continuava de pé, com o crânio inclusive pendendo em um osso do pescoço. 

Claro que Isaías ficou contrariado, e buscou argumentar que os ossos partidos caracterizavam a segmentação de sua estrutura em dois, mas depois que o médico do regimento, o Dr. Fréderik, foi consultado, foi concluído que a separação da estrutura deveria ser aferida a partir da coluna que interligava o fêmur e os membros superiores. "Estando o fêmur, a coluna e o crânio reunidos em um mesmo sistema, mesmo as formas defeituosas de vida podem subexistir", e levou os dois sargentos para um tour em seu laboratório, em que fazia experiências eugênicas com corpos humanos. Passou a mostrar um espécime de sua coleção, "Calibã, o feioso". Não tinha nem pernas nem braços, e se arrastava como uma cobra. Ao ver o doutor, se atirou de sua cama e, com uma velocidade que impressionou os visitantes, correu até Fréderik e passou a se esfregar em suas pernas, como se tentasse subir no colo de seu criador. 

- Chega, Calibã! Chega!, Eu não tenho comida. Vá deitar ou terei que dar a você uma nova sessão de eletrochoques.

O monstro rapidamente murchou e correu para um canto embaixo da mesa. Isaías, contrariado, meteu a mão no bolso e deu a nota para seu companheiro.

Pedi então para que Isaías me contasse algo sobre os campos de batalhas. 

- O que, garoto?

- Qualquer coisa.

- Qualquer coisa o quê?

Fiquei constrangido.

- Sei lá... As armas? 

Ele então fez uma pausa, como se procurasse lembrar, e passou a me contar:

O motor a vapor cuspia redemoinhos sujos e quentes de fumaça no ar, misturando-se à fuligem e ao cheiro azedo de pólvora que infestava o vale. O céu, cinza e opaco, parecia afundar sobre as trincheiras. Homens, encolhidos contra as paredes de terra úmida, apertavam os fuzis com mãos trêmulas e olhos fundos. Suor escorrendo, respiração entrecortada, olhos úmidos, tremor involuntário dos lábios. E então, aquela aberração de ferro e vapor ergueu-se sobre eles.

        A máquina.

        Construção grotesca, carroça de guerra maldita e monstro metálico. Pernas articuladas, grossas como troncos, gemiam sob o peso da plataforma blindada, cuja instabilidade parecia zombar da segurança de tais obras da engenharia. Uma chapa de ferro maciço protegia a frente, amassada e marcada por buracos de munições de outros combates, enquanto, acima dessa, o canhão principal oscilava, como um olho enorme, mecânico e inquieto. Besta faminta, expirando jatos de fumaça espessa. Na traseira, o motor a vapor roncava pelos escapamentos. Engrenagens externas giravam irregularmente, expelindo óleo velho sobre a terra, e os pistões subiam e desciam com tal violência que faziam tremer o solo sob os pés.

        "Avançar!", gritou o tenente, erguendo-se por um instante acima da trincheira e apontando adiante. Sua voz era engolida pelo estrondos, mas os soldados, por memória múscular, um instinto mecânico aprendido na escola da guerra, entenderam, e se dirigiram para a luta. Entenderam e não tiveram escolha. 

No interior da máquina, dois operadores puxavam alavancas, giravam válvulas, ajustavam manômetros em um esforço desesperado para evitar que aquela coisa explodisse antes de cumprir sua função. O motor chiou e vibrou, engasgado. Óleo cuspido do solo. Pistões dispararam com um estalo. A estrutura toda inclinou-se para trás, e como uma rã, se colocou prestes a pular.

        De repente, o salto.

        A máquina ergueu-se do solo com um ruído gutural, deslocando um volume de ar que levantou terra, pedras e detritos ao redor. Um instante de suspensão — a máquina pairando no ar, seu peso desafiando toda lógica — então, o impacto. O chão cedeu sob o peso: a aterrissagem rachou o solo e arremessou pedaços de lama e lascas de trincheiras para todos os lados. A cabine interna balançou como um brinquedo descontrolado e os dois homens lá dentro. Presos por cintos de couro manchados de graxa, bateram a cabeça contra as chapas de ferro que os rodeavam.

        "Alinhar o canhão! Dois graus acima!", gritou um, a voz embargada; o outro, vermelho e suado, obedeceu: girou o volante do mecanismo principal enquanto o canhão erguia-se num ranger metálico. Alvo: trincheira inimiga à frente. Homens espreitavam detrás de barricadas improvisadas, fuzis prontos, mas congelados diante daquela visão que avançava como uma paródia do reino animal e da engenharia mais avançada.

        O disparo rugiu engolindo o próprio som da guerra. A explosão jogou a máquina para trás, seus pistões guinchando sob a potência, enquanto a bola de ferro rasgava o ar em uma trajetória grosseira. Não acertou o alvo — mas isso não importava. A terra explodiu em fragmentos, um buraco abriu-se no chão e gritos atravessaram a fumaça. Alguns homens caíram pelo impacto, muitos caíram pelo puro terror. Alguns tentaram correr, abandonando seus postos; outros permaneceram esmagados pela inércia do medo.

        O operador do canhão olhou para o lado e cuspiu sangue. "De novo?", perguntou, quase sem acreditar aquilo ser possível.

