quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

SEXO DOS ANJOS


Estaria saindo da casa de mamãe no próximo final de semana, e ela estava possessa. Não parecia acreditar que seu menininho ira sair de casa, acho. De qualquer forma, passava noites em claro, chorando e fazendo queixas. Não que me pedisse para ficar, para não ir. Ao contrário, nem tocava no assunto da mudança, e parecia até mesmo que não sabia que no próximo sábado estaria morando em um outro lugar.

Já deviam ser quase seis da manhã. A bateria de meu celular tinha acabado, e eu precisei voltar para casa a pé, andando quase dez quilômetros em meio à madrugada. Ouvi o rumor de passos atrás de mim e, por cima do ombro, sem parar de andar em momento algum, vi que havia um sujeito vindo em minha direção. 

A iluminação insuficiente dos postes de luz não permitiram que eu estudasse bem o seu tipo, mas poderia dizer-lhes que era um homem muito esquisito. 

Esquisito, primeiro, pois esse sujeito andava rapidamente, em um passo torto, e as suas costas pareciam curvadas, seu peito quase batendo no queixo. E o mais estranho de tudo, além de manco e corcunda, o sujeito que vinha em minha direção também era anão. 

Não sei dizer bem o porquê, mas senti vergonha de que o anão pensasse que eu estava intimidado por sua presença. Passei então a andar calmamente, e na verdade, até retardei meu passo para permitir que ele me alcançasse.

Ao passar do meu lado, me acenou com a cabeça e perguntou aonde eu ia. Respondi que estava indo para casa, que minha mulher estava me esperando. 

- Ela é bonita?

- Quem?

- Sua mulher, oras!

- É linda!

Não sabia porque estava mentindo. Não era casado, e nem mesmo tinha uma namorada. A última mulher que vi nua foi quando tive que trocar as fraudas de minha avó. Ela estava paralítica, e parecia mais um vegetal do que mulher. Falávamos e falávamos com ela incessantemente, mas ela nada respondia. Atos, palavras, com ela tudo era em vão, e nada parecia despertar a sua atenção. Por algum motivo, colocávamos a velha na frente do aparelho televisor, como se isso fizesse seu tormentoso tempo passar mais alegremente, mas ela sequer parecia registrar as imagens. Seus olhos olhavam fixamente para o nada, como se não percebesse coisa alguma na sua frente. 

Algumas vezes acreditei ter flagrado ela olhando especificamente para alguma coisa, mas acho que me enganava. Minha avó parecia incapaz de qualquer atividade física. Era normal que tivéssemos nós mesmos que lhe dar banho, ou limpar ao seu excremento. 

- E você, amigo, é casado?

- Sou. 

- Mulher bonita?

- Bom, ela é uma anã.

Senti minha bochecha queimar de vergonha e desviei o olhar para longe dele. Parecia que qualquer referência a sua deficiência física fosse não apenas uma gafe, mas algo muito pior, que atentasse contra a ordem de todas as coisas. A companhia daquele anão me provocava uma sensação mortificante, que me fazia sentir como se eu fosse o autor de uma atrocidade, e não essa monstruosa loteria a que se dá o nome de reprodução genética. E se eu não deveria sentir qualquer culpa de sua condição, por que também haveria sentir piedade? Por que ele não poderia ser um homem maligno, que não merecesse a pena de ninguém, e esse seu tormentoso nanismo seria até mesmo muito pouco para que pagasse pelas atrocidades que cometia? 

- fatum est semper fortuna, murmurei.

- Como?

- É latim. Se não me engano, está na Res Gestae de Amiano. 

- Li essa em edição traduzida, que encontrei em uma sebo. O título se não me engano ficou As gestas.

- Oh, o senhor já leu ao historiador Amiano? 

- Sim. Gosto muito da era dourada da literatura latina.

- Ah, sempre bom encontrar um homem de cultura perdido em meio à cidade grande!

Discutimos sobre os nossos escritores favoritos da era de ouro (ele tinha predileção por Tácito e Publílio Siro, eu por Lucrécio e Políbio), até passarmos em frente a um botequim e ele me convidar para uma cerveja. Hesitei por algum momento, mas me pareceu inconveniente recusar o convite de anão. Aceitei, mas ao pretexto de não poder me demorar muito.

- Bobagem. Garçom, trás duas pingas pra nós.

- Pinga? Não era cerveja? 

- Calma, amigo! É apenas a entrada! 

Bebi aquela cachaça barata horrível e quase vomitei. Que gostinho horrível, que me causava um arrepio na espinha e me fazia pensar em mendigos. E todo esse desgosto sem sequer poder me queixar, sem mesmo poder fazer uma careta, pois não gostaria de provocar qualquer inconveniência a meu novo "amigo". 

