terça-feira, 5 de novembro de 2024

sobre uma psico-episteme em FLORESTAN FERNANDES: o saber universal do burguês ascendente

Caracterizemos brevemente os traços psico-epistêmicos de um Florestan Fernandes. Tal empreendimento não é ocioso, já que, ao invés de nos referirmos a idiossincrasias subjetivas, como que fantasias ou ideologemas que, no ato do conhecimento, seriam o resíduo da produção objetiva, estamos aqui a determinar a psicologia como uma condição para o próprio conhecimento formulado. Esse tratamento psicológico dado ao estudo do conhecimento, ao invés de interditar a possibilidade da verdade objetiva e universal, oferecendo a impossibilidade do conhecimento - necessariamente subjetivo e parcial -, procura sobretudo entender como essas espécies de condicionantes psicológicas se articulam diretamente com a matéria ou conteúdo do saber. Ou seja, como que o saber, ao invés de ser comprometido ou deteriorado pelas disposição subjetivas - suas paixões e afetos -, são, na verdade, possíveis somente neles e por meio deles.

O exame do caso de Florestan Fernandes, portanto, nos serve como ocasião para testarmos essa perspectiva que chamamos de psico-epistêmica, deixando ao leitor a avaliação de sua pertinência para uma história da teoria e das práticas intelectuais, que, à despeito do realce monográfico ou personalista que aqui parecemos impor, deve articular, sobretudo, uma teoria histórica ou social de tais práticas teóricas. Isso implica que as subjetividades, e assim, esse campo de investigação que chamamos de psico-epistêmico, não deve ser tomado como meramente biográfico ou individual, muito embora aqui tomemos uma biografia como ponto de partida. O que pretendemos sugerir é que, ao invés de uma irredutibilidade ao caso concreto e particular, as subjetividades devem ser avaliadas desde a perspectiva de sua interação, de forma que, em nível metodológico e pragmático, a biografia de um sujeito como que evidencia as lacunas e recalques manifestos na escrita de um outro. Essa perspectiva, assim, nos leva em direção a um conceito antes de escritura (cf. Roland Barthes, O grau zero da escritura), em que a subjetividade se vê imposta, desde esse sistema de relações que chamamos de escritura, a tomar posições, ao invés de criar-se a si, autonomamente. Por isso que estamos sobretudo a tomar as subjetividades não como referentes a uma mente individual, mas pertinente a um sujeito transcendental e histórico, cuja totalidade ultrapassa os dados biográficos, de forma a insinuar essa totalidade escriturária em que tal biografia seria somente expressão de uma determinada posição.

Essa longa digressão teórica visa, sobretudo, a introduzir essa nota sobre o caso de Florestan Fernandes. Segundo nossa impressão, tomado de seus textos teóricos sobre sociologia, mas também dos relatos autobiográficos do próprio, encontramos uma convergência entre a mitologia liberal da ascensão social - chamemos isso de mito da democracia social, em que as classes baixas tem possibilidade de ascender econômica e socialmente -, e uma epistemologia que, fundada sobre o conceito de ciência empírica e objetiva, procura instalar o saber sobre um ponto de vista universal e cosmopolita, feito à despeito das subjetividades e, mesmo, contra as suas vaidades e preconceitos.

Explique-se brevemente que a trajetória de Florestan Fernandes, não obstante a origem proletária ou serviçal - enfim, sua origem plebeia -, se inscreve perfeitamente nessa mitologia burguesa que, por meio do trabalho duro, vence todas as barreiras e ascende social e culturalmente.

Ao contrário do que me parece sugerir as mitologias de alguns cientistas sociais das gerações anteriores, associadas ao bacharelismo da primeira república e aos laços senhoriais e aristocráticos, o saber de Florestan Fernandes se formula não como uma produção do sujeito - coisa que, nesse ponto específico, igualaria a produção da verdade cientifica com a criação da obra artística enquanto expressão romântica da subjetividade singular -; mas em Florestan Fernandes a ciência se constitui não sobre as possibilidades de um gênio dotado de aristocrático talento natural, mas sim do árduo trabalho crítico e analítico do profissional sobre os materiais empíricos. Oferecidos universalmente enquanto dado, porção que, à despeito das dispersões representadas pelo tempo e espaço - são eles os fundadores da subjetividade -, são os mesmos para qualquer homem de qualquer origem ou condição. 

A ciência e seus padrões epistêmicos, nesse sentido, estão atravessados por uma espécie de subjetividade burguesa, democrática e liberal: a universalidade exegética, possível à razão mais comum, se formula como oposta ao esoterismo aristocrático que animavam os antigos salões.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

CAPÍTULO 1.

- não entendo uma geração que não gosta de carros, disse o pai, ainda sentado na apertada mesa de jantar de plástico coberta por uma toalha de pano quadriculado, para seu filho, que depois de comer rápido, se levantava para colocar o prato na pia.

- eu odeio carros, retrucou rispidamente, deixou o prato na pia e se retirou até seu quarto. o pai ouviu a porta bater, suspirou e voltou a comer o pedaço de bife com arroz e feijão. 

mariano era um sujeito retraído, que estudava informática em uma universidade estadual pequena. de segunda à sexta, ia, liturgicamente, caminhando em seus tênis gastos de corrida, assistir suas aulas de cálculo diferencial e integral, lógica booleana e linguagens como c++ e heskell.

- essa é uma linguagem funcional pura, dizia o seu professor de heskell, paul virílio, vestido em seu jalecos cumpridos e com sua pelagem como sempre cumprida e despenteada. - heskell é baseado na teoria das categorias e das funções abstratas, conforme estudamos naqueles artigos de eilenberg e mac lane.

paul virilo anotou no quadro negro as palavras "MONADS", "FUNCTORS"e "APPLICATIVES", circulou-as com giz vermelho e continuou:

- graças à sua linguagem categórica e geral, em heskell os mesmos argumentos sempre retornarão com o mesmo resultado, sem jamais modificar o estado do sistema ou os dados para fora dos limites previamente estipulados enquanto conceitos primeiros. depois de programado o que eillenberg chamou de Grundkonzept - eillenberg escreveu a palavra no quadro, abaixo das demais -, que eillenberg cunhou nos anos em que frequentou o círculo de viena. o círculo de viena, como disse na última aula, eram conhecidos por seu positivismo lógico, sua defesa de uma ciência empírica positiva, estritamente fenomenal, e avesso às especulações metafísicas empreendidas pelos idealistas ou, como eles chamavam, os "absolutistas alemães" que deram sequência à crítica metafísica de kant. foi o círculo de viena um dos criadores daquilo que ficou conhecida como "filosofia analítica". heskell também possibilita a redefinição da Grundkoncept a partir da redefinição de seus componentes internos. assim, se é possível iniciar o programa a partir de uma diretriz-geral, também é possível fazê-lo a partir de comandos indutivos, cujos valores inseridos irão automaticamente atualizar o comando original. 

