50.
RONDA
NOTURNA
A parte mais noctâmbula da sociedade saía das óperas e comédias que
enchiam os teatros do centro e se dirigia, pelas ruazinhas escuras, como
grupelhos de formiga, até os espaços propriamente de boêmia. Vinha Nina
Rodrigues e Azevedo Diniz em um desses bandos, de braços e a conversar sobre o
espetáculo recém-assistido:
- Eu não estou dizendo que ela
mereceu o destino horrendo; é só muito conveniente que a tribuna sequer ouvisse
o lado do pai.
- Ouvir o lado do pai? Como você
pode sequer sugerir coisa dessas? O lado do pai não ficou claro, depois de
vermos com nossos próprios olhos o seu temperamento? A maneira rude com que foi
criado, suscitando a formação não somente de paixões vis, mas de uma verdadeira
personalidade criminosa?
- Está exagerando. Criminoso é
quem mata, quem estupra. O pai poderia estar errado, e nenhuma filha deveria
ser tratada assim. Claro, é tão óbvio que todo o coro ficou do lado dela. Ninguém
deseja defender um sujeito desses.
- E no entanto, você está
defendendo.
- Não defendo o indefensável, mas
demonstro de fato que exista alguma coisa de errada com a defesa.
- Você me disse que havia já
esquecido os anos da Escola da Direito. Que sempre ao encontrar os amigos
daquela época, você em seguida se sentia imundo.
- Não é bem assim.
- Você todo final de semana terminava em seu quarto de pensão, bebendo sozinho,
introduzindo comprimidos de ópio, até não mais sentir coisa alguma.
- Eu nunca falaria com uma
poesia estúpida dessas. Sentir coisa alguma? Quem deixa de sentir? Quando estou
caindo de bêbado, claro que ainda estou sentindo. É só como se as impressões
fossem infinitesimais, e por isso mil vezes mais refinadas e puras. A gente
rude, acostumada com a sensualidade disso tudo – e apontou a cidade boêmia que
se agitava ao seu redor – não consegue sequer cogitar as delícias possíveis
somente sob esse gênero de sub-sensitividade, de sub-racionalidade, que eu me
especializei em estudar.
- Andou saindo com o Thomas?
Desde que Thomas Plínio se juntou
com Lola Baruch, havia se tornado um tipo diverso de homem. Antes era boêmio e
estúpido, e na verdade, essa hoje era ainda sua fama, já que para muitos, que
não viam mais Thomas Plínio a desfrutar da boemia, imaginavam que tivesse morrido.
O que aconteceu, contudo, foi o perfeito contrário: Thomas Plínio chegou até
sua mãe em um certo dia de terça-feira, depois de ter passado a madrugada vomitando,
e começou um diálogo cheio de interrupções e reticências, que pelo meio dos mais
variados assuntos, adiou o tema da conversação: Thomas Plínio havia sido
expulso do seminário depois de um incidente envolvendo alguns coroinhas. Tudo
aquilo era muito injusto, ele justificava para a mãe, tentando controlar as
lágrimas que não obstante visivelmente escorriam pelos seus olhos. O pai
assistia a tudo, silente, sem dizer um ai. A mãe em algum momento também não
resistiu e foi às lagrimas. Depois, beijou o rosto do filho e disse que
daria-se um jeito, papai conhecia um professor importante da faculdade e
arranjaria uma vaga para ele, reaproveitando todos os créditos possíveis de sua
antiga formação de padre. Thomas Plínio ficou hesitante, porque nunca havia se
imaginado doutor. Na verdade, Thomas Plínio jamais havia imaginado nada: por
toda sua infância ele foi conduzido, como uma vaca pelo pastoreio, a quem se
mostra onde comer a grama e tomar sol. Admitiu-se certa vez para Lola Baruch: fui
aceitando a ideia que mamãe fez de que eu fosse padre. Claro, por que não? Ora,
não parecia mal assim. Eu não era particularmente um devoto quando menino, mas
ia as missas, sobretudo para comer balas e brincar com as outras crianças. Fiz
a primeira comunhão como se realiza uma tarefa aborrecida, mas a qual sequer se
compreende a sua finalidade. Quando no seminário, cheguei mesmo a desfrutar das
aulas de teologia. Eu pensei para mim mesmo, talvez é isso, eu deveria mesmo
ser padre, e o destino é mesmo só uma banalidade: vive-se bem em qualquer dos
mundos. Só que em muito pouco tempo me desviei, e trilhei todos os caminhos que
não deveria. Hoje sinto vergonha.
Para Lola Baruch, que passava horas
ouvindo as lamentações de Thomas Plínio e às vezes já se sentia até mesmo
aborrecida, e perguntava-se, no meio dessas histórias intermináveis, se valeria
mesmo a pena empregar o seu tempo assim. Pensava nas possibilidades: (1) Chutar
esse escroto e voltar para casa de papai. E passou então a recordar da infância
com muita doçura, como se fosse a época de ouro da sua vida. Lembrou das
bondosas mãos de Branca, remendando a sua velha bonequinha, e contando
histórias de sua vida:
— Você realmente já foi uma menina,
Branca? — perguntou Lola, os olhos nas ágeis falanges a correr agulha pelo
tecido puído da boneca. Dona Branca riu
baixo, e disse que já havia sido menina sim. Lola no entanto replicou que não
podia acreditar, porque havia algo impossível nisso. Dona Branca parecia
eterna, com pano de prato, lenço na cabeça, desse sempre obedecendo as gerações
dos Baruch.
Ela entregou a boneca para a menina, que lhe abraçou e respirou o cheiro
do pano velho, que nem os dos lençóis, herdados de sua avó, que lhe cobria nas
noites mais frias. Branca prosseguiu:
— Era bem diferente, isso eu posso dizer. Não havia, naquela época, nenhuma
boneca para brincar. Só vi uma boneca depois de velha, e me repugnou que alguém
pudesse entregar réplicas humanas para as crianças cometerem seus sadismos. Me
enojava flagrar sua mãe e sua tia brincando de coisas erradas com aquelas
bonecas de pano. E eu tinha que costurar depois os fios soltos, me sentindo uma
faxineira de alcova. Praticamente sentia o cheiro, e concluía que somente podia
ser transpiração das meninas. Nem dez anos na cara e já eram malignas: aquele
cheiro somente podia ser transpiração de mulher presa ao pano.
Lola, brincando indiferente com a boneca:
- Mas o que fazia se não brincava de boneca?
- Tinha outras coisas. A gente corria de um lado para o outro, tomava
banho de rio, conversava, ouvia os velhos contarem histórias, jogava um monte
de brincadeira. Nhô Baruch não compreende quando digo-lhe com todas as letras
que essa sociedade em que vivemos está uma decadência das mais imundas. Veja as
ruas cheias de mendigos e vadios, a viver no limitar da fome e do vício. Que
civilização poderia conter esses projetos de seres humanos e ainda se orgulhar
da obra da própria raça? Que fosse aqui Paris, e eu diria: talvez exista alguma
coisa de valor, mas aqui não é Paris. E os malditos, para fazer todo mundo de
trouxa, destinaram uma série de leis para importar uma enorme população de
pombos, com a desculpa de que a experiência parisiense mostrava como essas aves
contribuíam para as condições higiênicas da cidade. E quando a cidade ficou
infestada por essa praga infernal, e não se podia nem mais levar um tabuleiro
de doces para trabalhar em paz que se ajuntava uma gangue desses pássaros
importados não de Paris, mas das profundezas dos infernos. Conheci gente boa e
honesta que perdeu fornadas inteiras de mercadorias por conta desses demônios parasitários.
Roubam o produto do nosso trabalho suado, e o Senado ainda resolveu proibir os
mata-ratos de caçá-los, com a desculpa de que as penas dos pombos estavam
infectadas com um micróbio causador de doenças terríveis. Eles fabricam as
notícias, e ainda acreditam que estão contribuindo para o esclarecimento! Uma
sociedade assim jamais poderia se orgulhar de si mesma, jamais, a menos que
esteja tão decadente que já não possua mais qualquer consciência dos bons e
elevados valores, e por isso se entregue às práticas mais horrendas como se
fossem simples trivialidades. Falta é vergonha.
Lola fechou os olhos e viu: uma menina de pés descalços, um rio
correndo, pedras quentes de sol. Branca era uma criança, e isso era tão
estranho que deu vontade de rir. Encostou a cabeça no braço da cadeira onde
Branca se sentava, entregou de volta a boneca e disse que havia uma falha. A
negra olhou meticulosamente a boneca e voltou a fazer a agulha entrar e sair.
