terça-feira, 31 de janeiro de 2023

CG&S, p. 160.

O ANIMAL: Ao mesmo tempo que é homem, o ser humano também passa a partilhar do animal. Quando o homem se animalizou? Sempre? Ou a animalidade possui tempo e lugar?

Antes de tudo: o que vem a ser o animal em Freyre (e da antropologia pretérita)?

• desregulamento da atividade sexual; incesto

• função genésica e evolução como teleologia

• descarga dos sentidos

O animal é uma máquina libidinal: sua energia está orientada para a reprodução sexual da espécie. As necessidades fisiológicas - e em nível mais elaborado, complexo, civilizado, as paixões - são parte da razão da natureza, da razão sexual que governa todo animal em direção à reprodução.

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O parentesco representa a entrada da natureza - a reprodução, o sexo - dentro do mundo da cultura: mundo da restrição, do regulamento, da disciplina, do controle daquilo que se considera o impulso livre, libido nua e crua, do animal. A civilização é essa estranha tecnologia moral que promove a domesticação do que é natural no humano.

Lévi-Strauss irá estabelecer o parentesco como ponto de passagem: o lugar primeiro em que a cultura domestica a natureza, seu fluxo selvagem libidinal. O simbólico dobra o real: por meio do controle do parentesco - controle dos corpos das mulheres, diz Rubin Gayle - a libido é organizada e se converte na política - política dos homens, diz também Rubin Gayle -. 

O tabu do incesto interdita o sexo, e dessa interdição que nasce a família e o parentesco. Por onde a cultura nasce por entre as pernas da natureza está as duas mãos do poder: primeiro o que interdita a relação sexual entre corpos relacionados; segundo, o poder que distingue entre homens e mulheres, e faz delas um objeto de troca entre os primeiros. 

O sexo se controla por meio do controle ao feminino, e toda uma economia política nasce da observação de Lévi-Strauss a respeito do parentesco como passagem da natureza para a cultura. Pois a cultura não é nada mais nada menos do que uma organização do real pelo simbólico; a torção da energia libidinal, livre, louca, passional da máquina animal, e segundo a arquitetura de alguma razão. Essa razão pelo menos desde Maus e mais proeminentemente em Lévi-Strauss é assegurar as relações de reciprocidades mútuas, formar a rede de aliança - o contrato - que assegura o nascimento da sociedade, e também regular a forma de sua reprodução segundo essa ordem a priori a que estamos chamando de poder.

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Uma genealogia entrelaça Kant e Marx a Foucault e Lévi-Strauss: a ordem dos meios de produção que produz o a priori a que se chama episteme, as categorias do pensamento. 

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o sexo é só mais um das armas de guerra para nos manter sob controle.


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Em Gilberto Freyre, os limites entre natureza e cultura não estão articulados, mas ainda assim se pressentem.

CG&S, p. 162: ressalta-se as restrições, tabus e impedimentos entre os índios brasileiros: "criar um estado social bem diverso do de promiscuidade ou de deboche". Esclarece-se que a vida dos primitivos não se tratava da de "livre animal imaginado pelos românticos"; que tinham medos e preconceitos. Expõe-se o mito do caipora e diz-se que ele ainda sobrevive na vida psíquica do brasileiro.

Os medos e preconceitos dos povos indígenas sobrevivem no brasileiro de hoje: transfigurados em outras formas. "Desapareceram os pajés, deixando atrás de si primeiro as 'santidades' do século XVI, depois várias formas de terapêutica e de animismo, muitas delas hoje incorporadas, junto com sobrevivências de magia ou de religião africana, ao baixo espiritismo..." (p. 163).

Os estudos desenvolvidos em CG&S nos oferecem uma historiografia calcada na continuidade e na herança, na identidade entre o presente brasileiro e o passado colonial - e às vezes, em exercícios que em outros trabalhos Freyre chamaria até mesmo de "futurologia", do porvir -.

Aqui já estamos em uma escritura distinta da típica antropologia física, da maquinação libidinal, dos instintos sexuais e de reprodução, em que as heranças são sobretudo genéticas e/ou técnicas, e adentramos a uma antropologia já articulada ao simbólico, à continuidades ditas psíquicas, e cuja expressão teórica mais bem-acabada talvez seja o estruturalismo de Lévi-Strauss, especialmente n'O pensamento selvagem.