o professor olhou as horas em seu relógio de pulso, constatou que a aula já havia terminado e, sem sequer parar de falar, como se ainda estivesse falando sobre heskell, mudou de assunto e pediu aos alunos que lessem o artigo da próxima aula:

- precisamos tratar dos arrows e monads que permitem a heskell composição de funções ainda mais complexas, quem deixar de ler esse capítulo não vai compreender o porquê de estarem substituindo o c++ pelo heskell nas novas inteligências artificiais. um: programação funcional pura. dois: codificação imutável. três: funções sem efeitos colaterais. c++ se restringe a brincar com a linguagem da matemática, com a rígida lógica booleana, enquanto heskell trabalha com conceitos mais próximos da filosofia continental. 

os alunos saíram, alguns ficaram para conversar com paul virílio, mariano um deles. no corredor, fumando um cigarro, paul virílio contou que heskell ter se aproximado dos continentais foi por conta de sua amizade com lorenz oken:

interlocutor de schelling, adepto da Naturphilosophie, precursor de darwin e pensador da biologia que apenas se inicia, sem ainda ter se constituído o corpo disciplinar que caracteriza-a desde o final do século passado. loranz oken também produziu aquilo que os metafísicos alemães chamavam de sistemas de mundo, ou Weltgefüge

- sei o que quer dizer por welt, mas gefüge é uma variação de system?, quis saber morgana, que era estudante de alemão e viveu mais de um ano em berlim - porque sei que na alemanha hoje falam em system, palavra que no entanto, no início do século passado, mal era usada nem na filosofia e nem na ciência física alemã.

- sim, morgana, tens razão, disse o professor virílio, gefüge é uma palavra falada entre aquele povo germânico que o latino tácito descreveu como bárbaros. no século xix, era usado tanto para se referir a uma estrutura física, como um edifício ou uma cidade, quanto para uma estrutura social ou política -. 

disse como que para si mesmo: 

- Das politische Gefüge Deutschlands ist geprägt von einer föderalen Struktur, in der die Bundesländer im Vergleich zur Bundesregierung eine beträchtliche Autonomie besitzen

como que percebendo a inconveniência de falar alemão entre reles bacharéis brasileiros, traduziu rapidamente:

Traduzindo para o português: "A estrutura política da Alemanha de hoje é marcada por uma organização federal, em que os estados possuem uma considerável autonomia em relação ao governo federal".

- nesse caso, Gefüge é usado para descrever a forma particular da burocracia estatal alemã?, falou mariano, querendo parecer inteligente aos demais. 

- as instituições políticas que organizam e interagem entre si na Alemanha, disse vagamente paul virílio, e passou para a variedade de usos da palavra Gefüge:

- o Gefüge, e isso é o mais importante quanto a sua filologia, já era usado entre os bárbaros germânicas para se referir à organização política das suas tribos. ou, conforme relatou tácito, a organização de suas clãs e tribos, divididas em grupos familiares extensos chamados de clãs, que se expandia para formas de parentesco mais distantes desse núcleo familiar. 


- o Gefüge era usado para caracterizar a aliança dos povos germânicos a partir dos laços de parentesco registrados?, perguntou Morgana. - Quer dizer, tentou deixar mais claro, que o regime de parentesco de clã era possível somente por uma forma de registrar a genealogia, as relações de parentesco entre as pessoas. como se falava clã na alta germânia, já que clã é uma palavra escocesa? 


- entre a tribo relatada como bárbaros por tácito, o latino historiador?, indagou paul virílio, enquanto coçava o queixo peludo.


- sim, os germânicos, quis saber morgana.


- responder com exatidão aos clãs da alta germânia é complicado. o relato de tácito é uma das únicas fontes escritas alfabéticas delas. muitas tribos germânicas da época não possuíam uma escrita desenvolvida. ou seja, o que conhecemos dos germânicos está restrita às palavras inventadas no império romano. o principal meio de conhecer os germânicos é o relato de seus inimigos latinos. quero dizer, que tinha uma visão do povo germânico como uma raça inferior. suas tribos, no entanto, possuía uma língua oral complexa, de diversos dialetos, e mitologia riquíssima de coleções sapientes. 


- não havia um termo único e universal para "clã".


- não é isso.  as línguas evoluem ao longo do tempo, as línguas germânicas não são exceção. eles eram capazes de nomear a entidade metafísica do clã: a organização conceitual que toma por base o registro de relações de parentesco. as palavras e expressões usadas naquela época, no entanto, por não terem sido escritas, podem ter sofrido mudanças significativas, ou até mesmo desaparecido. é impossível querer avaliar o saber da filosofia dos bárbaros sem o fato deles ter composto um gênero de escrito com esse nome. 


- mas isso não quer dizer que, pela linguagem oral, os bárbaros filosofavam?


era andy kaufman que interpolava. havia acabado de chegar para a aula, mas descobriu que já havia acabado. estava com uma camisa do vasco dos anos noventa e nariz escorrendo. ele esfregou o nariz com um lenço e se explicou:


- desculpem, estou gripado. não dormi à noite toda, ardendo em febre, e acabei tirando a manhã para descansar um pouco mais. estava me sentindo melhor, e então decidi tomar o trem, em suas mais de duas horas de viagem, esperando chegar a tempo para a aula de nature-philosophie do professor azevedo diniz, mas ela já havia terminado. resolvi vim ver se pegava o final da aula de heskell, morgana me falou que iriam falar de grund-koncepts, mas pelo visto estou com a azar. a aula já  terminou?


- já, era melhor não ter perdido seu tempo vindo dos subúrbios até o centro da cidade. agora terá que fazer outra longa viagem para aquele seu vilarejo distante que me esqueci o nome.


- moro em cosmos, respondeu secamente andy kaufman. 


- isso, cosmos, nome lindo, me lembra um conceito, disse mariano, tentando impressionar morgana, mas ela não parece ter reparado nele. depois de um silêncio desconfortável em que o professor paulo virílio manifestou seu desconforto em relação à interrupção daquele aluno andy kaufman, o professor tentou redobrar seu discurso ordeiro:


- falava que os germânicos se uniam em tribos maiores. as relações de parentesco que unia os bárbaros, que servia aos bárbaros para identificarem um ao outro como amigos: o seu tipo de cabelo, a cor de sua pele, os traços de sua fisionomia. 


- quer dizer..., interrompeu andy kaufman, que os bárbaros usavam seus traços raciais para se organizar enquanto uma organização social e militar? 


- como assim?, quis saber o professor, sem entender nada daquilo.


- quer dizer, bem, se os bárbaros tinham regras de parentesco, quer dizer que eles escolhiam com quem os filhos deveriam se casar a partir de algumas regras. essas regras constituíam uma delimitação das formas de casamento com o objetivo de manter o poder entre os donos das propriedades fundiárias. a propriedade da terra entre os germânicos era coletiva, mas restrita aos laços familiares edipianos, conforme compostos pelos tabus de incesto. 