Lola disse:
— E sua escrava? Como ela era?
- Eu não tive escravas. Escravos não possuem escravos, bobinha.
- E de quem você judiava quando ficava brava?, espantou-se Lola.
- De meus irmãos mais novos, mas às vezes nos juntávamos para pregar
peças em nosso tio, que era um palerma, não fazia nada para ninguém, era um imprestável
que dormia às três da manhã e acordava para almoçar a comida de minha mãe. Não
entendia como meu pai e meu avô toleravam aquele mequetrefe. Teve uma vez que fomos
até ele e dissemos que sua rede estava pegando fogo. O idiota amava a rede mais
que tudo, e mesmo que não tivesse acreditado, ficou claramente receoso. Foi
então para casa apressado, bem a tempo de ver a sua rede querida se apagar em
cinzas.
- E quem contava histórias?
- Os velhos tinham prioridade na fala, e passava muito tempo ouvindo a
voz de meus amigos. E agora, cuidando dessa casa, e agora cuidando dessa boneca
velha que foi da sua mãe, me acostumei a ouvir a sua.
(2) chutar Thomas Plínio e casar
com Azevedo Diniz. Ele tivera problemas com a justiça, mas nada havia sido
provado. Era, até onde podia-se dizer, um bom homem. Formado, e ganhava um
salário justo desde que foi nomeado. Fez-se então séries de cálculos
econômicos, e comparou a vida de filha com a vida de esposa, e constatou a
extrema estupidez de toda a matemática. Passou dias sorumbáticas, querendo ser
nada, quando depois da seguinte lembrança, decidiu casar-se com Azevedo Diniz:
Era um dia como qualquer outro.
Lola chegou, de braços dados com sua mãe e tia, e um rapaz tirou o chapéu para
cumprimentar. A tia virou o rosto e ao entrarem lastimaram a juventude. Noutro
dia, dessa vez com Branca, reviu Azevedo Diniz e, para sua surpresa, se dirigiu
até as duas. Conhecia Branca, e lhe cobriu de galanteios, como se Branca fosse
uma mocinha. Chegou em casa e viu no espelho o próprio corpo e não compreendeu o
que se passava. Então, a porta sua abriu e era seu pai, que recuou depois de
ver a filha nua. Desde então, passou a nutrir uma paixonite incestuosa pela
filha. Uma vez que bebeu foi espiá-la no quarto. Viu a jovem repousar na cama. Fechou
a porta e se matou. Tudo diante da mãe, que depois contou tudo secamente à
filha.
Só que quando Lola Baruch foi
procurar Azevedo Diniz, soube que ele estava com Nina Rodrigues, e teve que
resignar voltar à casa do pai. Todo o seu pensamento não serviu para nada, e
Lola Baruch disse para si mesma que era a última vez que viria a pensar alguma coisa.
Por isso compreendeu quando, ao enfim sentarem em uma mesa de bar, Azevedo
Diniz concluiu sua argumentação dizendo que gostaria de ser um protozoário.
Seus experimentos com alterações sensoriais fizeram-lhe concluir empiricamente
que a consciência primitiva das amebas é muito mais avançada do que a humana.
Era muito superior aquele mundo microorgânico das sensações mínimas, das
intensidades infinitesimais, cujo cume da consciência era, quando mundo, o
sonho, ou ao menos impressões de sonho, como aquelas que se experimenta depois
de acordar no meio do sono, sentir roçar em nós algum pensamento, e
imediatamente voltar a dormir.
Ficaram então em silêncio para
ouvir a música que tocava nos roufenhos fonógrafos do botequim. Ao lado, um
fuzileiro naval, aos berros com turcos, acrescenta a sua voz aos dos cavaquinhos
e violões que escapam da vitrola. Pelas calçadas, paradas às esquinas, à beira
do ponta do pé, carregadores espapaçados, rapazes de camisa de meia e calça
branca bombacha com o corpo flexível dos birbantes, marinheiros, bombeiros,
túnicas vermelhas e fuzileiros – uma confusão, uma mistura de cores, de tipo,
de vozes, que fez Nina Rodrigues e Azevedo Diniz temporariamente esquecerem os
problemas. No dia seguinte acordaram de ressaca, a cabeça doendo, e o corpo exausto
de tanto se distrair.