Em que se transforma o arquivo quando ele se inscreve diretamente no próprio corpo?
p. 8
Com Freud, sem Freud, às vezes contra Freud, Mal de arquivo evoca sem dúvida um sintoma, um sofrimento, uma paixão: o arquivo do mal; mas também aquilo que arruina, desvia ou destrói o próprio princípio do arquivo, a saber, o mal radical. Levanta-se então infinita, fora de proporção, sempre em curso, "em mal de arquivo", a espera sem horizonte acessível, a impaciência absoluta de um desejo de memória.
p. 9
É bem verdade que o conceito de arquivo abriga em si mesmo esta memória do nome arkhê. Mas também se conserva ao abrigo desta memória que ele abriga: é o mesmo que dizer que a esquece. Nada há de acidental ou surpreendente nisso. Com efeito, ao contrário daquilo que geralmente se imagina, tal conceito não é fácil de arquivar. Temos dificuldade, e por razões essenciais, em estabelecê-lo e interpretá-lo no documento que nos entrega; aqui, no nome que o nomeia, a saber, o "arquivo".
o sentido de "arquivo", seu único sentido, vem para ele do arkheion grego: inicialmente uma casa, um domicílio, um endereço, a residência dos magistrados superiores, os arcontes, aqueles que comandavam. Aos cidadãos que detinham e assim denotavam o poder político reconhecia-se o direito de fazer ou de representar a lei. Levada em conta sua autoridade publicamente reconhecida, era em seu lar, nesse lugar que era a casa deles (casa particular, casa de família ou casa funcional) que se depositavam então os documentos oficiais. Os arcontes foram os seus primeiros guardiões. Não eram responsáveis apenas pela segurança física do depósito e do suporte. Cabiam-lhes também o direito e a competência hermenêuticos.
p. 12
esta topo-nomologia, a esta discussão arcôntica de domiciliação, a esta função árquica, na verdade patriárquica, sem a qual nenhum arquivo viria à cena nem aparecería como tal.
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A consignação tende a coordenar um único corpus em um sistema ou uma sincronia na qual todos os elementos articulam a unidade de uma configuração ideal. Num arquivo, não deve haver dissociação absoluta, heterogeneidade ou segredo que viesse a separar (secernere), compartimentar de modo absoluto. O princípio arcôntico do arquivo é também um princípio de consignação, isto é, de reunião.
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o o signo da aliança na circuncisão, a uma marca íntima diretamente sobre o corpo.
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Muita tinta e papel para nada, todo um volume tipográfico, em suma um suporte material desproporcional para "contar" (erziihleri) histórias que, no final das contas, todo mundo conhece. Mas o movimento desta retórica leva a outro lugar. Pois Freud tira daí uma outra conseqüência, na lógica retrospectiva de um futuro anterior: ele deveria ter inventado uma proposição original que compensasse este investimento. Dito de outra forma: ele deveria ter encontrado algo de novo na psicanálise: uma mutação ou um corte no interior de sua própria instituição teórica. E deveria não somente anunciá-la, mas também arquivá-la: pô-la de alguma maneira no prelo.
p. 18
Freud sugere, de fato, que este arquivamento não seria vão nem de pura perda, na hipótese de que faria aparecer o que na verdade ele já sabe que vai fazer aparecer e que não é portanto uma hipótese para ele, uma hipótese posta em discussão, mas sim uma tese irresistível, a saber, a possibilidade de uma perversão radical, justamente uma diabólica pulsão de morte, de agressão ou de destruição: portanto, uma pulsão de perda. Na seqüência, o capítulo recordará tudo aquilo que Além do princípio do prazer (1920) já introduziu, dez anos antes: esta pulsão de destruição na economia, ou melhor, na aneconomia psíquica, na parte maldita desta despesa em pura perda.