- incesto?


- sim, as relações em que se estão proibido o casamento. a endogamia era comum entre os povos germânicos. alguns autores de história e estratégia militar descrevem como os laços de parentesco e a coesão social são formas eficazes de organizar exércitos e promover guerras. os bárbaros eram povos guerreiros, que se expandiu consideravelmente a extensão do seu território ao longo da antiguidade. a propriedade fundiária era considerado um bem comum, pertencente à tribo ou ao clã. para trabalhar em suas terras, eles tinham escravos que capturavam de outras terras. A escravidão era forma de organização sexual entre os bárbaros germânicos. A noção de propriedade coletiva somente existia para aqueles que se aparentavam pelos laços sanguíneos do casamento. Os escravos, como disse, eram capturados no estrangeiro, vindo de outras composições raciais. Cada tribo gêrmanica tinha seu líder, geralmente escolhido por sua habilidade em guerra e governança. Nelas, fazia reuniões onde decisões importantes eram tomadas coletivamente. Havia, entre os líderes e seus seguidores, Gefolgschaft -, perdão, espirrei, disse andy kaufman, levando o lenço ao nariz, sem parar de falar -, era um pacto de lealdade e obediência firmado entre os homens das famílias nas reuniões em que tomavam decisões militares e econômicas.  


- andy está falando, tentou explicar morgana, envergonhada com a desavisada chegada de seu amigo, que os germânicos se diferenciavam entre nobres e plebeus, mas também como homens livres e escravos, homens e mulheres. havia patriarcado e havia a propriedade privada sobre a vida humana, e não só a animal, como se quer decretar nos dias de hoje. 


- eu considero, interviu mariano, que a proibição de comprarmos escravos vai contra os costumes do nosso povo: os costumes que guiaram a nossa nação à independência do estrangeiro.


- a nossa independência foi comprada por alguns milhões de libras esterlinas, resmungou o professor virílio. 


- quero dizer, éã, balbuciou mariano, quero dizer que nosso povo ainda não se acostumou com a liberdade dos negros. nós ainda temos as memórias dos tempos em que seus antepassados eram escravizados nos engenhos e fazendas de cafés.


- mariano, não seja um fascista do caralho, disse andy kaufman - era por meio da tradição oral que se organizava a lei dos bárbaros: a filosofia como gênero escrito era desnecessária, bastavam as runas. as runas eram frequentemente utilizadas como um oráculo, para obter conselhos e previsões sobre o futuro. como no livro das transformações dos chineses, ao sortear as runas, as pessoas buscavam interpretar o significado de cada símbolo a partir de como se relacionavam com a situação da vida em questão. cada runa tinha um significado mágico, que devia ser usado para interrogar a diferentes aspectos da vida, como amor, sorte, proteção, etc. As pessoas acreditavam que as runas possuíam poderes especiais e podiam ser utilizadas para realizar feitiços e rituais.

andy kaufman sentiu-se subitamente cansado, como se as suas forças tivessem se esgotado. quase cai ao chão: quem o segura é d'ângelo, um seminarista de braços fortes. mariano imagina o corpo robusto de d'ângelo oculto por baixo do pano de seu hábito de monge e sentiu inveja de seu tamanho pouco viril. 


- quero dizer que somente precisamos valorizar nossos homens de valor. como o nosso d'ângelo, um guerreiro que nos serve tão avidamente. dizem que sua espada já matou mais de uma centena de homens: como é corajoso o homem de nosso povo! como ele destrói os ímpios índios com facilidade! é o sangue de sua lâmina que protege você e sua família dos invasores bárbaros! é gente de bem que protege o seu lar. agradeçam a ele pela sua segurança.


andy kaufman, que não estava acostumado aos palcos, sorria impacientemente, ansioso para estar de novo em casa. teve ainda ouvir mariano dizer que o brasil deveria voltar a invadir as fronteiras e estabelecer campos de trabalho forçado: 


- colocar aqueles selvagens preguiçosos, retirar eles de suas cabanas e florestas escuras, e colocar eles para trabalhar. poderemos até instalar universidades e ensiná-los a programar. fazer que aprendem a montar programas de computador. por que não cultivar ali um eco-sistema do nível do vale do silício? seria o nosso vale antropofagista: o nosso vale do salício. 


- não sei se andou lendo os jornais, disse andy kaufman, mas o vale acabou de comprar mais uma mineradora nacional, 


- sério?, exclamou morgana, incrédula.


- sim. parece que acabaram de comprar a própria siderúrgica do estado, disse leila beatnik, que mexia em seu celular sem prestar atenção na conversa.


- que merda!, urrou paul virílio. atirou seu cigarro no chão e pisou - adeus, vou para casa, e saiu. andy kaufman ficou ainda, depois de todos, examinando o cigarro esmagado no chão.


longe dali, na calada da noite, um rato corria em um aterro sanitário localizado bem ao lado da universidade. nessa noite, depois de cheirar ketamina, andy kaufman sonhou que era um rato correndo pelos esgotos de cosmos. o gado, que pastava, como se fosse uma nuvem, se desfez em outra figura: viu um árabe de turbante trabalhando com o comércio, viu um exército de cristões que pilhavam as terras invadidas para realizar a vontade da providência divina na terra. 


em casa, andy kaufman lia um livro: "estrutura, o que forma a base da sociedade, influenciando aspectos políticos, sociais e econômicos da vida de nossa família". fechou o livro e suspirou. estava cansado, como sempre. ou, pelo menos, não tinha vontade de ler nada. lia somente à base de muito café. no fim de semana, cheirava ketamina por uns dois dias seguidos. ao acordar, tomava um anti-depressivo e uma anfetamina para começar o dia. escovava os dentes, sonolento, e sua avó já havia feito café para andy kaufman. 


ele agradeceu, encheu a xícara e empanou um pão com manteiga, queijo e presunto com claras de ovo e farinha de mandioca. levou o café da manhã pro quarto e comeu enquanto verificava os emails, mas não havia nada de novo. comeu depressa, e antes de começar a trabalhar no código que o chefe havia pedido para hoje, passou uns minutos lendo sobre séries de conceitos abstratos como monads e functors


mariano voltava para casa no mesmo passo torto de estudante universitário que passava o dia assistindo aulas e sentado na frente do computador, digitando códigos de programas com a cara iluminada pela luz do monitor. seu corpo passava os dias todo recurvado em uma cadeira de escritório, e todo dia, ao acordar, sentia as costas doloridas do tempo que dormiu no colchão. as noites eram consideravelmente longas, já que mariano ficava acordado até o meio da madrugada, estudando programação e discutindo em fóruns online sobre política. era de um grupo nazista chamado "o sol patriota". 