- Creio que o senhor disse ser casado?

- Sim, sou.

- O que sua esposa faz? 

- Bom, ela é uma moça bem peculiar, e teria que contar-lhe uma longa história.

- Temos tempo para uma longa história. 

- Já devem ser quase seis da manhã.

- Bobagem, ainda está escuro. 

Olhei o céu. Estava escuro, mas sua noite parecia prestes a ceder e nascer do sol. Ainda precisaria andar uns dois quilômetros até que chegasse em casa. O anão, contudo, insistiu para que eu ficasse, que pagaria a conta, e então cedi a primeira cerveja, a segunda, a quarta e quando estávamos indo para a quinta, ele olhou o relógio e disse que precisava ir embora. 

Fui com ele ao ponto de ônibus. O anão apertou minha mão, mandou comprimentos à minha mulher e tomou o comboio. Eu segui na direção de casa, pois não tinha dinheiro da passagem.

Havia saído de casa com vinte reais na carteira para pagar o transporte. Acontece que, mais cedo, encontrei com um antigo colega dos tempos do colégio, que agora estava morando na rua. Vi o rosto de Sócrates, menino que sonhava em ser doutor, caído e sujo pela infâmia das ruas. Me lembrei da última vez que tinha visto o coitado. Era o aniversário de dezessete anos de Irene. Diziam que ele era cuidado pela avó, e que ela tinha morrido, e que ninguém mais saberia o que seria dele. 

Depois de alguns meses a profecia se realizou, e estava roubando nos bairros vizinhos, até ser pego e espancado pela facção que escrevia as leis naquele território. Como era menor de idade, consentiram em dá-lo um simples corretivo, e deixaram ele sobreviver ao custo de mutilarem o seu órgão reprodutor masculino. Dizem que com os anos, vivendo na rua e trocando favores sexuais, Sócrates enlouqueceu.

Pobre Sócrates, descamisado e com sua garrafinha cheia de cachaça. Sua voz era rouca, e falava tão rápido que quase não podia compreender.

- Só-Sócrates, é mesmo você? Há quanto tempo!

Estendi a mão para lhe cumprimentar, mas ele passou direto. Ao falar comigo gesticulava de forma expansiva. Muitas vezes até tocava em meus braços e ombros, e mais de uma vez me deu tapinhas na coxa que preferi entender como amistosos, muito embora não me saísse da cabeça os rumores de que ele já havia se prostituído. 

Sem saber o que dizer, perguntei se tinha visto a Irene, nossa amiga em comum e que eu não via há alguns anos, e ele me respondeu com aquelas palavras estranhas, incoerentes, que parecia dizer mais para si do que para mim:

- Abandonei tudo ou fui abandonado por tudo e isso que me permitiu a verdadeira ciência de todas as coisas, do bem e do mal, de todo o processo perverso e irreversível que nos acomete...

Talvez ele estivesse bêbado, e enquanto Sócrates me falava do escritório que alegava ter "lá longe, no centro do mundo", mas que ainda assim preferia viver nas ruas, cheguei mais perto de sua boca, para tentar descobrir bafo de bebida. Ele ficou um pouco assustado, talvez, com essa súbita proximidade física, e por isso resolvi abortar a operação. 

De qualquer forma, tinha em suas mãos a já referida garrafinha pet, cheia de misterioso líquido transparente, que provavelmente, sabemos, era aguardente, que desde os tempos coloniais era dada aos miseráveis para suportarem ao extenuante cotidiano de criatura inferior e explorada. 

E lembrava das aulas de teologia, do Padre Gilberto, que contava que em 1537 o Papa decretou que os índios tinham sim alma, que as teses que os colocavam em posição de animalidade eram falsas e ímpias. Pelo menos juridicamente, o decreto vedou qualquer possibilidade de escraviza-los, e desde então - isso já me falava o padre em particular, no fim do catecismo, enquanto lhe ajudava a arrumar as coisas - passaram a empregar os negros na função.

Depois de contar essa história, me olhou como se fosse dizer algo sério.

- Filho. Entre nós.

Tirou da bolsa um vidro com um líquido transparente e bebeu.

- Não sabia que o Padre bebia, eu disse.

- Todos nós, os miseráveis servos de Deus, precisamos do pecado para sobreviver, meu filho, e guardou a aguardente de volta na bolsa.

Nunca me esqueci daquela lição. É certo que Sócrates era alcoólatra. Como não, se vivia feito um cão, todo sujo, fedorento, cheio de doenças? E como fedia à suor, à murrinha, a tudo que é insuportável e vil, e mesmo assim ele tocava em mim com suas mãos sujas e poeirentas sem demonstrar nenhuma piedade de minha aparência alinhada, idônea, e como eram ásperas suas mãos, e pareciam grudar ao tocar minha pele delicada.