        "De novo." O outro puxou mais uma alavanca. A máquina avançava, preparando-se para um segundo pulo. O motor grunhiu mais alto, vomitando vapor em rajadas frenéticas. A chapa frontal, enegrecida pela fuligem e marcada por impactos recentes, parecia o rosto de um monstro mascarado, cego — perigoso. A máquina inclinou-se para trás novamente, as pernas mecânicas dobrando-se em ângulos estranhos. Era como se o próprio ar se recusasse a ceder passagem àquilo.

        Então, o segundo salto.

        Dessa vez, a máquina pousou em plena linha inimiga. Homens gritaram, dispersando-se em todas as direções. Um projétil de um fuzil acertou uma das pernas da máquina, mas ricocheteou deixando apenhas um arranhão superficial. O canhão girou mais uma vez. Dentro, os operadores lutavam contra a instabilidade, ajustando desesperadamente os controles. Lá fora, a trincheira inimiga desmoronava-se em caos e pânico.

        "Disparar!" O comando, um trovão.

         O impacto destruiu o pouco que restava da estrutura da trincheira à frente, arremessando pedaços de corpos e de barricadas à atmosfera. A fumaça espalhou-se feito manto sufocante, misturando-se à lama e ao sangue que pintavam o solo. No interior da máquina, os operadores lutavam para manter a posição, enquanto o motor ameaçava explodir.

       E, ainda assim, dobrou os joelhos preparando-se para o terceiro salto.

        Nessa ponto da história, Isaías interrompeu a história a pretexto de puxar um pouco de rapé pelo nariz. Não estava acostumado a cheirar rapé, mas me pareceria uma desfeita a Isaías. Não sabia dos efeitos entorpecentes que a matéria causa em algumas sensibilidades mais predispostas. Por isso, acabei adormecendo. 

Acordei em meu pijama, no quarto de visitas. Não lembrava de nada, e me sentia por algum motivo envergonhado. Quando saí, encontrei Branca, a esposa de Isaías, colocando a mesa do café. Fui até ela e dei bom dia. Ela então passou a me contar sobre a noite anterior:


arrebol quadrado 777# viagem ao estrangeiro do cabo marcos e seu encontro com alencastro e tímpano

o falatório interminável. música alta de altos falantes. tímpano, marcos e alencastro caminhavam pela passarela. a selva de pedra de lojas enormes e toldos a fazer sombra. o bafo quente de uma cidade construída com os mais precários recursos nos vales profundos e semi-áridos do sertão de dali. tímpano, que era músico, perguntou para alencastro qual era o seu estilo favorito de música. ela respondeu que era o bolero, e os três ficaram discutindo bem alto sobre as mais belas cantigas 

Tímpano passava o dedo no copo.

— Agustín Lara maior que Lucho Gótica? É absurdo.

Marcos inclinava-se na cadeira, polindo o cabo de sua baioneta com um pano velho.

— Lara escreveu para o México. Lucho é uma voz universal, uma emoção crua e humana. Não tem comparação com um caipira de província recitando cantigas sobre bois.

Alencastro, sentado com as pernas cruzadas, olhava as unhas recém-feitas.

— Vocês esquecem de Toña La. Ela é rainha.

Tímpano se indignou:

- Não fale assim! Ela é boa, mas bolero é um gênero masculino. Vozes graves, melancólicas. Não tem espaço para exagero.

Alencastro rebateu:

— É disso que vocês gostam, então? Homens tristes, abandonados?

Aparece alguém para entregar panfletos religiosos e interrompe:

— Benção, irmã.

— Já sei, porque nosso criador é, etc etc. Não acreditamos em Deus. Saia de nosso caminho.

Marcos pigarreou, secamente, enquanto seguiam.

— Bolero é só música. Muita palavra pra pouca nota.

Tímpano levantou o copo, brindando as palavras sábias do militar. Era sem estudo mas tinha a sabedoria pragmática da vida.

Chegaram na padaria e Marcos deu um salto ao ver as vitrines abarrotada de mercadorias. Marcos olhava para tudo, confuso. Pães dourados, pães brancos, pães grandes, pequenos, com sementes, sem sementes. A boca dele começou a encher de saliva. Ele se aproximou do balcão.

— Quanto é o pão mais barato?

A atendente respondeu sem levantar a cabeça.
— Dez centavos cada.

Marcos quase gritou:

— Dez centavos?!

Ele pediu cinco, comeu ali mesmo, sentado entre Tímpano e Alencastro. Falava de boca cheia, farelos caindo sobre o uniforme.

— Lá em casa não tem isso, não. Pão é coisa rara. É caro demais. Não dá pra comprar.

Ele mastigava rápido, engolindo entre frases. Os outros olhavam em silêncio, até que Alencastro o abraçou pelos ombros. Tímpano fez o mesmo, segurando o braço de Marcos. O soldado olhou para eles, surpreso, mas continuou mastigando. 

Deixaram Marcos na entrada de uma rua mal iluminada. Ele acenou com a mão e desapareceu. No carro, Alencastro estava calado, o olhar fixo na estrada. Tímpano dirigia, tamborilando no volante.

— Tímpano, — disse Alencastro, depois de um longo silêncio. — Preciso dizer uma coisa.

— Diga.

— Eu estou apaixonada por Marcos.

Tímpano riu, mas o riso foi curto.

— Você sempre gosta de quem não te percebe.

Alencastro virou o rosto para a janela, a respiração curta.

O carro seguiu pela noite, sem mais palavras.


50. RONDA NOTURNA

50.       RONDA NOTURNA   A parte mais noctâmbula da sociedade saía das óperas e comédias que enchiam os teatros do centro e se dirigia,...