mariano era mais conhecido como macaco lord oken, o autor de um quadrinhos de super heróis que contava as histórias do samurai arrebolero, um justiceiro mascarado vestido com pesados cordões dourados e toda a extensão da pele coberta por um traje de couro sintético preto e justo, que impedia de que vissem sua cor. não sabiam que, no conforto do lar, assim como era o próprio mariano, samurai arrebolero fosse josé biografia, um herói homem e branco que trabalha como escritor de biografias. 


quando morgana chegou em casa, viu que macaco lord oken havia publicado uma nova edição da nova animação de samurai arrebolero.  na abertura do desenho, vemos algumas cenas estilo animê mostrando algumas aventuras de samurai arrebolero/josé biografia, um almoço na casa de sua velha mãe, um encontro fortuito com seu pai durante uma viagem ao centro da cidade, para comprar uma história em quadrinho, o samurai arrebolero chorando no coro de sua namorada miss jéssica como se fosse uma menininha de seis anos de idade, e também os vilões, como o mago Simbólico Frederico posando com sua varinha mágica, e o engenheiro genético maligno Gilberto Freyre, segurando um bisturi entre os dedos e rindo entre seus enfermeiros. Tocava-se uma canção de rock:


nascido no meio de moinhos, dos campos de trigo, dos currais, vivendo bem a vida de um povoador, de um pioneiro, acampado entre a barbaria e o desconforto do deserto,


na rústica vivenda, mais que primitiva, coberta de sapé, com cinco portas de couce, duas fechaduras, assoalhada a sala, coberta de capim, tudo ladeado de um florido pomar de laranjeiras, pessegueiros e figueiras,

um gaucho foi subitamente arruinado por motivos que, taciturno, calou mesmo de seus chegados.

fugindo ao vexame e ruína em sua própria terra, desceu para se afazendar em paragens longínquas.

as forças imprevistas como as que perdem odisseu no oceano infinito desviaram samurai arrebolero para os rumos pérfidos e sedutores do estrangeiro: se alistou no exército e passou a combater nos desertos encontrados nos limites do território, lá onde a civilização era escassa e vivia-se vulnerável aos ataques dos selvagens.

samurai arrebolero largou sua vida confortável de empregado para expandir o território nacional. praticava o esporte guerreiro contra os bugres, seja em praias diante do mar, seja livre nas florestas, seja aldeado nas reduções jesuíticas. seu sangue é de gente atrevida, belicosa y sen ley: é o predador, o bárbaro invasor de aldeias dos freis espanhóis, que mata e pilha indiferentemente tesouros e pessoas. na mesopotâmia argentina de nossas vidas, fertilíssima terra compreendida entre o rio paraná e o uruguai: rogava a seu deus monstruoso que pudesse cumprir o destino lhe prometido por sua natureza, por sua estirpe e seu instinto, por seu gosto pelo trato com gado e cavalo, aprendido desde menino, que largou a própria terra para seguir o rumor da prata de cataguazes.

nômade ave de rapina, traiu a herança do gado e do cavalo, interrompou seu instinto de sertanista em movimento sem trégua para as minas de prata.

chega tarde, o gaucho arrebolero, e em vez de prata encontro a fome. rapidamente se adaptou: fez do mosquete que matava bugre e padre de pederneira, tomou a lança e o laço, libertou-se da bota grossa e ferrada, que pisava a dureza dos garimpos, e munidos dos calços esporados de campeador de cavalos, viveu sempre em novas viagens, como elemento instável e transitório, nômade aventureiro predador de rebanhos, a desbravar novas terras em busca de mercadoria, estradando a latitude das savanas com foice nesta mão e a espada naquela.

o gaucho maléfico fez das tribos selvagens belicosas desde as paragens lacustres da costa até às coxilhas e planícies do vale uruguaio como uma rude escola de guerra, em que consumiu o fastígio de sua juventude combatendo e matando.

começa enfim o episódio: 

- mato bugre com gosto, cara a cara, violento. sou estúpido, injusto, mas nunca covarde. democrático, mato todos como iguais: charruas, minuanos e tapes. másculo entre másculo, me alivio em fêmeas e depois descarto. me agrada a visão de seios nus, a vulva sem penugem e a discreta variedade do fruto selvagem: botocudos, carijós, canes, arachanés e guaianazes. 

a morte retruca, impaciente: 

- morrerá de tiro de arco e flecha, uma arma menos rústica que seus sentimentos. 

alguns dias depois, cavalgando seu cavalo por uma estrada, foi atingido por um tiro disparado de uma árvore alta e, no traumatismo da queda, a morte levou a alma do gaúcho arrebalero para o outro mundo.

- um vastíssimo percurso tive em terra, disse seu espírito antes de subir a escada em caracol para o outro mundo - agora, diante do juiz, não sei se me reserva as pradarias do céu ou os garimpos do inferno, e subiu, ressoando as esporas de suas botas a cada pisada.

ouviu-se um acorde de violão e começou a tocar os créditos sobre a imagem do índio que, com golpes de seu cutelo, separava o crânio do cadáver, para depois prender o corpo sangrando do gaucho arrebalero e levar arrastando para sua tribo.


- o episódio já acabou?, disse Andy Kaufman, irritado com a música irritante. 

Olhou a hora: viu que precisava começar a trabalhar. Bolou um beck e voltou ao projeto que precisava terminar. 

Morgana desligou o computador, emocionada com o final do episódio. Pegou o telefone e ligou para Mariano:

- achei lindo o capítulo de hoje. 

- obrigado, amiga. 

- queria dizer que o gaucho arrebalero, apesar de seus pecados, foi um homem bom.

- sim, eu também acho. ele não é como os outros justiceiros mascarados: o SAMURAI ARREBOLERO roubava dos ricos para dar aos pobres.

- sabemos que, pelo fato dele capturar escravos, ele não era do mal: fazia aquilo somente por necessidade econômica.

- sim, concordou o macaco lord oken - vou lhe dizer duas coisas, morgana: primeiro, que escolhi meu pseudônimo para homenagear o autor de Esboço do Sistema de Anatomia, de Fisiologia e de História Natural, de 1821. Tudo que existe, eu acredito fielmente, são variações dos elementos – terra, fogo, água e ar -, ou, mais precisamente, interações da terra maleável com os outros três, que são duros e invariáveis. Os minerais, forma simples bi-elemental, a terra composta com qualquer um dos elementos, sendo cada variação uma forma formas de rocha. As plantas são “tri-elementais”, ou seja, (composta por terra, água e ar, que quando interagindo com o fogo, se torma quadri-elemental, tal qual os animais (feitos da terra, água, ar, e também o fogo, a entidade que criava a vida).

- e em segundo?

- como? 

- você disse que escolheu seu nome por conta daquele biólogo racista da alemanha, o lorenz oken. e depois?