Em certo momento, agarrou o meu pescoço e disse que queria falar de sua mãe morta. Eu me afastei e disse para que me explicasse o que quisesse explicar, mas que não era necessário qualquer alteração nervosa. E me explicou que a mãe era viciada em jogos de aposta. E que cheirava muito pó.

Ele que ia comprar lá na boca, apenas doze anos, de short, sem camisa e cinquenta reais no bolso, que levava medroso até a boca do bairro. Entregava a grana e retirava uns saquinhos plásticos com o pozinho branco.

E disse também que a mãe gostava de beber, e que o pior era quando misturava álcool, pó e roleta. Era a santíssima trindade do vício, e foi assim que veio sobre ela o desastre.

Certa noite, depois de ter perdido todo o dinheiro com as apostas, apostou seu corpo com um cavaleiro de aparência bem distinta.

O mendigo passou muito tempo descrevendo como o cavaleiro era atraente, e que dizia até ter descendência de alguma nobreza austríaca. Seus gestos eram delicados, a mãe lhe contou, e andava com muita graciosidade.

Depois de esclarecer o tipo do sujeito, me explicou o que se sucedeu entre ele e sua mãe.

O cavalheiro lhe convidou para um jogo de xadrez, e se ela perdesse, deveria consentir que o sujeito possuísse seu corpo.

- Você vai poder fazer o que quiser com ele?, ela perguntou.

E ele, com seu olhar grave, simplesmente assentiu com a cabeça.

Do duelo de xadrez, tive notícia apenas por meio dessa reportagem, publicada pelo jornal local:


MULHER APOSTA A ALMA COM O DIABO

Desde o início dos tempos que a mulher vende o corpo para ganhar dinheiro. Que luxúria soberba, abominável, essa, e nessas mulheres sente-se de imediato o cheiro do enxofre. 

Se investigarmos melhor, descobriremos rapidamente a presença de algum demônio tomando conta de seu corpo. 

Não foi diferente o caso de Anita de Andrade, mulher que na última noite, contam, apostou o corpo em uma partida de xadrez. Estava entorpecida de cocaína e álcool, todos estes indícios de que estava possuída por algum demônio. 

Derrotada justamente na contenda, o senhor X (que preferiu não se identificar) levou-a até o seu apartamento e lá removeram todas as roupas e colocaram-na em uma estranha máquina. A cabeça de Anita foi acoplada a um cabo que ligava seu córtex cerebral a um terminal de computador. Quando viu, era tarde demais para voltar atrás, e dizem que a pecadora urrou por clemência. Sem dar ouvidos ao seus gritos, extraíram a consciência de Anita de seu corpo e colocaram em seu lugar a do senhor X, que desde então vive com o nome de Angélica Prado.

Abaixo, a notação do jogo de xadrez realizado no dia 13/03/2766 em que a senhora Anita de Andrade, mais conhecida como Rata, perdeu o corpo para o senhor X.

Cavalo come bispo c5. Rainha c7. Rainha e3. Torre de a8 para e8. Torre e2. Cavalo come torre e2, cheque. Rainha come cavalo e2. Bispo come peão g2. Cavalo come peão a6. Rainha a7, cheque. Rei come bispo g2. Torre g8, cheque. Rei h3. Rainha g7. Bispo d1. Torre e6. Rainha h5. Torre h6. Rainha come torre h6, cheque. Bispo h5. Rainha come bispo h5. Cheque mate.

Pobre criatura, pensava, ao examinar mais uma vez a reportagem que Sócrates insistiu que levasse comigo. Há de conviver com seu destino, como o jogador com sua mania, ou o anão com seu corpo. Como não podia entregar todo meu dinheiro àquela pobre criatura, que angelicamente fedia à merda e suor? Que padecia das mais horríveis misérias que sim, precisavam existir para que pudéssemos gozar do dom da vida? Esse é o melhor dos mundos, aprendi nas leituras de Leibniz, e como eu não poderia amar e agradecer pelo meu destino, bendizer todos os meus sofrimentos? Pois eram tão pouca coisa dentro de toda a estabilidade e perfeição que sustentava o cosmo? Eu que tinha que agradecê-lo, sussurrei enquanto entregava com nojo as notas para Sócrates, tentando evitar que nossas mãos se tocassem.