O livro de Lévi-Strauss inicia-se querendo desafiar a teoria antropológica vigente, que para diferenciar entre a razão das sociedades ocidentais daquela considerada primitiva, selvagem, preteria aos segundos como inaptos para o pensamento abstrato (sobre tal inaptidão, convém a leitura de A mente primitiva, de Lévi-Bruhl: "o conjunto de hábitos mentais que exclui o pensamento abstrato e o raciocínio propriamente dito parece ser encontrado em um grande número de sociedades inferiores e constituir um traço característico e essencial da mentalidade dos primitivos" (p. 11); "a mentalidade primitiva não se preocupa em procurar saber o que chamamos de causas dos fenômenos" (p. 36); a obra será diretamente referenciada por Freyre em seu estudo sobre os indígenas brasileiros como forma de compreender as particularidades da psicologia do selvagem), de forma que Lévi-Strauss desenvolve uma complexa teoria para compreender as razões desse a priori com que se orienta a apreensão da experiência selvagem, sua lógica e pensamento, sua ação e mesmo a sua história.

Não é nosso interesse esmiuçar a obra em muitos detalhes, senão tomar dela o que parece adequado para a compreensão de nosso argumento à respeito da obra de Gilberto Freyre, especialmente no que se refere às transformações que o brasileiro atribuiu à mentalidade primitiva, e à sua herança ao povo brasileiro. 

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Grande parte de CG&S está concentrada em discussões teóricas oriundas da antropologia da época. Muitas vezes o livro se parece a um redemoinho antropológico, com distintas correntes postas em paralelo. Uma massa que em seus momentos de delírio argumentativo não nos oferece mesmo qualquer síntese, pelo menos não sínteses que satisfaçam pela sua clareza.

Ou são insatisfatórias a nós, que já desejamos antecipadamente que as discussões de Freyre cheguem a um determinado lugar, como se ainda esperássemos da razão pretérita algum pendor progressista, aperfeiçoador, que lhe obrigue a pensar dentro das categorias que pensamos, como se a razão futura já estivesse escrita em toda e qualquer razão, e não como se toda razão abrisse múltiplas linhas do tempo, e o desenvolvimento da história da teoria não fosse somente uma das direções em que certo consenso progrediu? Pois ao progresso que atribui-se ao desenvolvimento da Razão, postula-se, em paralelo, as ruínas de todas as outras, soterradas, recalcadas, expulsas, da historiografia vigente. Nós, que destruímos as sandices do evolucionismo, da antropologia física, esperamos simplesmente sermos conduzidos para fora do labirinto argumentativo de Freyre pela prometida porta da antropologia cultural que o próprio autor nos prometeu, e nós também permanecemos sempre frustrados, quando ao fim e ao cabo as questões não se resolvem, as diferentes hipóteses se acumulam e se contradizem, uma enorme colcha de retalhos de citações que se acumulam, e que Freyre simplesmente administra, indo de uma para a outra, modestamente, por meio de seus "ao contrário...", "entretanto...", "pelo menos...", "e...", "quanto a isso...", "aliás...", "contra a ideia geral...", "embora...", "parece-nos que..."...

A sensação é que Freyre está de fato manejando contrários - pesando distintos argumentos - e muito embora não se furte exatamente de decidir ou indicar preferências, essas preferências muitas vezes se contradizem... Como se um único sujeito permitisse diferentes predicações, como se um argumento pudesse ser seguido pela sua refutação... A sensação provocada pelo seu ensaísmo não é  de exposição lógica, não é o silogismo que irá resultar em sínteses conceituais e elegantes, mas uma colagem de diferentes textos que antes de mais nada produzem o aspecto cubista a que o próprio Freyre evoca em outros lugares, e que também evocaa aos filósofos de Tlon, que conjugam da verdade a existência múltipla e contraditória, e em Tlon os livros de filosofia comportam dois livros, a tese e a sua antítese...

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Os asteriscos, recorrentes em CG&S, e que parecem sugerir a chegada nem de uma aporia e nem a chegada ao fim de uma seção, mas simplesmente a incapacidade do discurso continuar a se desenrolar, da necessidade de provisoriamente anunciar um fim, apenas para que se possa recobrar as palavras e começar novamente o mesmo argumento.

O aspecto musical da ensaística de Freyre: após os asteriscos, geralmente faz-se o ritornelo - e volta-se ao tema -. 

p. 167: surgem os três asteriscos e encerra-se a fala sobre a cor vermelha (cor profilática, cor tonificante, cor da felicidade, cor erótica, cor de sangue.... a síntese freyreana antes engloba e acumula todas as anteriores, uma visão de um todo simultâneo...). Em seguida, retorna-se a um dos temas de CG&S: o "choque das duas culturas".