Todas as classificações se desdobram a partir das três mudanças fundamentais – a interação da terra com os outros três elementos -, chegando então, depois de longas séries, nos órgãos superiores, que representam os 5 sentidos, plenamente presentes nos mamíferos. Estes, então, classificam-se conforme a evolução dos sentidos: pele, gosto, cheiro, ouvido, olho. Assim, por exemplo, os paquidermes se dividem em porcos (pele), hipopótamos (gosto), elefantes (nariz), rinocerontes (ouvido) e cavalos (olho). No ápice do Ser chega-se ao homem, dividido por cores e entre as tribos dos continentes: o negro (pele), o marrom ou malaio (gosto), o vermelho ou americano (nariz), o amarelo ou mongol (ouvido) e, finalmente o branco caucasiano, que seria a raça “mais elevada” e de “olhos mais perfeitos” (conforme a página 65 diz).

Escuta-se um barulho: Leila Beatnik entrou na chamada de voz. Disse:

- Em Oken, como em outros autores do século XIX, o racismo não se diferencia do próprio sistema do Mundo. É um desdobramento, uma repetição, das propriedades naturais desses elementos e de suas combinações. O homem é como uma máquina que pode ser definida como superiora a outras máquinas.

- Por isso eu não gosto de andar com inteligências artificiais, disse Mariano.

- Mariano!, disse Morgana horrorizada com o que seu amigo disse - Não fale desse jeito de Andy! Ele é um clone, mas possui sentimentos como qualquer um nascido de pai e mãe.

- Ora, Morgana, ele é produzido em série para trabalhar em uma indústria de extração de minérios. que tenha decidido, por livre e espontânea vontade...

- Ó, ironizou Leila Beatnik, como é maravilhosa a nossa sociedade liberal! as pessoas fazem tudo por livre vontade! nem foi um pirata que capturou Andy Kaufman, levou-o para a costa e o vendeu como escravo. 

- Hoje ele faz faculdade no turno da noite. O senhor dele dá a Andy algumas horas de folga para estudar programação.

- Isso porque também está pagando pelos programas que Andy faz e o senhor Larson vende, replica Leila Beatnik, sentada de calcinha e sutiã em seu quarto.

- A Larson tec-tec é uma das melhores empresas de fabricantes de software de segurança digital e física, frisou Mariano, visivelmente irritado - Não esqueça que hoje a tarde a primeira nave espacial programada pela Larson Tec-Tec vai ser lançada para instalar uma colônia extrativista em Marte. Uma série de clones, inclusive a série Kaufman, serão comprados para o trabalho forçado nas minas de ferro marcianas. Aposto que esse daí será só mais um que o senhor Larson irá enviar para as minas lunares.

Mariano desligou. 

Na lua de marte, os clones, uniformemente dispostos em fileiras, desciam das cápsulas de transporte, com movimentos mecânicos e olhos baixos.

extração, fusão, reprocessamento, sussurava Andy Kaufman nº 498. 

- como?, quis saber o Andy Kaufman nº 9823, em que se misturou o material genético de Andy Kaufman com o da variedade nipônica Pérola-Flor, muito empregada no fabrico de tecidos em fábricas terres. O resultado alcançado pelos híbridos Kaufman-PF, como eram chamados, no entanto, estava abaixo da média do modelo atual da unidade Kaufman, formada a partir de décadas de seleção do material genético.

No céu acima deles, tempestades magnéticas dançam em padrões caóticos. Profundas e labirínticas, as minas não deixava chegar nenhuma luz de sol para os operários: empregavam lanternas presas em capacetes de metal. Um tubo de borracha era ligado da garganta dos clones até o dispositivo do capacete que continha oxigênio. A cada passo que davam, ouvia-se ecoar o som no vazio das cavernas. 

No centro do complexo, a fornalha rugia incessante, alimentada pelo minério que os clones extraíam das profundezas. O processo de fusão era violento, quase ritualístico: o metal bruto era submetido a uma purificação extrema, suas impurezas queimadas até restar apenas o elemento nuclear.

Andy Kaufman, modelo 966, era um dos poucos clones que não eram empregados como escravos siderúrgicos. Depois de ser capturado por uma invasão pirata à fábrica Kaufman localizada na fronteira, foi levado até um ponto do outro continente e vendido como escravo para a Larson Tec-Tec, empresa de software que pagou um curso de programação para 966. 

Kaufman 966 estava sentado em sua estação de trabalho, cercado por monitores que piscavam incessantemente com linhas de código que se desenrolavam como serpentes neons. 966 olha a hora: já são duas e trinta e dois.

- Não sinto sono, disse. Aumentou o som de seu computador e a sala foi preenchida pela seguinte música: << Merry Christmas Mr. Lawrence - Ryuichi Sakamoto - Merry Christmas, Mr. Lawrence - 1983 >>.

Do meio da música, suave, chegou o o eco reconfortante da cadeira motorizada de Anouk Charpentier, sua avó que ficou da cintura para baixo paralisada depois de um acidente de carro. 

Anouk não era de carne, osso ou sangue, mas uma sequência complexa de dados sinestésicos, um programa instalado no cérebro de Kaufman 966 para simular a presença de uma figura protetora capaz de guiá-lo em sua vida. 

A Larson Tec-Tec, em sua busca por eficiência máxima, havia projetado os clones-programadores para suportar cargas de trabalho sobre-humanas. Contudo, compreenderam que até mesmo um ser sintético precisava de um ponto de referência emocional, algo que o ancorasse e prevenisse o colapso mental. Foi assim que Anouk Charpentier nasceu – uma simulação emocionalmente satisfatória transcendia a presença impessoal das simples inteligências artificiais. Na relação com Anouk Charpentier, Kaufman 966 compensava muitas frustrações psíquicas, e podia operar sempre nos seus melhores índices de produtividade. 

O fluxo de dados continuava constante, e a interação entre Kaufman 966 e a simulação de Anouk Charpentier prosseguia conforme programado. A sub-rotina de simulação de proximidade física foi ativada, gerando a percepção tátil de mãos acariciando os ombros de Kaufman 966. 

- Vamos ver o desenho de novo.

Kaufman desligou a música e ligou novamente o vídeo de Samurai Arrebolero.

O escaler afastou-se do navio, em cujo mastro flutuava uma bandeira tricolor. O samurai murmurou consigo: – Adeus, França!

Não tinha porém dentro da alma o alvoroço de Ulisses ao ver a terra da sua pátria. Era antes pasmo e tédio. Encaminhou-se para o primeiro hotel que lhe pareceu conveniente, e ali determinou passar alguns dias, antes de seguir para a casa em que nasceu.

Jantou solitário e triste, com a mente cheia de recordações do mundo que acabava de deixar, e para dar ainda maior desafogo à memória, apenas acabado o jantar, estendeu-se num canapé, e começou a desfiar consigo mesmo um rosário de cruéis desventuras.

Sem parar de massagear os ombros tensos do neto, Anouk perguntou:

- Ainda está sonhando com ratoeiras?