Virei mais uma esquina, estava já muito perto de casa. A cidade, assim vazia e à noite, adquire um aspecto sombrio. As lâmpadas amareladas não conseguem iluminar nada, ou melhor, fazem pequenos lagos de luz, mas tão logo saído deles era como se tivéssemos mergulhado para dentro do breu, e só com muita dificuldade que via o que se passava mesmo que ao nosso lado.

Foi nessas condições que se aproximou uma nova figura. Era uma mulher que já havia visto pelo bairro, mas que nunca dirigira-lhe a palavra. Fumava seu cigarro e soprava a fumaça com ar triste. Um perfume doce e suave ao redor de seu pescoço. Estava assustada, e me explicou que tentaram assaltá-la, e perguntou se teria algum problema se eu lhe acompanhasse até a sua casa. Era meu dever segui-la, então fui junto, tomando uma rua que dava na parte mais vazia da cidade. Ali, apenas alguns casebres, todos separados um dos outros por terrenos descampados onde crescia mato e plantas silvestres. Alguma vaca bulindo, barulho de grilos e pássaros que cantam a essa hora, algumas galinhas ciscando o chão e até mesmo um porco enorme sujo de terra e lama. De vida humana, no entanto, nenhum sinal. 

- Por aqui é perigoso? 

- Defina perigo.

- Não sei. Você não se sente ameaçada?

- Você sente medo?

- Não, e você?

- Às vezes sinto sim. Aí tomo meu comprimido.

E tirou um frasquinho de ópio de sua bolsa para me mostrar. Era de prescrição médica, segundo fez questão de explicar, e disse que o procedimento ajudava-lhe a controlar seus impulsos. Por exemplo, se antes ela brigava com seu pai, agora ela se apaziguava. Preferia ficar quieta, do que desperdiçar energia com coisas assim. Ou, então, em aulas ou festas de aniversário, agora não tinha mais medo de falar na frente dos demais. E me explicava que a sociedade é um acontecimento tão aberrante na história da natureza que sua existência ainda provoca terríveis males ao corpo humano, e que por isso tomava remédios, para sobreviver aos progressos realizados pela própria espécie. E perguntou-me se eu acreditava em médicos.

- Bom, se eu pegar uma gripe forte, vou me consultar com algum doutor.

E estudou meu tipo, imagino, olhando minha batina, meu rosto barbeado e pele branca, e o sorrisinho desdenhoso que deu ao falar o seguinte me irritou particularmente:

- Um padre que não acredita merecer os desígnios da providência?

- E não é designo de Deus que eu não padeça de dores injustas se posso aplacá-las com medicamentos?

Falei de maneira grosseira, e ela ficou de casa fechada até chegarmos em sua casa. Ela entrou sem agradecer e voltei, na direção de minha casa. Peguei o celular para ver a hora, esqueci que ele estava sem bateria. Olhei para a noite que deixava passar os primeiros raios da manhã. Deviam ser seis horas. Senti meu corpo pesar, como se implorasse pelo sono, e fiz um último esforço para apressar o passo e chegar de uma vez em casa. 

Será que a garota ficou ofendida? Não quis ser rude, mas também não quis deixar que insinuasse que não era um padre legítimo. 

Depois de quase meia hora caminhando cheguei em casa. Minha mãe estava chorando no sofá. Perguntei o que foi, ela disse que sabia que eu era bicha. Eu tratei de dizer que não, que estava casto na graça do senhor, e que sexo para mim era somente o dos anjos, mas ela fez como se não ouvisse e continuou a chorar. Indiferente, subi as escadas e me tranquei em meu quarto. Tirei minha batina e, enquanto me deitava completamente nu em minha casa, me lembrei que na próxima semana estaria morando em uma casa dada pela igreja, De olhos fechados, agradeci ao Senhor a graça enfim concedida.

Depois de não sei quantos minutos conclui que não conseguiria dormir. Abri os olhos e senti a luz do sol queimá-los. Sentei diante do computador e enquanto esperava que ligasse, virei o santinho na direção da parede. Estava muito quente. Levantei e liguei o ventilador de teto. Enquanto o computador ligava retirei da gaveta um tubo de pasta de dente. Tirei a tampinha e, depois de extrair  um pouco de pasta transparente, esfreguei delicadamente no pênis, de cima para baixo, estimulando a glande com cuidado. Abri um site pornográfico e procurei um filme que parecesse interessasse. Cliquei.

Um homem alto, de cabelo cumprido e ruivo, traseiro peludo, está em cima do sofá, disposto de quatro diante de uma morena baixinha, que enraba o seu cu com um falo de plástico rosa. Os braços, apoiados sobre a cintura do homem, revelam os pelos de sua axila. "Ai, ai, ai...", geme baixinho o homem toda vez que a morena entra fundo em seu cu. 

Ao lado uma moça jovem, talvez dezesseis anos, está de pernas abertas. Lambendo entre elas, uma senhora de uns cinquenta e poucos anos, os cabelos quase grisalhos. Ela chupa o dedo indicador e o escorrega para dentro da buceta da jovenzinha, que geme, escandalosa e cheia de volúpia, "oh, mommy...". 

No chão, uma criatura vestida uma roupa de couro que veda todo seu corpo. Não conseguia sequer enxergar, pois a única abertura de seu traje eram as das narinas, que animosamente empregava para cheirar os pés da mulher grisalha. Parecia um cão farejando o jantar, de quatro e abanando o rabo para cima. A sola do pé está preta de tanta sujeira, e também suja da merda dos estábulos que havia ao lado. As unhas, também sujas, estão pintadas de vermelho. 

Mais adiante, deitado no chão, um homem grande e musculoso urrava de prazer. Sobre ele, uma figura andrógina, o delicado pescoço apertado por ele. O homem segura o seu quadril e mete com força. 

Ao lado, um casal se entrelaça e chupa o sexo um do outro, um lambendo carinhosamente as intimidades do outro. Se contorcem, um envergado para dentro do outro. 

Apoiada sobre a parede adjacente, uma mulher é enrabada por outra, o falo de plástico verde entrando e saindo do cu, o pau e as bolas sacudindo no ar toda vez que o quadril da outra batia no seu. A mulher fodendo a outra pega um tubo de lubrificante e espreme a pasta sobre o falo de plástico. Afasta as bandas da bunda da travesti, uma com cada mão, e mete o pau inteiro, de uma vez, até o fundo. "Puta, safada, cachorra".

 Ao lado da travesti, uma loira toda arreganhada, oferecendo a buceta para dois homens baixinhos. Enquanto um deles se masturbava, o outro fodia a buceta peluda, de cabelos loiros e enrolados. De vez em quando, ela e a travesti beijam na boca. 

Pendurado de ponta-cabeça, um sujeito está preso no teto por uma corrente amarrada em seus tornozelos. Veste uma roupa de couro preta que cobre todo o seu corpo, com exceção de seu pênis, que ereto paira no ar. 

Acorrentado em outro ponto da parede, com as pernas e braços imóveis, um sujeito com a mesma roupa preta, recebe marteladas no saco. Ele grita, em êxtase provocado pela dor. 

Uma outra criatura, vestida de preto, tem seus membros arrancados, primeiros os braço, depois as pernas. Amordaçada, não consegue gritar nada. 

Uma mulher, apoiada na mesa de dissecção, é arrombada por um homem, que é arrombado por um outro homem. Uma moça chupa o seu cu, um rapaz o seu saco. 

Uma mulher mama o seio da outra, enquanto cada uma de suas mãos masturba a dois homens que se beijam de língua. 

E então gozei. Limpei as mãos sujas em uma toalha, esqueci de virar de volta o santinho, deitei em minha cama e dormi.


segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

RELATO DE CHEGADA AO CORTIÇO



Sentada na calçada, Leila lia ao O Mestiço, de Zola, quando Pérola-Flor chegou e contou uma anedota engraçada. Um amigo, disse Pérola-Flor, estava organizando um bloco com as canções da banda Ludovic para sair no carnaval. Um segundo amigo  então lhe sugeriu jocosamente que empregassem como nome do bloco um dos versos da banda, "assim como meu pai".

- Por que um nome tão grotesco?, questionou Leila.

- Por ser sexual e burlesca, bem ao espírito do carnaval,.  Mas claro, ninguém aceitou a proposta indecente.

Depois de muitos ensaios, desfilaram com um bloco chamado "meses de fevereiro", que fazia referência a outra famosa música do grupo. Leila não conhecia o pessoal que organizava o desfile. Eram conhecidos de Pérola-Flor, que no dia convidou ela para ir junto.

Muita gente bebendo e fumando. Barulho de bateria, cavacos e metais tocando alto. As pessoas cantarolam as músicas que sabem.

- A história, como tudo, se converteu em mais uma grande mitologia capitalista, dizia um rapaz alto para Leila. A quantidade de filme e de prêmio Nobel entregues às trágicas memórias da Grande Guerra... Todos anos, muitas lágrimas em honra das histórias de extermínio e violência. Os cinemas estão lotados de pessoas querendo assistir ao sofrimento dos oprimidos.