Essa noção sangrenta, darwinista, que compõe um dos eixos da escritura em Freyre, é também o fundo escritural em que se desenvolve a antropologia (pelo menos) da primeira metade do século XX. Mesmo  Lévi-Strauss, considerado tipicamente como aquele quem fez a antropologia abandonar de vez uma teoria antropológica naturalista em prol de uma simbólica, teve sua obra analisada por Althusser nos seguintes termos: "Lévi-Strauss é obrigado a pensá-las [as relações de produção] ou em relação ao "espírito humano", ou em relação ao "cérebro" e ao seu princípio formal comum (binário), ou em relação a um inconsciente social que assegure as funções da sobrevivência na sociedade" (p. 201). 

Os estudos de Lévi-Strauss, seja sobre o parentesco, seja sobre os mitos, poderiam ser caracterizados a partir da necessidades mínimas para a sobrevivência desse ser social: a reprodução dos laços de aliança e reciprocidade, no caso do parentesco, e a reprodução da linguagem, no caso dos mitos, que dão continuidade ao social ao longo do tempo e do espaço, permitem a sua reprodução, sua sobrevivência.

As perguntas de Althusser sobre a obra de Lévi-Strauss: "mas por que esse possível?, e não um outro, é que ocorreu, é portanto real?" (p. 201). De fato, a antropologia de Lévi-Strauss é quase sempre dócil; não que não aluda a conflitos, disputas; mas a tendência de sua teoria é por uma visão, antes de mais nada, capaz de integrar as diferenças culturais em um todo diferente, porém, igualitário, em perfeita consonância com as diretrizes do multiculturalismo do pós-guerra.

"É preciso bastante egocentrismo e ingenuidade", escreve Lévi-Strauss contra Sartre, "para crer que o homem está, todo inteiro, refugiado em um só dos modos históricos ou geográficos de seu ser, enquanto que a verdade do homem reside no sistema de diferenças e de propriedades comuns desses modos" (p. 284). 

A crítica contra o evolucionismo, em Lévi-Strauss, leva-o em direção a uma espécie de ideologia pacifista da cultura, que subestima seus dentes e garras, e para voltar ao termos de Althusser, se desinteressa da pergunta: mas por que o real? Talvez a forma com que Lévi-Strauss minimize a ciência histórica seja parte da sua panaceia contra o evolucionismo, contra a hierarquização entre culturas e povos, mas de qualquer maneira, acaba por lhe trair nesse pequeno ponto cego: como que realidades suplantam outras, como sociedades não só se reproduzem, mas nascem, morrem e matam?

Na página 185 do Pensamento Selvagem Lévi-Strauss tangencia o problema ao se referir a um grupo de 900 sobreviventes de uma trintena de tribos australianas cujo sistema mitológico foi desagregado pela imposição dos modos de vida (da linguagem...) dos ocidentais: "Reagrupados de qualquer maneira num campo governamental, que compreendia (em 1934) umas quarenta casas, dormitórios vigiados e separados para moças e rapazes, uma escola, um hospital, uma prisão, casas de negócio, e onde missionários (ao contrário dos indígenas) podiam viver à farta: num lapso de quatro meses, viram-se desfilar não-conformistas, presbiterianos, Exército da Salvação, anglicanos e católicos romanos..." E na página seguinte: "Em consequência, e se bem que a organização social esteja reduzida ao caos em virtude das novas condições de existência impostas aos indígenas e das pressões leigas e religiosas que sofreram, a atitude especulativa subsiste. Quando não é mais possível manter as interpretações tradicionais, elaboram-se outras, que, como as primeiras, são inspiradas por motivações (no sentido saussuriano) e por esquemas. Estruturas sociais, outrora simplesmente justapostas no espaço, são postas em correspondência, ao mesmo tempo que as classificações animais e vegetais próprias de cada tribo. [...] [as diferentes tribos então] procuram formular regras de equivalências. Não há dúvida que, se o processo de deteriorização viesse a interromper-se, este sincretismo não pudesse servir de ponto de partida a uma nova sociedade, para elaborar um sistema global, cujos aspectos todos se encontrariam ajustados". (p. 186 - 187).

Deteriorização, sincretismo, ajustados: Esse léxico, curiosamente, nos devolve ao universo escritural freyreano, aos seus estudos sobre as interações entre culturas distintas. Se nos estudos de Lévi-Strauss esse processo de interação está recalcado por essa espécie de ideologia multiculturalista, que se contenta com pensar culturas idealmente a-históricas, separadas do devir histórico, Gilberto Freyre irá se aproximar consideravelmente daquilo que Althusser disse estar ausente da antropologia estruturalista: a descrição da realidade material, dos meios de produção. Não apenas referimos à ênfase freyreana naquilo que, em sentido marxista, por excelência representa as análises dos meios de produção da sociedade colonial brasileira: o latifúndio escravocrata e açucareiro - mas também a um aspecto a que poderíamos nos referir como modo de destruição: o "contato dissolvente", diz Freyre, "entre as populações nativas da América, dominados pelo colono ou pelo missionário, a degradação moral foi completa, como sempre acontece ao juntar-se uma cultura, já adiantada, com outra, atrasada".