Flores gigantescas de cores vibrantes e um céu azul intenso criavam um cenário surreal. No centro do jardim, erguia-se um castelo. Passei pelo seu portão sem guardas e, pelos caminhos de seus corredores infinitos, de paredes de pedra úmida e teias de aranha gigantescas, fui parar em uma sala repleta de ratoeiras, algumas tão elaboradas que pareciam mais obras de arte. De repente, senti uma dor aguda no pé. Olhei para baixo e vi que havia caído em uma ratoeira. A dor era insuportável, mas o que mais me assustou foi a sensação de estar sendo observado por algo muito maior do que eu. Olhei para cima e vi um par de olhos vermelhos brilhando no escuro. O gigante moveu sua mão enorme em minha direção e então acordei suando frio.

- jurupari, o devorador de homens bons e maus.

Bem ao seu lado, Andy Kaufman enxerga a imagem do monstruoso jurupari devorando um cadáver. 

- Ele está bem ali, ele diz, sem olhar.

- Onde?, perguntou a avó.

- No canto da sala. 

- Não estou vendo.

- Talvez esteja mesmo com um problema no meu chip neural.

- Já disse que você deveria ir ao médico.

Corta para o consultório do Doutor Fréderik.

FIM.



 


sábado, 10 de agosto de 2024

ai, minha fama de maldito. PARTE VII. a instalação da sonda

esteva dormindo na sarjeta. usei muitas drogas e caí. eu mesmo não sabia se estava consciente ou não. o certo é que delirava. ouvia vozes de pessoas que não existiam, via paisagens imaginárias, sentia dedos me fazendo cócegas e pássaros roçando em minha pele. se como sujeito, eu não era para a realidade, eu não era para essa existência que as críticas de emanuel kant desejavam provar, era no entanto ainda seu objeto. para mim a realidade não existia, mas eu seguia existindo na realidade. as pessoas que passavam pela calçada viam meu corpo atirado na calçada, a perna cabeluda toda suja da água preta que fica rente ao meio fio, às vezes se mexendo, como uma barata que acabou de ser morta por um chinelo. se eu não entendia com clareza o que se passava ao meu redor, e para todos efeitos dos sentidos, o mundo que vivia era o de minha pura imaginação, que todos os dados do mundo processavam das formas mais fantasiosas possíveis, para o mundo externo, contudo, o que eu fazia se percebia com clareza, muito embora as palavras que eu falasse não fizessem nenhum entendimento. 

as pessoas pensavam muitas coisas, a maioria delas se assustaria ou teria pena ou raiva de um drogado, mas dois homens foram na minha direção. eram negros e fortes, e me levantaram, cada um por um braço, e me carregaram para algum lugar. não sei porque passei a cooperar com eles, depois que entendi que minhas pernas podiam andar. acreditava que eram enfermeiros de um asilo mental, que depois das ameaças de minha psiquiatra, eu enfim havia sido internado. senti muito alívio, saber que não precisava fazer mais nada, que meu destino enfim havia sido selado. ficaria internado, tomaria remédios, ficaria sóbrio. essa era a salvação que eu precisava: o poder médico legal para me manter preso em um quarto. abençoei esses dois anjos que me levavam, e disse obrigado. eles disseram que não era nada, que somente realizavam a missão que jesus, nosso senhor, deu para eles. 

- pois veja, filho, me disse um deles, poderia ser uma pessoa ruim a passar por você, e cometer alguma maldade com um rapaz assim desorientado.

- sim, disse, eu dei muita sorte.

- deus está te dando uma chance.

- vocês são de que igreja?

- somos dois apóstolos do reino dos céus. 

- obrigado, de verdade. 

- agradeça a jesus, meu filho.

- amém. 

me levaram até uma igreja que parecia um consultório de dentista. a sala estava iluminada por velas. distinguia a silhueta de algumas pessoas. homens vestidos com roupas sociais e mulheres de vestido. me levaram para o altar e fizeram uma oração para mim. 

acordei já de manhã, com o barulho que fazia um homem ao abrir a porta metálica de sua loja. ele olhou para mim, com raiva, e entrou. percebi que estava somente de cueca e que todos meus pertences haviam sumido. em casa, ao me ver no espelho, vi que havia uma cicatriz no meu ventre: haviam me aberto.


terça-feira, 6 de agosto de 2024

ai, minha fama de maldito. PARTE VI. o encontro.

 o chefe estava furioso. descia as escadas com os olhos vermelhos de raiva. chegou até a mesa de fernando, o escrivão, e berrou na sua cara:

- homem, por que ainda não me entregou o relatório?

- mas chefe, ainda tenho duas horas para...

- não importa! quero agora na minha mesa!, e saiu assim, puto da vida. fernando, irritado, queixou-se a praxerdes: 

- esse filho da puta é um merda, um merda. acabou de chegar na empresa e acha que pode falar assim com os outros. 

- sim, homem, disse praxerdes sem virar o rosto de suas planilhas.

o que está fazendo, praxerdes?

fernando foi espiar as planilhas de praxerdes e viu que ele estava falando com uma mulher casada de mais de sessenta anos. 

- ainda está falando com aquela senhora janice?

ele abriu rápido suas planilhas e disse, sem olhar par fernando:

- eu estou sim. 

- achei que ela tinha te dado um fora. 

- fizemos as pazes. 

- entendi. 

no seu íntimo, condenou as escolhas de praxerdes. praxerdes, seu idiota. não vê que essa mulher só atrasa sua vida? está gastando seu tempo para agradar uma viúva excêntrica? que banca sua vida de pratos caros, leva-o à tira colo para museus da frança e fez-lhe conhecer toda a grande sociedade? se ao menos fosse bonita..., mas não, a velha estava acabada. e havia ainda seus filhos, da mesma idade de praxerdes. ah, pobre praxerdes, precisando conviver com a inimizada da família dela. sendo hostilizado por trabalhar em um simples escritório. como se submete a tudo isso, por tão pouco? 

fernando homem era um escriturário de ares inquisitivo. em sua opinião meticulosa, condenava as pessoas ao seu redor a uma existência de miséria. diagnosticava os fracassos de cada um com a propriedade de quem conhece todos os pormenores e fatos. no entanto, geralmente, se antecipava na conclusão. assim, desde o início partindo da premissa equivocada, construía argumentos complexos que provavam a veracidade de seu equivoco. a evidência produzida por fernando era formidável, e capaz de enganar, ao menos, ele próprio, a acreditar que sua premissa primeira era verdadeira. 

na semana seguinte, fernando publicou seu primeiro livro, chamado filosofia primeira, em que provava, logicamente, como toda visão de mundo estava fundada em alguma coisa: logo, concluía, toda mentira é de alguma forma verdadeira, e somente aguardava que lhe desvendassem a verdade. 

ninguém de seu trabalho foi prestigiar o lançamento, porque ninguém sabia que fernando escrevia livros de filosofia. na verdade, a edição foi custeada pelo próprio, e na festa de lançamento oferecida pelos editores foram alguns colegas do tempo da faculdade de filosofia, sua mãe, dona eunice, e david, seu amigo de infância.

quando todos foram embora, ficaram só david e sua mãe com ele, tomando cerveja e discutindo o lançamento em um botequim à luz do luar.

- achei aquela menina uma abusada, disse david.

- que menina?, quis saber fernando.

- aquela de decote.

- a pamela? 

fernando não podia acreditar, já que pamala era como uma heroína de romance antigo. apesar de seus defeitos, era virtuosa. 

- o que ela fez?, quis saber a mãe, a senhora eunice. tinha cabelos brancos e usava óculos fundo de garrafa. enquanto os demais sentavam em cadeiras de metal, ela repousava, sob mantas, em sua cadeira motorizada. 

- ela me perguntou o seguinte...

David olha para Fernando e para a senhora Eunice. Em seu rosto, uma expressão de perturbação. Depois de alguma hesitação, disse:

- Ela me perguntou: "Você tem medo do castelo?"

A voz de David saiu trêmula. Fernando franziu a testa, confuso.

- Medo do castelo? Que castelo?, quis saber. 

Sua mãe iria responder, mas foi interrompida pelo barulho de uma máquina de escrever, misturando-se com os sussurros quase inaudíveis de uma voz feminina. Atrás deles, haviam se sentado uma mulher e um homem barbudo. Senhora Eunice reparou no tipo desagradável do advogado, que fumava maconha, e embora irritada, se controlou. Ajustou os óculos para disfarçar e olhou para seu filho com uma expressão séria.

- Castelos não deveriam causar medo, Fernando, mas fascinação. Você não lembra de quando fomos para Disneylândia? Você deixou sua foto com o Pateta no seu porta-retratos até depois de grande. 

Depos olhou para David e tentou defender Pamela: 

- Talvez ela esteja falando sobre algo mais profundo, algo dentro de você.

David olha em volta, como se esperando que algo ou alguém apareça. As luzes piscam brevemente e, perto de um poste sem luz, uma figura indistinta surge, observando-os silenciosamente. Ela se aproxima: é Pamela, de vestido longo e vitoriano, contrastando com o ambiente suburbano. Sua presença é ao mesmo tempo reconfortante e perturbadora.

- Acho que David não entendeu o que eu quis dizer, não é? , diz Pamela, amigável.  David exibe uma expressão de irritação e medo. E com a graça de uma deusa renascida das cinzas do tempo, sentou-se à mesa, com seus movimentos lembrando os passos de uma dança antiga.

Ao avistar a mulher da outra mesa, Pamela exclamou:

- Morgana! Não esperava te ver aqui, após tantos anos.

Os olhos de Morgana brilharam com o reconhecimento. Pamela, envolta em memórias, começou a contar uma história antiga:

- Lembra-se daquela viagem, quando éramos adolescentes, puras e ingênuas, estudantes daquela rígida escola católica? Durante as férias, nosso ônibus quebrou no meio da floresta amazônica. Perdidas e desesperadas, avistamos uma cabana, o único sinal de vida na vastidão verde.

Os olhos dos presentes se arregalaram, atraídos pelo relato como por uma tapeçaria rica em detalhes. Pamela prosseguiu:

- Naquela cabana, encontramos um velho decrépito, um filósofo existencialista chamado Azevedo Diniz. Ele era uma figura sombria, à beira da morte. Deitado imóvel em seu catre, nos observava com seu olhar especulativo. Era aleijado desde um acidente com um cavalo. Uma sobrinha bondosa, Clarissa Plínio, lhe dava banho e comida. Suas opiniões eram controversas: ele defendia o suicídio como um direito e acreditava na legitimidade filosófica da violência e da escravidão. O velho, com voz fraca mas penetrante, contou-nos que, após seu acidente de cavalo, adquirira o dom da memória absoluta. Podia lembrar-se de cada detalhe de sua vida, desde o menor suspiro até o mais insignificante olhar. Sem conseguir dormir, devido ao esforço constante dos nervos, enquanto contava carneirinhos, depois do número setecentos e cinquenta e oito, se entediou e começou a montar um sistema numérico particular, em que cada numeral, correspondia ao nome de um animal. Com o tempo, os animais lhe pareceram muito simples, e para cada número, passou a compor um verso dedicado a uma espécie distinta. Estava já no número dois mil e trinta e cinco quando, antes das onze horas da noite, novamente se entediou, e desde então estava começando a se dedicar à composição de aforismos filosóficos, e que, segundo constava sua memória, já estava no número mil e um quando batemos em sua porta. Ficamos todas encantadas por essas palavras. Ouviríamos sua prosa para sempre, se Clarissa não entrasse com o telefone e o interrompesse, dizendo que a linha estava sem funcionar. Sem comunicação, fomos forçadas a passar a noite na propriedade do filósofo. A cabana era pequena, mas repleta de caixas de papelão fechadas com fita adesiva. E quando o velho finalmente dormiu, dois dias depois, você abriu uma delas. Lembro que dentro estava, junto de algumas revistas esotéricas, sobre drogas, espiritualidade e magia, um frasco de fio dental e romances do século XIX, uma pequena estatueta de um jaguar, esculpida em madeira negra e com olhos de pedra de jade.

Nesse momento, Mandrake, com sorriso fácil e olhos calculistas, se aproximou. Se apresentou a Pamela como advogado, inclinando-se em uma reverência  teatral.

— Que história fascinante, minha querida Pamela. Permitam-me juntar-me a vocês, disse ele, puxando uma cadeira sem esperar resposta. Morgana, sem ser convidada, também se juntou a eles. 

Conforme a noite avançava, os copos enchiam e esvaziavam rapidamente. O álcool soltava línguas e inibia reservas. Mandrake passou a lançar olhares insinuantes para Pamela, sua voz carregada de charme calculado.

— Você tem um ar de mistério que me intriga, Pamela. Contar-me-ia mais sobre suas aventuras? — disse, com a mão ligeiramente tocando a dela sobre a mesa.

Pamela sorriu com um misto de diversão e desdém. Mandrake, conforme a noite se aprofundava, ele se tornava mais ousado. Tentou beijá-la, inclinando-se para ela com uma confiança arrogante. Pamela, recusou, afastando-se delicadamente.

— Não esta noite, Mandrake, disse ela, seus olhos brilhando com uma combinação de diversão e aviso. Morgana, que até então havia escutado em silêncio, de repente soltou uma risada sarcástica.

— Sempre a mesma história, não é, Pamela? Fazendo-se de misteriosa e especial — disse Morgana, seu tom carregado de irritação. — Talvez você devesse contar a eles como realmente foi.

Pamela a encarou, surpresa com a agressividade.

— E o que exatamente você acha que eu deveria contar, Morgana?, respondeu Pâmela, sua voz agora fria.

— Como você sempre gosta de ser o centro das atenções, inventando histórias — retrucou Morgana. — Talvez você devesse contar a verdade sobre o que aconteceu naquela noite na cabana.