Leila já estava enfadada do discurso daquele tipo francês (seu nome era Marcelus Pierre). Por isso deu uma desculpa qualquer e foi juntar-se a Pérola-Flor, que conversava com duas mulheres. Ela entra no assunto, e em alguns minutos, graças aos poderes do álcool, já estava enturmada. Contava um caso:

- No último encontro eu estava meio bêbada e sem querer meti a mão no cacto. Passei o resto da noite tentando tirar os espinhos de meus dedos. Enquanto isso, o pessoal estava discutindo suas crenças no oculto. Falavam sobre a cabala, a filosofia hermética, wicca, essas coisas... Eu permaneci em silêncio, ouvindo seus agradáveis discursos. Quando estava desatenta, perguntaram sobre o que eu afinal acreditava. Bebi um gole de cerveja e tentei desconversar, rindo, dizendo que não sabia direito... Às vezes tenho receio de falar sério".

Incrédula, Pérola-Flor questiona se Leila realmente não acredita mesmo em nada.

- Com algumas cervejas a mais teria feito a piada seríssima de confessar que gosto muito de ler filosofia francesa, disse Leila , rindo.

Então as duas foram para o apartamento de Leila. Beberam algumas cervejas e ficaram discutindo sobre os filósofos até amanhecer. Dormiram juntas.

Leila teve pesadelos naquela noite, e na manhã relatou o seguinte para René:

Estava correndo, desesperada. Mal percebia o cheiro do esterco dos cavalos imperiais misturando-se ao de urina, álcool e suor dentro de minhas narinas. Um enorme dragão verde-esmeralda ocupava quase todo o espaço da rua apertada e escura. 


As pessoas não lembram, mas as ruas de antes da revolução eram todas assim, miseráveis e sujas. E nos dias de festa a multidão bêbada vinha dançando e cantando seus hinos e odes populares. 

Em todo canto via-se aos nativos, e também muitos estrangeiros, todos vestidos das formas mais pitorescas, desfilando com longos chapeus, vestidos véus e estranhos adornos. Também muitos homens e mulheres descamisados, ostentando tatuagens no peito e barriga. Apressada, desviei de um casal de amarelos e de olhos puxados com um salto, mas na hora de aterrissar tropecei. Minha sapatilha voou para fora de meu pé, mas eu continuei correndo. Na frente espelhada de um prédio em que passei em frente vi minha fisionomia morena passando correndo, os cabelos curtos e loiros, a testa alta, que sempre pensei ser grande demais, o rosto iluminado pela luz das lâmpadas fluorescentes, meu pulôver escuro de mangas curtas, a saia jeans, o pé direito sem a sua sapatilha, a meia três quartos branca em contato com o chão imundo. Mais cedo tinha chovido forte. O chão estava cheio de lama misturada à merda dos cavalos. Virei a esquina, me sentindo exausta, ou próxima da exaustão. Ao virar esbarrei com alguém, mas não tive tempo para parar. Ainda correndo, olhei para trás, por cima do ombro, e vi um velho mandarim de meia idade bêbado e sonolento, sentado no chão e me xingando em sua língua. Mergulho para dentro da multidão, desviando ora de casais de namorados, ora de barracas de frutas ou qualquer outra vendinha. Atravessei a rua para fugir por uma outra esquina, mas uma enorme locomotiva interrompeu o meu caminho. Além de impossibilitar qualquer passagem, a máquina reproduzia em looping uma música infantil, de filme americano. Lá de cima, tocando instrumentos de sopro e objetos percussivos, a banda de músicos executava seu trabalho indiferentemente, e eu diria até que burocraticamente, com enfado. Os milhares de corpos reuniam-se e obstruíam toda a rua, amontoados diante da locomotiva. Era impossível voltar. Ao meu redor os nativos pulavam, sorridentes e bêbados, soltando fogos de artifício , atirando serpentina um no outro, cantando e dançando aquela peculiar coreografia que até as crianças sabiam. E puxada por touros com enormes chifres pintados de ouro, a locomotiva avançava vagarosamente, quase parando. Olhei para trás, e encontro uma esquina livre, e me pareceu possível chegar até ela se me espremesse entre os corpos, mas quando tento voltar fui imediatamente impedida pelo fluxo da multidão, que empurrava na direção oposta. Como uma tábua largada na praia, fui arremessada de volta aonde estava, aos gritos de “licença”, “por favor”, “preciso sair daqui”, todos ditos na língua nativa, claro, e todos também perfeitamente ignorados.. Esperei então, mesmo que impaciente, ansiosa, os nervos à mil, que passassem uma boa porção de segundos, segundos vagarosos que custaram a passar. A locomotiva ainda passava, mais lenta que uma lesma. Para relaxar, meti nervosamente a mão no bolso e cheirei um pino inteiro, o que depois me pareceu um erro, pois logo em seguida olhei para trás e vi a cabeleira loura de Freda vindo em minha direção, tentando atravessar o mar de gente. Meu coração quase saiu pela boca. Sentindo a úlcera queimar meu estômago, com meu cérebro prestes a desfalecer por conta do esforço nevrótico, limpei o suor de minha testa e bebi um gole de minha garrafa d’água. Olhei para a locomotiva, ainda atravessando, e pensoeique só mais um pouquinho e seria o suficiente para que eu atravessasse. Se demorasse um pouco mais do que demorei, eles teriam me alcançado. Se demorasse um pouquinho mais, estaria perdida. E então a locomotiva passou. Empurrei uma mulher para que saísse da minha frente e me meti a correr pelo trecho recém-aberto da rua. Tentei correr, mas era impossível, tamanho o número de gente na rua. A todo instante era preciso desviar de alguém, mas os choques eram inevitáveis, seja com as pessoas, seja com os objetos  e animais que abundavam em todo canto, as carroças em que vendem bebidas e comidas, os papagaios que as crianças empinam, as lamparinas acesas e penduradas na fachada dos prédios, os enormes bonecos de papel que trazem presos por cordas, e eu quase caí ao tropeçar em um gato vira-lata. Quando me recuperei do golpe, vi que sombra crescia no chão à minha frente. Ao me virar e olhar o céu azul-claro vi um boneco de cartolina bloqueando a luz do sol. Era enorme, e estava sustentado por uma locomotiva enorme. A figura representada nesse carro alegórico era um estranho macaco de três olhos, nove braços e segurando três bastões, que os mandarins adoravam. Lentamente me aproximei do enorme macaco, me agarrando à protuberância de sua cauda para escalar. Enquanto subia, por cima do ombro VI que estavam atrás de mim. Vou subindo e quando dou por mim estou no topo da cabeça do macaco. Lá dentro, uma banda toca a seus instrumentos de sopro e percussão. Veem eu entrar com ar de tédio, e continuam executando seus movimentos como se eu não estivesse ali. Saio correndo pela janela e pulo na direção de um enorme toldo roxo, que embora abafe minha queda, não impede que sinta a lancinante dor que afligia ao meu pé direito. Mas, pelo menos, nenhum sinal de ninguém, fora claro, os milhares de nativos que cantavam e dançavam pelas ruas da cidade imperial. Naquele tempo, muitas vilas tinham entradas em múltiplas ruas. Vi uma porta aberta para um cortiço, e pensei que poderia ser essa a minha grande oportunidade de fugir: poderia despistá-los pelos casebres caindo aos pedaços. Talvez pudesse até parar para dormir em um quarto. Entrei pelo cortiço e fui procurar um quarto para dormir.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

QUATRO HISTÓRIAS DE MERDA

1.

Ter caganeira e deslumbrar a merda gradualmente se recompor da ação perversa das bactérias. Primeiro a liquifação total, a bosta que se mistura como água derramada na água. Como se encenasse a aparição da vida, forma-se então as primeiras partículas, que boiam poeticamente na água translucida do toalete. Depois alongam-se como girinos, e criam patas para melhor poder nadar até o mar. Olho o vaso uma vez mais. e assisto com orgulho paterno a minha minha, dura e bela que nem diamante. dar descarga é dizer adeus a um filho crescido.

2.

Dez e dezesseis, leio um take de Carlos Góes sobre o caso Neymar: "não me importa a opinião política de um artista!, diz esse célebre calculador de gráficos e receitas.

Exclamo em voz alta:

- O esteticismo agora chegou nos economistas!

(no caso, um esteticismo improvável, que na verdade mesmo é só um gênero de tecnofilia).
o meu gato riu e respondeu:

- Ainda se impressiona com esses economistas que não entendem nada de ciências sociais?

- Dadá, sei que um economista pensa tanto quanto uma calculadora japonesa super moderna. Ainda assim, me espanto.

- A estupidez humana não me espanta mais, retrucou, com ar entediado.

- Será que existe alguma solução, Dadá? Será que esses economistas conseguem desfazer o mal que os bancos de dados e os gráficos e as fórmulas fizeram em sua imaginação e sensibilidade?

- Isso porque você nem tocou na ideologia liberal, meu caro humano... 

ficamos em silêncio, reflexivos, melancólicos, e até mesmo assustados, diante da perspectiva de um futuro orientado por tal gênero de mestres.

Foi então Dadá quem interrompeu:

- Minha caixa tá cheia de cocô, humano.

E fui até a cozinha limpá-la.

3.

Termina o comercial e recomeça o Domingão do Hulk. Musiquinhas de vídeo game de 64 bits, e Hulk está no palco falando no microfone:

- Será que a dona Maricota vai ganhar o prêmio de cem mil reais? Gente, será que ela vai conseguir? Diretamente do palco do Domingão, dona Maricota, vai lá, é com a senhora!

E a velha tem que derrotar o ex-jogador Ruy Cabeção em um gol a gol. Se vencer leva o prêmio de cem mil, que usaria para reformar a casa e dar presentes ao netinho gordinho.

- Pronta, dona Maricota?

E dona Maricota olhou para a câmera, com aquele olhar sério, de quem está preparada para dar a vida.

A avó se ajoelha junto do neto e rezam o pai nosso.

-Santificado seja o vosso nome, venha nós o vosso reino...

Quando de súbito subiu um cheiro de azedo.

- Assim na terra como no céu, o pão nosso de cada dia nos dai hoje e... meu Deus do céu, Bento, cagou nas calças de novo? Na hora da reza?

- Vovó, culpa sua!

- Eu? Por que eu?

- Você reza devagar! Eu queria fazer cocô!

- E por isso que cagou nas calças?

- Presta atenção em mim, vovó. Ouve o que eu falo.

Essas cenas se passaram na cabeça de dona Maricota enquanto partia na direção de Ruy Cabeção, a bola dominada na direita.

O ex-lateral do Fluminense rouba a bola da senhora e chuta em direção do gol. Dona maricota perde uma vida, restam duas. Vai de novo para cima de Ruy, perde a bola e toma outro gol. Tem apenas mais uma vida. Mais uma vez, pra cima dele e tenta um drible, é agora ou nunca.

Cai e leva a mão ao joelho. O apresentador:

- Que pena, dona Maricota não conseguiu! Agora, a banda Fundo de Quintal.

E entra a Fundo de Quintal, agitando a rapaziada da plateia.

4.

Depois de uma longa noite de sexo anal, ela cagou um enorme tolete. Ao dar descarga, não compreendeu o porquê de tanta emoção. Passou a mão no rosto, limpando os olhos marejados. Enquanto a bosta girava, prestes a desaparecer para sempre, sussurrou: adeus, meu primogênito.

AS LEIS DO TRAUMA

 "O evento se torna parte da própria subjetividade", disseram hoje para se referir ao entrelaçamento entre memória e trauma.

Não seria justamente o trauma a incapacidade do sujeito de imaginar-se sem essa tal parte, que lhe parece constituinte? O trauma não seria a neurose de recontar obcessivamente essa memória distante?

E no interim entre acontecimento e relato, o sujeito talvez já não se transformou absolutamente? Ao analisar seu discurso, poderemos perceber tantas variações, mesmo que ainda mantida a obsessão original, aquela onde ele projeta a própria fantasia, uma rubrica que persegue toda sua fala, o lugar desde onde grafa seu próprio ser no mundo.

A psicanálise típica aposta que um tal acontecimento pretérito explicaria a ordem discursiva de hoje, como se determinado evento fosse a causa de um trauma, perpetuamente representado e reencenado em seu discurso; mas poderia também se perguntar pelo inverso, de como o discurso contemporâneo redistribui as coordenadas do trauma dentro de novas superfícies semânticas.

O que estou chamando vagamente de trauma, antes de mais nada, é essa espécie de mitologia privada desde onde engendramos nossa história. Suas leis não são a de um passado que ocorre e permanece, em repetição infinita, mas de um passado que ocorre e que imediatamente se dissipa, se transforma, se faz um outro. 

Nessas circunstâncias, até acredito na psicanálise como esforço teórico: de encontrar não simplesmente o rumor da repetição - que é somente, digamos, a metodologia de pesquisa, o indício de alguma coisa, pois sobre a identidade da repetição (de um nome) subjaz séries de diferenças -.

A pobreza da repetição, digamos, muitas vezes não é apenas do paciente, mas do analista, que não percebe as maneiras que a mesma figura pode se redistribuir em outras.

Claro, que sobre toda fala atua uma espécie de controle, e o paciente, tão logo insinua uma variação, um deslocamento, sentindo o perigo que essa diferença evoca (o perigo de ser um outro, de talvez ter que se reimaginar por inteiro), tão logo ameaça tal possibilidade, e vislumbra vagamente um novo destino, ele imediatamente, provavelmente, irá oscilar, regredir, repetir, confirmar a espécie de regra ou máxima que caracteriza a boa neurose. Voltar, portanto, ao trauma: reencená-lo mais uma vez. 

O trauma não é o que está por baixo, oculto pela fantasia: o trauma é a própria fantasia.

ai, minha fama de maldito, 2

O after na casa de Pedro Fernandes estava uma bosta. Gente fumando maconha pelos cantos e fazendo aquela média com todo mundo. Artifício emo...