Darwinismo cultural violento, e também brutal em sua percepção de realidade dos contatos entre culturas: "mesmo que se salvem formas ou acessórios de cultura, perde-se o que Pitt-Rivers considera o potencial, isto é, a capacidade construtora da cultura, o seu élan, o seu ritmo". (p. 167-8).

 

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O capital como cultura no exato sentido imperialista dos jesuítas e missionários que vieram à América e sufocaram a espontaneidade indígena: "o imperialismo econômico da Europa burguesa antecipou-se no religioso dos poderes da S.J., no ardor europeizante dos grandes missionários..." 


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pág. 169: história bicéfala: primeiro, ponto de vista da Igreja - PORÉM (para efetuar a passagem para outra visão do evento) - ponto de vista dos indígenas. 

Responsabilidades; retórica judicativa.


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O imperialismo como dupla destruição da cultura: não apenas no sentido dado por Lévi-Strauss - destruição mitológica, das categorias a priori do pensamento - mas uma destruição materalizada na prática: das instituições, modos de produção e de vida.

O materialismo de Freyre se articula com o de K. Marx, mas sobretudo com o discurso médico e sanitarista: "agentes disgênicos (...) que lhe alteraram o sistema de alimentação e de trabalho, pertubando-lhes o metabolismo; os que introduziram entre eles doenças endêmicas ou epidêmicas; os que lhe comunicaram o uso de aguardente de cana". (p. 170). 

Trata-se de um materialismo que, antes de mais nada, é um estudo da fisiologia física e moral, pois ambos estão associados: a doença se apodera da carne e também do espírito. A moral como extensão do físico, os costumes que apodrecem e se degradam como um defunto exposto ao sol. 

É nesse espaço da antropologia física que se inscreve a economia política de Freyre. A economia escravista e açucareira produz não apenas sintomas sociais, mas sintomas estritamente fisiológicos - físicos e morais.


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A vida que se multiplica desde os meios de produção. O engenho como coração dessa sociedade viciosa. O órgão que alimenta - que gera o ganho, o excedente, capaz de multiplicar os modos de vida colonial. Capaz de espalhar feito um vírus, de destruir os corpos incapazes de adaptar-se a sua presença. 

Freyre instaura um princípio de guerra biológica desde o engenho. E não nos referimos apenas às doenças que atribui ao contato entre raças distintas> não só a destruição dos corpos, mas dos modos de vida. Da cultura. Completo remodelagem do território. Remodelagem também da língua e costume dos povos originários. A história desses povos estavam escrita nos signos dos seus mundos (cf. Lévi-Strauss). Destruir seu mundo é destruir a possibilidade de contá-la.

A máquina de guerra do engenho - que alimenta poderes, que escraviza negros e índios, que se apossa da mata, as bandeiras multiplicando suas artérias para confins geográficos mais distantes, destruindo tudo e reimplantando em seu lugar organismos invasores, que tomam gradualmente posse de seu hospedeiro, e como um cancro mortal, multiplica-se cada vez mais rápido, em progressão geométrica, até que se atinja os limites da geografia, os limites da economia, até que o vírus atinja um nível de equilíbrio com seu hospedeiro.


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Freyre trata demoradamente de pratos à base de mandioca (p. 180-1). Diz que da índia brasileira aprendeu-se diversos quitutes: e ao visitar a Amazônia, área de cultura brasileira mais impregnada de influência cabocla, apesar da primeira impressão da culinária sugerir o exótico, ao tocar-lhes com a língua de imediato reconhecemos um gosto familiar: "sentimos o muito que nos ficou de fundamentalmente agreste no paladar (...); o muito que nos ficou dos nossos antepassados tupis e tapuias" (p. 181)

Como nos Sertões, de Euclides, o avanço virulento da civilização trava combate com a natureza, com as zonas inóspitas e impenetráveis, e ali formam-se espécie de ilhas de história, onde a história universal parece deter-se, contornar-se, e como na Galápagos de Darwin, a natureza pode seguir um curso distinto, uma segunda linha do tempo. Que graça sentem os antropólogos ao adentrar nesses tempos remotos, intocados pela civilização! E onde Lévi-Strauss planeja encontrar a outridade total (ver Tristes Trópicos), Freyre goza do encontro com a identidade, e proustianamente saboreia quitutes amazônicos como quem reencontra uma parte perdida de si mesmo.