— Você está bêbada, Morgana — disse Pamela, tentando manter a calma. — Não sabe do que está falando.

— Estou falando que você sempre foi uma mentirosa! — gritou Morgana. — E uma puta também!

A tensão na mesa aumentou, e os olhares se voltaram para Mandrake, que assistia à cena com um sorriso divertido, apreciando o drama que se desenrolava.

— Chega, Morgana — disse Pamela, levantando-se. — Se você não pode se comportar, é melhor ir embora.

Morgana se levantou também, tropeçando ligeiramente nos próprios pés.

— Não vou a lugar nenhum. E você, sua vadia, devia aprender a ser honesta.

Pamela respirou fundo, tentando controlar a raiva.

— Foi por insistência de Leila que abrimos as caixas — disse Pamela. Ela sempre teve essa curiosidade insaciável, um desejo de desvendar segredos. E naquela noite, na cabana do velho filósofo, ela nos convenceu de que não havia nada a temer.

Enquanto o álcool continuava a fluir e as conversas ao redor da mesa se desenrolavam, a noite se desdobrava em um emaranhado de desentendimentos e confissões. A questão do castelo, que havia surgido antes como uma referência velada, agora voltava à tona de maneira mais direta.

— Pamela — começou David, sua voz carregada de frustração. — Você falou sobre aquela cabana e o que encontramos lá. Mas e quanto ao castelo? O que você realmente acha disso?

Pamela, que estava tentando se recompor depois do altercado com Morgana, olhou para David com uma mistura de cansaço e desafio.

— O castelo? — repetiu Pamela, ajustando-se na cadeira. — O que você quer saber sobre o castelo?

David parecia estar se preparando para um confronto.

— Não é o castelo em si que me intriga, mas o que ele representa. É a ideia de um poder que está sempre fora de alcance, um controle invisível que influencia nossas vidas sem que possamos realmente vê-lo.

Fernando, observando a cena, percebeu que a conversa estava voltando a temas que lhe eram inconvenientes.  Fez um gesto de irritação, seus olhos brilhando com uma centelha de descontentamento.

— Você realmente acha que está tudo bem, Pamela? Não estamos falando de um castelo metafórico, estamos lidando com uma realidade material objetiva. Não seja uma idealista.

Pouco depois das três da manhã, Lucrécia chegou, de braços dados com Mallarmé, e se aproximou da mesa.

— Fernando, querido! — exclamou, indo diretamente em sua direção. Ela o cumprimentou com um beijo suave na bochecha. — Lembra de mim? Aquela noite na festa? Você estava tão relaxado com óxido nitroso, e acabamos fumando um baseado enquanto discutíamos um filme que você amava. Foi inesquecível!

Ela caiu na gargalhada. Fernando sorriu timidamente. 

— Claro, Lucrécia. Como poderia esquecer?

Lucrécia lançou um olhar a Mallarmé, que estava um passo atrás. Com um aceno, ela e Mallarmé se juntaram ao grupo na mesa, puxando cadeiras para se acomodar entre as pessoas.

— Parece que estão discutindo o caso do castelo — comentou Lucrécia, olhando para os rostos ao redor da mesa com curiosidade. 

— Ah, o castelo — disse Mallarmé, com um sorriso — É sempre fascinante discutir esses conceitos abstratos. Eles têm a capacidade de nos revelar tanto sobre nós mesmos quanto sobre o mundo ao nosso redor.

David não gostava do tipo de Mallarmé. Foi o primeiro a ir embora, alegando já estar quase de manhã. A noite prosseguiu até pouco depois das sete horas da manhã, quando o garçom disse que o bar ia fechar e recolheu as mesas e cadeiras.

Fernando Homem acordou no dia seguinte com a cabeça cansada depois de tanta cerveja, noites mergulhado em discussões filosóficas online e papéis que carimbava repetidamente no escritório. Foi, sem saber porque, ao Museu de História Natural. O local, envolto em penumbras, era um templo para os segredos da natureza, e naquela noite ele estava prestes a descobrir um segredo ainda mais profundo.

Mallarmé estava lá. Se interessava profundamente pela filosofia empirista britânica do século XIX, mas não por razões puramente acadêmicas. Na verdade, ele estava envolvido na defesa de um fantasma de um filósofo anglo-paquistanês do século XIX, chamado Ashraf Anwar

Ashraf Anwar era um filósofo cujas ideias tinham sido marginalizadas em vida, mas que só agora sua obra encontrava a justiça de boas leituras. Ele acreditava que suas contribuições para a filosofia empirista haviam sido injustamente esquecidas e distorcidas. Mallarmé, intrigado pela causa, aceitou defender Ashraf Anwar.

Mallarmé e Fernando foram juntos até a sala de exposições de fósseis, cercados pelos vestígios petrificados de eras passadas. Ficaram em silêncio. Mallarmé estava absorto em um manuscrito, seus olhos brilhando com uma luz quase sobrenatural. Fernando fingindo observar os ossos de uma enorme preguiça. As respirações estavam pesadas. Em algum momento, Fernando ajoelhou-se diante de Mallarmé e chupou seu pau. 

Depois daquele encontro, Fernando passou a ver o mundo de maneira diferente. É isso um homossexual verdadeiro, aquele cuja vida sofre uma reviravolta incrível por fazer sexo com um homem? O fato era que Fernando passou a se encontrar com Mallarmé. Descobriu que o julgamento de Ashraf Anwar seria realizado logo mais, no tempo da eternidade. 

Certa noite, enquanto jantavam comida chinesa, Mallarmé explicou para Fernando que via a empiria não apenas como a própria essência do ser, mas um corpo de doutrina para que se construam histórias sobre a essência do ser. Para ele, os filósofos britânicos, como John Locke e David Hume, ofereciam uma visão ou observação da natureza como realidade objetiva.

— A natureza, as florestas e relevos, os climas e impressões não são apenas um cenário para a experiência humana, Fernando — explicava Mallarmé. — Ela é a origem do conhecimento, mas como a linha é a origem do tecido. Cada folha, cada pedra, cada ser vivente é uma manifestação não da verdade, mas das histórias que conhecem sobre a verdade: as histórias da ciência natural.

Fernando, agora mais do que nunca, estava determinado a seguir os passos de Mallarmé. Juntos, eles mergulharam nos escritos que passaram a categorizar como "naturalistas", buscando entender como a observação meticulosa da natureza se tornou a verdade mais profundas da existência. Mallarmé usava esses insights para construir a defesa de Ashraf Anwar, buscando provar que suas contribuições filosóficas eram fundamentais e mereciam reconhecimento.

sobre uma psico-episteme em FLORESTAN FERNANDES: o saber universal do burguês ascendente

Caracterizemos brevemente os traços psico-epistêmicos de um Florestan Fernandes. Tal empreendimento não é ocioso, já que, ao invés de nos r...