p. 20
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Ela [a pulsão de morte, pulsão de agressão, pulsão de destruição: muda, em silêncio,] destrói seu próprio arquivo antecipadamente, como se ali estivesse, na verdade, a motivação mesma de seu movimento mais característico. Ela trabalha para destruir o arquivo: com a condição de apagar mas também com vistas a apagar seus "próprios" traços - que já não podem desde então serem chamados "próprios". Ela devora seu arquivo, antes mesmo de tê-lo produzido externamente. Esta pulsão, portanto, parece não apenas anárquica, anarcôntica (não nos esqueçamos que a pulsão de morte, por mais originária que seja, não é um princípio, como o são o princípio do prazer e o princípio de realidade): a pulsão de morte é, acima de tudo, anarquívica, poderiamos dizer, arquiviolítica. Sempre foi, por vocação, silenciosa, destruidora do arquivo. [...] a menos, diz Freud, que ela se disfarce; a menos que ela se tinja, se maquie ou se pinte (gefãrbt ist) de alguma cor erótica. Esta impressão de cor erógena desenha uma máscara sobre a própria pele. Dito de outra maneira, a pulsão arquiviolítica não está nunca pessoalmente presente nela mesma nem em seus efeitos. Ela não deixa nenhum monumento, não deixa como legado nenhum documento que lhe seja próprio. Não deixa como herança senão seu simulacro erótico, seu pseudônimo em pintura, seus ídolos sexuais, suas máscaras de sedução: belas impressões. Estas impressões são talvez a origem mesma daquilo que tão obscuramente chamamos a beleza do belo. Como memórias da morte. [...] ela [pulsão de morte, destruição, agressão] leva não somente ao esquecimento, à amnésia, à aniquilação da memória como mneme ou anamnesis, mas comanda também o apagamento radical, na verdade a erradicação daquilo que não se reduz jamais à mneme ou à anamnesis; a saber, o arquivo, a consignação, o dispositivo documental ou monumental como hupomnema, suplemento ou representante mnemotécnico, auxiliar ou memento. Pois o arquivo, se esta palavra ou esta figura se estabiliza em alguma significação, não será jamais a memória nem a anamnese em sua experiência espontânea, viva e interior. Bem ao contrário: o arquivo tem lugar em lugar da falta originária e estrutural da chamada memória. [...]
p. 21 - 22.
se não há arquivo sem consignação em algum lugar exterior que assegure a possibilidade da memorização, da repetição, da reprodução ou da reimpressão, então lembremo-nos também que a própria repetição, a lógica da repetição, e até mesmo a compulsão à repetição, é, segundo Freud, indissociável da pulsão de morte. Portanto, da destruição. Conseqüência: diretamente naquilo que permite e condiciona o arquivamento só encontraremos aquilo que expõe à destruição e, na verdade, ameaça de destruição, introduzindo a priori o esquecimento e a arquiviolítica no coração do monumento. No próprio "saber de cor". O arquivo trabalha sempre a priori contra si mesmo.
p. 23
A pulsão de morte tende assim a destruir o arquivo hipomnésico, quando não a disfarçá-lo, maquiá-lo, pintá-lo, imprimi-lo, representá-lo no ídolo de sua verdade em pintura. Uma outra economia está assim trabalhando: a transação entre esta pulsão de morte e o princípio do prazer, entre Thanatos e Bros; mas também entre a pulsão de morte e esta aparente oposição dual dos princípios, dos arkhai, por exemplo, o princípio de realidade e o princípio do prazer. A pulsão de morte não é um princípio. Ela ameaça de fato todo principado, todo primado arcôntico, todo desejo de arquivo. E a isto que mais tarde chamaremos de mal de arquivo.
p. 23
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Uma circuncisão, por exemplo, é uma marca exterior? É um arquivo?
p. 24
o judeu pode desempenhar o papel análogo de alívio ou de deslastre econômico {die selbe õkonomisch entlastende Rolle} que lhe reserva o mundo do ideal ariano. Dito de outra maneira, a destruição radical pode ainda ser reinvestida numa outra lógica, no inesgotável recurso economístico de um arquivo que capitaliza tudo, incluindo aquilo que o arruina ou contesta radicalmente seu poder: o mal radical pode ainda servir, a infinita destruição pode ser reinvestida numa teodicéia, o Diabo pode também justificar - e esse seria o destino do judeu no ideal ariano.
p. 24
Tentei delimitar o que este texto [O mal-estar na civilização, de Freud] dá a pensar, apesar das certezas metafísicas nas quais, me parece, fica aprisionado,
p. 25
o arquivo, como impressão, escritura, prótese ou técnica hipomnésica em geral, não é somente o local de estocagem e de conservação de um conteúdo arquivável passado, que existiría de qualquer jeito e de tal maneira que, sem o arquivo, acreditaríamos ainda que aquilo aconteceu ou teria acontecido. Não, a estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro. O arquivamento tanto produz quanto registra o evento. É também nossa experiência política dos meios chamados de informação.
[para escrever ao modo de koselleck, a transformação do meio de registro, ao transformar nossa expectativa de seu futuro e do horizonte do passado, transforma também o que nele, no medium, se registra. por exemplo, se enuncia em voz alta ou baixa muitas vezes aquilo que se recusa a enunciar por escrito, em carta endereçada a alguém. a que enunciados serve o registro da escrita, sua durabilidade? o que a duração de seu registro nos impede dizer? "pegue essas cartas e queime depois de ler", alguém poderia escrever...].
p. 28 - 29.
o limite entre o privado, o segredo (privado ou público) e o público ou o fenomenal.
p. 30.
Esta técnica de arquivamento comanda aquilo que no próprio passado instituía e construía o que quer que fosse como antecipação do futuro. E como garantia. O arquivo sempre foi um penhor e, como todo penhor, um penhor do futuro. Mais trivialmente: não se vive mais da mesma maneira aquilo que não se arquiva da mesma maneira. O sentido arquivável se deixa também, e de antemão, co-determinar pela estrutura arquivante. Ele começa no imprimente.
p. 31.
[psicanálise:] a idéia de um arquivo psíquico distinto da memória espontânea, de uma hupomnesis distinta da mneme e da anamnesis: a instituição em suma de uma prótese do dentro.
p. 31.
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incorpora também o que parecia contradizer, sob a forma de uma pulsão de destruição, a pulsão mesma de conservação que poderiamos chamar também pulsão de arquivo. É o que chamamos ainda há pouco, levando em conta esta contradição interna, a mal de arquivo. Não havería certamente desejo de arquivo sem a finitude radical, sem a possibilidade de um esquecimento que não se limita ao recalcamento. Sobretudo, e eis aí o mais grave, além ou aquém deste simples limite que chamam finitude, não havería mal de arquivo sem a ameaça desta pulsão de morte, de agressão ou de destruição. Ora, esta ameaça é in-finita: ela varre a lógica da finitude e os simples limites factuais, a estética transcendental, ou seja, as condições espaço-temporais da conservação. Digamos melhor: ela abusa. Um tal abuso abre a dimensão ético-política do problema. Não há um mal de arquivo, um limite ou um sofrimento da memória entre vários outros: implicando o in-finito, o mal de arquivo toca o mal radical.
p. 32
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uma "Casa de Freud", o arkheion do qual nós somos os anfitriões, no qual falamos, a partir do qual falamos. Ao qual, ousaria dizer também, falamos: endereçamo-nos a ele.
p. 33
Como se faz em geral a prova de uma ausência de arquivo senão fiando-se nas normas clássicas (presença/ausência de referência literal e explícita a isso ou aquilo, a um isso e um aquilo que supomos idênticos a eles mesmos e simplesmente ausentes, atualmente ausentes, se não estão simplesmente presentes, atualmente presentes; como e por que não levar em conta arquivos inconscientes, mais geralmente, virtuais)? Ora, Yerushalmi sabe muito bem que a proposta de Freud é analisar, através da aparente ausência de memória e de arquivo, todos os tipos de sintomas, sinais, figuras, metáforas e metonímias que atestam, ao menos virtualmente, uma documentação arquivística onde o "historiador comum" não identifica nada. Concordemos ou não com sua demonstração, o fato é que Freud pretendeu que o assassinato de Moisés tenha efetivamente deixado arquivos, documentos, sintomas, na memória judaica e mesmo na memória da humanidade. Ocorre simplesmente que os textos deste arquivo não são legíveis segundo as normas da "história comum", e aí reside todo o interesse da psicanálise, se ela tem algum.
p. 84
o inconsciente pode ter preservado a memória e o arquivo - mesmo se houve recalque; pois um recalque arquiva também aquilo cujo arquivo ele dissimula ou encripta.
p. 86
a interpretação do arquivo (aqui, por exemplo, o livro de Yerushalmi) não pode esclarecer, ler, interpretar, estabelecer seu objeto, isto é, uma herança dada, senão inscrevendo-se nele, isto é, abrindo-o e enriquecendo-o bastante para então aí ocupar um lugar de pleno direito. Não há meta-arquivo. [...] o arquivo aumenta, cresce, ganha em auctoritas. Mas perde, no mesmo golpe, a autoridade absoluta e metatextual que poderia almejar. Jamais se poderá objetivá-lo sem um resto. O arquivista produz arquivo, e é por isso que o arquivo não se fecha jamais. Abre-se a partir do futuro.
associarmos o arquivo à repetição e a repetição ao passado. Mas aqui trata-se do futuro e do arquivo como experiência irredutível do futuro.
p. 88
[as três portas do futuro]
[1.] Lugar marcante e necessário, lugar decisivo ali mesmo onde nada se decide. [...] Promessa. A promessa de um segredo guardado.
p. 90
[2.] Trata-se deste performative por vir cujo arquivo não tem mais nenhuma relação com o registro do que é, da presença do que é ou terá estado atualmente presente. Chamo a isto o messiânico e o distingo radicalmente de todo e qualquer messianismo.
p. 93
[3.] a judeidade que não espera o futuro é justamente a espera do futuro, a abertura da relação com o futuro, a experiência do futuro. Aí estaria a peculiaridade do "judeu", algo unicamente seu: não somente a esperança, não apenas uma "esperança no futuro (hope for the future)", mas ainda "a antecipação de uma esperança específica no futuro (the antecipation of a specific hope for the future)."
p. 93
De fato, todos os profetas colocam uma resolução última, se assim podemos dizer, do conflito edipiano entre Israel e Deus; Malaquias coloca-a igualmente num plano puramente humano: 'Ve-heshiv lev avot 'al banim ve-lev banim ‘al avotam' (Ele reconciliará o coração dos pais com [os de] seus filhos e o coração dos filhos com [os de] seus pais)
p. 94
Yerushalmi registra um silêncio de Freud que ele vai contudo fazer falar, virtualmente
p. 95
A necessidade de afirmar a afirmação, a afirmação da afirmação, deve ser ao mesmo tempo tautológica e heterológica. Yerushalmi está pronto a ceder tudo, inclusive a existência de Deus e o futuro da religião, tudo menos este traço que liga a judeidade e a abertura ao futuro. E, mais radicalmente ainda, a unicidade absoluta deste traço. A unicidade do traço é primeiramente o traço-de-união inapagável entre judeidade e futuro. O ser-judeu e o ser-aberto-ao-futuro seria a mesma coisa, a mesma única coisa, a mesma coisa como unicidade - e não poderíamos dissociar uma da outra. Ser aberto ao futuro seria ser judeu. Reciprocamente. Exemplarmente. Seria não apenas ter um futuro, ser capaz de antecipação, etc., aptidão partilhada cuja universalidade poderia parecer indiscutível, mas também referenciar-se ao futuro como tal e não tomar sua identidade, refleti-la, declará-la, anunciá-la senão a partir do que vem do futuro. Seria este o traço, a unicidade exemplar do traço-de-união
p. 95 - 96
Como se Deus só houvesse inscrito uma coisa na memória de um só povo e de um povo inteiro: no futuro, lembre-se de se lembrar do futuro.
p. 98
Uma vez que há o Um, há o assassinato, a ferida, o traumatismo. O Um se resguarda do outro. Protege-se contra o outro, mas no movimento desta violência ciumenta comporta em si mesmo, guardando-a, a alteridade ou a diferença de si (a diferença para consigo) que o faz Um. O "Um que difere de si mesmo". O Um como o centro. Ao mesmo tempo, mas num mesmo tempo disjunto, o Um esquece de se lembrar a si mesmo, ele guarda e apaga o arquivo desta injustiça que ele é. Desta violência que ele faz. O Um se faz violência. Viola-se e violenta-se mas se institui também em violência. Transforma-se no que é, a própria violência - que se faz a si mesmo. Autodeterminação como violência. O Um se guarda do outro para se fazer violência (porque se faz violência e com vistas a se fazer violência).
p. 100
Esta seria talvez a razão pela qual Freud não teria aceitado, sob esta forma, a alternativa entre o futuro e o passado de Édipo, nem entre a "esperança" e a "desesperança" (“hope" e "hopelessness"), o judeu e o não-judeu, o futuro e a repetição. Um se torna, feliz ou infelizmente, a condição do outro. [...] é da estrutura do por-vir o não poder se colocar senão acolhendo a repetição tanto no respeito à fidelidade - ao outro e a si mesmo - como na re-posição violenta do Um.
p. 101
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Em todos os casos, não haveria porvir sem repetição. E daí, talvez, diria Freud (essa seria portanto sua tese), não haveria porvir sem o fantasma da violência edipiana que inscreve a sobre-repressão na instituição arcôntica do arquivo, na posição, a autoposição com a heteroposição do Um e do Único na arkhê monológica. E a pulsão de morte.
p. 102
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