O paladar oferece uma memória não-escriturária, feita e transmitida, primeiro, pela própria comida (e no limite, em sua transcrição sob forma de receita); e segundo, nos corpos, nesse gênero de memória sensitiva que revela-se ao paladar, ao olfato, à audição... E que desencadeia os mais ricos e diversos e fantasiosos processos mnemônicos!

A casa-grande é o grande laboratório das culturas. Em que branco, preto, índio, todos juntos, introduzem sua contribuição à civilização brasileira... E as diferentes linhagens, de alguma forma, entram de conluio, todas juntas, em um novo corpo, essa meta-raça, capaz de guardar a lembrança de todas as outras... E ao comer pratos amazônicos, meu deus!, é como se o caboclo Freyre urrasse canções de guerra e pedisse uma rede para deitar! Uma simples mordida e essa parte primitiva, selvagem, tapuia, que nele fora degradada e esquecida pela civilização, pudesse simplesmente despertar...

Dupla pergunta: primeiro, o que a culinária conserva de indígena? Essa é uma pergunta razoável, pois uma história da culinária poderia facilmente (e Freyre, mesmo que brevemente, rudemente, executa ou insinua a possibilidade desse trabalho) reunir as tecnologias, receitas, ingredientes cultivadas pelos povos originários, e traçar a história de suas transformações, sincretismos e destruições dentro do que veio a ser a virulenta história da culinária brasileira. A segunda pergunta é mais comprometedora e árdua de responder: Mas o que o corpo de Freyre conserva de indígena? De onde veem essa familiaridade ancestral que liga tão afetuosamente seu paladar ao do tupi?

Como os significantes, as receitas possuem significados arbitrários; ou melhor: historicamente fundados. O gosto, assim com a língua, não trás em si nenhuma presença. Não há lógos inscrito: tudo que ocorre é remeter a uma remeça de significantes...

A pergunta: Quando inventou-se a culinária indígena? Quando ao comer a tapioca, o pirarucu, sentiu-se ressoar essa coisa estranha, étnica, que nos remete a uma teia de textos - relatos de viagens, etnografias, a própria historiografia de Freyre e de tantos outros - que invocam a presença nostálgica daquilo que só pode existir por meio da ausência, da morte, do apagamento: o passado indígena? Que fantasia é essa que passamos a gozar junto do gozo do macapatá, do beiju, do tarubá? Gosto que agrade talvez ao paladar, mas já os simples significantes desprovido de qualquer sentido já são capazes de nos saciar de nosso desejo de tupi, desejo de tapuia. O que são todos esses ídolos erguidos em honra da antropologia senão prova da sedução que esse outro lhe provocou depois de morto?

A invenção do brasileiro é singular: ao mesmo tempo é invenção de identidade e de alteridade radical. O outro e o mesmo revelado no mesmo símbolo: pretos, índios, brancos, reunidos dentro desse corpo freyreano, crescido e formado em casa-grandes, que antes de ser filho tríbio, cruza que preserva no corpo brasileiro a memória ancestral do português com o indígena, com o africano, é filho de um discurso, de uma longa e coletiva elaboração sobre a origem, Freyre se aproxima das mais variadas escrituras - e sua obra incorpora antropologias variadas, estudos médicos, crônicas, e mesmo costumes orais, saberes que se transmitem sem a letra impressa, mas todas essas escrituras múltiplicas estão repetidamente atravessadas como um vício de fala que retorna feito vírgula pelo discurso da origem, da presença ancestral; esse discurso, antes de ser continuação das substâncias que diz expressar, ao contrário, possui geografia e idade específica.


sábado, 28 de janeiro de 2023

NO JANTAR

 Era uma noite de sábado. A família, depois do jantar, estava reunida na sala. Os ventiladores ligados para amenizar o calor, e a mesinha de centro ocupada por copos. O pai, Oswald, bebia uísque com gelo, e contava uma história com sua voz lenta.

- Eu tinha quinze, dezesseis. Não lembro bem.

- Tinha dezesseis, Oswald, interrompeu a mãe para lembrá-lo. 

Deusa já tinha ouvido essa história pelo menos uma dezena de vezes, e começava a se aborrecer quando Oswald retornava a ela. A primeira vez que ele contou, Deusa lembrava bem, foi depois de terem dormido juntos no alto de um morro. Estavam nus, de braços dados, e assistiam o sol nascer. Ali, aquela história, com seus elementos vexatórios, pareceram uma confissão melancólica e mesmo heróica. Depois de contá-la, com os olhos baixos e mareados, Deusa cobriu-lhe de beijos, e também chorando, sussurrou que lhe amava e que tudo ficaria bem.

Essa mesma história, que antes parecia indício do amor existente entre Oswald e Deusa, com o tempo, começou a ganhar outros contornos. Antes, ao contá-la, Oswald sofria, e até desfalecia em lágrimas. Tudo isso, claro, ocorria somente na frente de Deusa. Seus dois filhos quase nunca assistiram o pai chorar (a única exceção foi no funeral do avô). A mãe, essa era mais do que experimentada nos transportes emotivos do pai, e conhecia as suas lágrimas como ninguém mais. Somente deitado no colo dela que ele era capaz de chorar. 

Deusa permanecia em silêncio, distraidamente acariciando a mão de Oswald, enquanto ele contava a mesma história, agora para os filhos e para alguns amigos da família, explicando as motivações de seu pai, que lhe obrigou a sair da casa, e dos anos que morou no internato, e como não tinha amigos, e todo o tempo bom que tinha era passado com os livros. Todo tempo fora da sala de aula que não passava com os outros meninos, Oswald passava na biblioteca.

- Companhia muitas vezes ingrata, disse ele, olhando para o filho mais velho, Narciso, pois os livros, apesar de dizer muito à nosso respeito, custam também a ouvir. As suas palavras podem ceder à qualquer significado, é verdade, mas ao mesmo tempo só parecem ecoar aquilo que já está escrito... E estamos, por isso, sempre reaprendendo a reler...

- Chega de filosofemas, Oswald, conte logo a história!, disse Arnold, um dos amigos, em tom de brincadeira. 

- Oswald não perde a mania de intelectual!, disse Deusa, rindo para Arnold. Ele quer sempre ser o primeiro da turma, você sabe bem, disse com um sorrisinho, balançando negativamente a cabeça, e o cigarro equilibrado entre o indicador e médio.

Quem esperasse que a leitura fizesse de Oswald um bom aluno estará enganado. Quer dizer, é verdade que durante muitos anos fez sim, e no colégio tirava as melhores notas. Isso, talvez, acentuasse a sua solidão. Os outros meninos debochavam dele. Vez ou outra, batiam. E isso tudo só acentuava a sensação de distância que Oswald sentia em relação aos demais. Tinha certeza que não era um deles. Quando entrou para a universidade, manteve o seu hábito solitário, aprendido nos anos de internato, mas a verdade é que havia se desinteressado de tirar boas notas; bastava o suficiente para passar nas matérias e obter o diploma. Os ensinamentos dos professores, se explicava para a sua audiência, hoje já não lhe importava em nada: a experiência e o estudo provou que todos eram vazios e falsos, incapazes de ensinar. A pedagogia é uma mentira burguesa. Se existia algum lugar para se aprender, talvez fosse nos livros, não que fossem mais ou menos verdadeiros, pois eram palavras torpes de um mestre, salas de aulas impressas e emolduradas em capas. O que importa nos livros, isso falou olhando ao primogênito, era a necessidade de silêncio, de alheamento. 

- Sim, é melhor estar sozinho para pensar, disse Wanda, a esposa de Arnold. Os demais às vezes falsificam o nosso pensamento. Começamos a pensar para agradar, para deleitar, e não para a verdade. 

- Para a verdade ou para o que importa a nós mesmos, disse Deusa, enquanto bebia do uísque do marido.

Arnold deu uma gargalhada alta e olhou para os dois meninos.

- Não aprendam essa obsessão do seu pai com a verdade!, disse. É melhor pensar em coisas mais importantes!

- Como o quê?, perguntou timidamente o mais novo, de nome Flaubert.

- Mulheres! Dinheiro! Bebidas! Prazeres!, disse Arnold, e todos riram, mesmo que contra à vontade. Menos Oswald, que seguia olhando para o nada, mas ninguém - com exceção de Narciso, eu diria - pareceu reparar em como o pai estava distante.

Pensava no incidente ocorrido às onze e trinta e dois de um sábado à noite. Há mais de quarenta anos, mas que ainda se lembrava perfeitamente. Oswald estava sentado na cadeira da biblioteca, sozinho. O bibliotecário era amigo de Oswald, e deixou  a chave para que pudesse estudar até mais tarde.

- Veja bem, disse ele, abotoando a jaqueta, eu te-te-tenho um encontro hoje com uma senho-senhorita e-e-e-e-e... bem!, e por isso e por isso e por isso eu vo-vo-vou precisar sair mais cedo e deixar a chave a chave com você, Kristiva. 

O bibliotecário abotoou o último botão e olhou no espelho. O jaquetão deixou Borges maior e mais gordo do que nunca. Ajeitou o chapéu no alto da cabeça e olhou o reflexo de Oswald de um jeito estranho, como se esperasse encontrar nele alguma aprovação. Estava inseguro, pois se achava não apenas feio, mas grotesco. Discretamente (o que era impossível), cheirou sua axila com um movimento rápido e desengonçado. Por fim, acendeu um cigarro, entregou a chave a Oswald Kristiva e saiu apressado, naquele seu passo desajeitado de manco, dizendo-se atrasado. Oswald sacudiu negativamente a cabeça, com pena do pobrezinho, e voltou para a leitura, mas já não conseguia se concentrar nas palavras. Foi então até o banheiro e cheirou um pó branco com uma cédula de dinheiro. Voltou para a biblioteca e, movido pela droga, continuou a ler, sacudindo energicamente a perna direita e repetindo com os lábios, sem emitir nenhum som, cada uma das palavras: 

"Tudo é importante, sem dúvida,  porque Deus criou e Deus pode criar qualquer coisa. No entanto, por essa mesma razão, nada pode ser importante, afinal, Ele pode criar tudo de tudo. Que importância teria então a criação de uma alma tola e moleirona como a minha?, perguntou Blaise para seu namorado, enquanto fazia força para cagar. Ele não olhou em seus olhos e passou a dissertar sobre o Bem: É uma coisa divertida considerar que há no mundo pessoas que, tendo renunciado a todas as leis de Deus e da natureza, façam outras às quais obedecem cegamente, como, por exemplo, os ladrões, os soldados, os médicos, etc., e assim, também, os lógicos..."

- Acordado ainda, senhor Kristiva?, interrompeu uma voz seca. Uma chama se acendeu e revelou um velho, coberto por uma batina surrada, segurando em uma mão um pratinho com uma vela e na outra um isqueiro. Ele fedia.

- Estava lendo, padre Gilberto, disse Oswald, e com um rápido movimento ocultou o livro que lia por baixo de uma enorme edição comentada da Retórica de Aristóteles.  Oswald esfregou a narina com as costas da mão. Seus olhos vidrados olharam para o rosto sombrio do padre. 

A mesa estava cheia de livros abertos, um por cima do outro, e a manobra teria sido eficaz se o faro do padre, já muito experimentado, não tivesse percebido que ali claramente havia algo de errado. Aproximou e viu o livro de Aristóteles aberto na página 389. Gilberto se aproximou, foi para trás de Oswald e, por cima do ombro do rapaz, leu em voz alta:

- "Em termos de caráter, os jovens são propensos a desejos passionais e inclinados a fazer o que desejam. Entre esses desejos há os corporais, sobretudo os que se ligam ao amor, em face dos quais são incapazes de dominar-se. Volúveis e inconstantes nos seus desejos, deles rápido se fartam. Tão depressa desejam com ardor como deixam de desejar, assemelhando-se seus ímpetos aos ataques de fome e sede de pessoas doentes"... 

E o padre Gilberto colocou as mãos nos ombros de Oswald. 

- Percebe, Oswald, como o desejo é uma doença? Um cancro maligno que se reproduz dentro de você? E que você deve simplesmente arremessar para fora, como o vômito? E com seus dedos fortes e ossudos, apertou os músculos tensos de Oswald. 

O rapaz se controlava para não tremer, fingia normalidade.

- Padre, não sei se estou entendendo bem o que quer dizer, disse entre os dentes, e fez um movimento como se quisesse esquivar os ombros das mãos dele, mas nada pode contra seu apertão forte, que lhe apertava como uma garra de caranguejo. Quando Oswald aceitou e medroso se recostou na cadeira, o padre passou a lentamente massagear Oswald com uma delicadeza quase que oriental

- O que mais está lendo, senhor Kristiva? 

- Ah, também estou lendo a... E Oswald puxou um livro qualquer e mostrou a capa.

- Os sertões! Euclides da Cunha! Poderia me ler um trecho, senhor Kristiva?, disse, em tom amigável.

Hesitante, com a voz tremendo, Oswald procurou um trecho qualquer e leu, sem que o padre interrompesse a diabólica massagem:

- "O homem do sertão, encouraçado e bruto, tinha parceiros porventura mais-mais perigosos..."

Oswald se interrompeu pois o padre passou a apertar seus ombros com força, e precisou se controlar para não emitir um guincho de dor. 

- Continue! Continue!, encorajou Gilberto, sorrindo, enquanto enfiava as unhas na carne do aluno.

- "Va-valerá a pena defini-los? A-a força portentosa da hereditariedade, aqui, como em toda a parte e em todos os tempos, arrasta para os meios mais adiantados — enluvados e encobertos de tênue verniz de cultura — trogloditas completos. Se o curso normal da civilização em geral os contém, e os domina, e os manieta, e os inutiliza, e a pouco e pouco os destrói, recalcando-os na penumbra de uma existência inútil, de onde os arranca, às vezes, a curiosidade dos sociólogos extravagantes, ou as pesquisas da psiquiatria, sempre que um abalo profundo lhes afrouxa em torno a coesão das leis eles surgem e invadem escandalosamente a História. São o reverso fatal dos acontecimentos, o claro-escuro indispensável aos fatos de maior vulto..." E as mãos do padre desceram na direção de seu tronco.

Na sala de jantar, a história foi interrompida exatamente aí. Os filhos ficaram em silêncio. O clima era desagradável, triste. Arnold fez um comentário de consolo e deu um tapinha do ombro do amigo. Oswald disse que não era nada, que aquilo já tinha passado. 

Deusa segurava a mão de Oswald e pensava nos detalhes que tinha contado para ela, somente para ela, e que aqui permaneceram nunca ditos. Em como o padre apagou a luz da vela e, na penumbra, tirou a roupa do jovem rapaz. E ela sabia também que a violência se repetiu algumas vezes. 

- Alguns meses depois, disse Oswald, olhando para o copo vazio, o padre morreu de algum problema cardíaco. Encontraram nas suas coisas várias fotos de vários meninos nus. E diários íntimos. Dizem que seu conteúdo era horrível.

Deusa olhou o rosto do marido e pareceu que ele estava quase que sorrindo, ou então que se controlava para não sorrir. E lembrou daquela noite, a da confissão, e pensou que agora tudo estava diferente. O que havia acontecido? Respirou fundo, soltou a mão de Oswald e disse para todos que iria deitar. Deu boa noite, beijou os filhos e foi para o quarto. Duas horas depois, quando Oswald deitou ao seu lado, fingiu que dormia.

domingo, 15 de janeiro de 2023

 as asas dos anjos batem no ar como meu pai batia em minha mãe. enquanto digito, não penso, meus dedos flutuam, pressionam as letras, os anjos estão aí? não sei o que escrevo, mas escrevo. anjos, anjos, anjos. batam asas. estendo o pó branco na superfície lisa do meu celular, e com uma nota de um dólar mando tudo pro nariz. lembranças desse dólar: estava no walt disney world. sarah me contou que estava dormindo com outro. eu chorei no walt disney world. todos felizes, os funcionários felizes, meu deus, o dinheiro compra felicidade, é isso? quem não está feliz? quem ainda não está feliz? se não está, estará.um dólar: eu chorando no walt disney world. ketamina pra dentro walt whitman débil mental. ketamina pra dentro asas de um anjo brancas trip report, first key experience: 20:51, 15/01/2022 oi oi oi acetilcisteina os cavalos apareceram. eles estão em chamas. os cavaleiros do apocalipse. uma menininha de anime, de pernas abertas, a saia de colegial já foi despida, veste calcinha de gatinho todo dia calculo eu.



sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

NA BIBLIOTECA

O ventilador ligado soprava simplesmente um fiozinho de vento. Passei a mão em minha testa e tirei a franja da cara. Quando fui virar a página do livro, meu suor deixou o papel úmido. Eram dias quentes, e a temperatura ultrapassava os 40º.

O lugarzinho era simples, e apesar de tudo, bem asseado. Um funcionário gordo, vestido um terno enorme, passava o tempo todo junto de sua fiel vassoura, e garantia a limpeza das salas apertadas da biblioteca. E embora fosse pequena, seu  acervo era de excelente qualidade, como se um cuidadoso bibliotecário escolhesse a dedo os livros a serem comprados e oferecidos nas estantes. Passei a ir lá quase todos os dias, e com o tempo acabei fazendo amizade com o gordinho da vassoura. 

Era um sujeito tímido, que gaguejava ao falar. Antes não me dizia qualquer palavra fora o bom dia e boa tarde de cada dia, até que certa vez reclamei de que algum idiota deixara o Martin Fierro na seção das novelas, e ele achou muito engraçado. Desde então passamos a conversar durante os quinze minutos de intervalos que ele tirava para tomar um cafézinho ou comer barrinhas de cereais.

Certa vez apareci acompanhada da escritora Águeda Prazeres. Chegamos juntas e comprimentamos o funcionário, que não demorou a desaparecer e nos deixar sozinhas. Depois de vagarmos pelas seções e folhearmos alguns livros, paramos diante de uma estante repleta de velharias. Folhei um dos exemplares ao acaso e li um trecho que o antigo leitor destacou à caneta na página 56: 

"Os sonhos possuem uma razão. