Começo a escrever essas memórias a partir de uma lembrança desprovida de qualquer sentido, vinda do recôndito inconsciente para o claro pensar, sem que eu pudesse dar com as razões precisas para seu aparecimento. Sei que todo pensamento possui uma causa, mas a verdade é que já me alongo demais - em breve preciso sair para tomar ao bonde; passo então ao relato, com a esperança de que ele possa esclarecer sobre as origens dessa erupção mnemônica improvável.
Como a lava que a terra, em momentos mais importunos, desatina a cuspir de seu recôndito, me veio aquela maneira pausada e cheia de gírias com que Isaías Brasileiro me contava de suas memórias de guerra.
Antes de passar ao seu discurso de imediato, prefiro fazer breve perfil desse sujeito. Sei que assim não se pode remediar a ausência daquela presença física, do encanto e magnetismo das histórias que saem da boca de seres orgânicos. O papel do livro é muito mais tedioso que o corpo a fazer marabales e gritar palavras belíssimas, mas como meu corpo foi terrivelmente reprimido pelos métodos terapêuticos dos doutores jesuítas, minha língua se paralisou e meu corpo se endureceu em posições predeterminadas pelos exercícios de Ignácio de Loyola.
Todos os rapazes, desde o tempo do colégio, gostavam de ler sobre a guerra. Na verdade, desde os tempos de minha infância, eles já brincavam de polícia e ladrão e, na falta de companhia, pegavam seus bonequinhos de soldados para reencenar as carnificinas da história. Claro que na cabeça da criança tudo é muito inocente, e nada sabem da realidade que um sargento legítimo, como era o caso de Isaías Brasileiro, era testemunha ocular. Ao ouvir Isaías falar-me sobre a realidade da guerra, ele parecia esperar que eu me apavorasse, mas me encantou a descrição da carnificina. Percebendo que estava me divertindo, Isaías foi se soltando, e passou ao relato da vez em que enfiaram uma granada no cu de um prisioneiro. Isaías apostou que dividia o paraguaio em dois; seu companheiro, Erick Von Struck, disse que o fêmur era mais resistente do que aço industrial, e que apesar da avaria causada em todos os órgãos, o corpo do paraguaio preservaria a sua organização contínua. Eles então tiraram o pino, correram para longe e dispararam um tiro na cabeça do prisioneiro. O impacto foi suave, quase não saiu sangue. O paraguaio então caiu, com leveza, ao chão, como se fosse uma pluma, mas com impacto suficiente para acionar o mecanismo da granada e fazer seu corpo ir pelos ares. Depois do estampido, Isaías e Erick se aproximaram, apertando suas carteiras contra os dedos, ansiosos para ver o resultado daquele joguete. Quando Erick alcançou o cadáver, gritou e dançou, cheio de alegria, ao ver que, apesar da barriga do paraguaio ter desaparecido por completo, restando apenas um monte volumoso de tripa e sangue, e que muitos ossos dos braços e pernas tivessem rebentado, a estrutura do corpo continuava de pé, com o crânio inclusive pendendo em um osso do pescoço.
Claro que Isaías ficou contrariado, e buscou argumentar que os ossos partidos caracterizavam a segmentação de sua estrutura em dois, mas depois que o médico do regimento, o Dr. Fréderik, foi consultado, foi concluído que a separação da estrutura deveria ser aferida a partir da coluna que interligava o fêmur e os membros superiores. "Estando o fêmur, a coluna e o crânio reunidos em um mesmo sistema, mesmo as formas defeituosas de vida podem subexistir", e levou os dois sargentos para um tour em seu laboratório, em que fazia experiências eugênicas com corpos humanos. Passou a mostrar um espécime de sua coleção, "Calibã, o feioso". Não tinha nem pernas nem braços, e se arrastava como uma cobra. Ao ver o doutor, se atirou de sua cama e, com uma velocidade que impressionou os visitantes, correu até Fréderik e passou a se esfregar em suas pernas, como se tentasse subir no colo de seu criador.
- Chega, Calibã! Chega!, Eu não tenho comida. Vá deitar ou terei que dar a você uma nova sessão de eletrochoques.
O monstro rapidamente murchou e correu para um canto embaixo da mesa. Isaías, contrariado, meteu a mão no bolso e deu a nota para seu companheiro.
Pedi então para que Isaías me contasse algo sobre os campos de batalhas.
- O que, garoto?
- Qualquer coisa.
- Qualquer coisa o quê?
Fiquei constrangido.
- Sei lá... As armas?
Ele então fez uma pausa, como se procurasse lembrar, e passou a me contar:
O motor a vapor cuspia redemoinhos sujos e quentes de fumaça no ar, misturando-se à fuligem e ao cheiro azedo de pólvora que infestava o vale. O céu, cinza e opaco, parecia afundar sobre as trincheiras. Homens, encolhidos contra as paredes de terra úmida, apertavam os fuzis com mãos trêmulas e olhos fundos. Suor escorrendo, respiração entrecortada, olhos úmidos, tremor involuntário dos lábios. E então, aquela aberração de ferro e vapor ergueu-se sobre eles.
A máquina.
Construção grotesca, carroça de guerra maldita e monstro metálico. Pernas articuladas, grossas como troncos, gemiam sob o peso da plataforma blindada, cuja instabilidade parecia zombar da segurança de tais obras da engenharia. Uma chapa de ferro maciço protegia a frente, amassada e marcada por buracos de munições de outros combates, enquanto, acima dessa, o canhão principal oscilava, como um olho enorme, mecânico e inquieto. Besta faminta, expirando jatos de fumaça espessa. Na traseira, o motor a vapor roncava pelos escapamentos. Engrenagens externas giravam irregularmente, expelindo óleo velho sobre a terra, e os pistões subiam e desciam com tal violência que faziam tremer o solo sob os pés.
"Avançar!", gritou o tenente, erguendo-se por um instante acima da trincheira e apontando adiante. Sua voz era engolida pelo estrondos, mas os soldados, por memória múscular, um instinto mecânico aprendido na escola da guerra, entenderam, e se dirigiram para a luta. Entenderam e não tiveram escolha.
No interior da máquina, dois operadores puxavam alavancas, giravam válvulas, ajustavam manômetros em um esforço desesperado para evitar que aquela coisa explodisse antes de cumprir sua função. O motor chiou e vibrou, engasgado. Óleo cuspido do solo. Pistões dispararam com um estalo. A estrutura toda inclinou-se para trás, e como uma rã, se colocou prestes a pular.
De repente, o salto.
A máquina ergueu-se do solo com um ruído gutural, deslocando um volume de ar que levantou terra, pedras e detritos ao redor. Um instante de suspensão — a máquina pairando no ar, seu peso desafiando toda lógica — então, o impacto. O chão cedeu sob o peso: a aterrissagem rachou o solo e arremessou pedaços de lama e lascas de trincheiras para todos os lados. A cabine interna balançou como um brinquedo descontrolado e os dois homens lá dentro. Presos por cintos de couro manchados de graxa, bateram a cabeça contra as chapas de ferro que os rodeavam.
"Alinhar o canhão! Dois graus acima!", gritou um, a voz embargada; o outro, vermelho e suado, obedeceu: girou o volante do mecanismo principal enquanto o canhão erguia-se num ranger metálico. Alvo: trincheira inimiga à frente. Homens espreitavam detrás de barricadas improvisadas, fuzis prontos, mas congelados diante daquela visão que avançava como uma paródia do reino animal e da engenharia mais avançada.
O disparo rugiu engolindo o próprio som da guerra. A explosão jogou a máquina para trás, seus pistões guinchando sob a potência, enquanto a bola de ferro rasgava o ar em uma trajetória grosseira. Não acertou o alvo — mas isso não importava. A terra explodiu em fragmentos, um buraco abriu-se no chão e gritos atravessaram a fumaça. Alguns homens caíram pelo impacto, muitos caíram pelo puro terror. Alguns tentaram correr, abandonando seus postos; outros permaneceram esmagados pela inércia do medo.
O operador do canhão olhou para o lado e cuspiu sangue. "De novo?", perguntou, quase sem acreditar aquilo ser possível.
"De novo." O outro puxou mais uma alavanca. A máquina avançava, preparando-se para um segundo pulo. O motor grunhiu mais alto, vomitando vapor em rajadas frenéticas. A chapa frontal, enegrecida pela fuligem e marcada por impactos recentes, parecia o rosto de um monstro mascarado, cego — perigoso. A máquina inclinou-se para trás novamente, as pernas mecânicas dobrando-se em ângulos estranhos. Era como se o próprio ar se recusasse a ceder passagem àquilo.
Então, o segundo salto.
Dessa vez, a máquina pousou em plena linha inimiga. Homens gritaram, dispersando-se em todas as direções. Um projétil de um fuzil acertou uma das pernas da máquina, mas ricocheteou deixando apenhas um arranhão superficial. O canhão girou mais uma vez. Dentro, os operadores lutavam contra a instabilidade, ajustando desesperadamente os controles. Lá fora, a trincheira inimiga desmoronava-se em caos e pânico.
"Disparar!" O comando, um trovão.
O impacto destruiu o pouco que restava da estrutura da trincheira à frente, arremessando pedaços de corpos e de barricadas à atmosfera. A fumaça espalhou-se feito manto sufocante, misturando-se à lama e ao sangue que pintavam o solo. No interior da máquina, os operadores lutavam para manter a posição, enquanto o motor ameaçava explodir.
E, ainda assim, dobrou os joelhos preparando-se para o terceiro salto.
Nessa ponto da história, Isaías interrompeu a história a pretexto de puxar um pouco de rapé pelo nariz. Não estava acostumado a cheirar rapé, mas me pareceria uma desfeita a Isaías. Não sabia dos efeitos entorpecentes que a matéria causa em algumas sensibilidades mais predispostas. Por isso, acabei adormecendo.
Acordei em meu pijama, no quarto de visitas. Não lembrava de nada, e me sentia por algum motivo envergonhado. Quando saí, encontrei Branca, a esposa de Isaías, colocando a mesa do café. Fui até ela e dei bom dia. Ela então passou a me contar sobre a noite anterior: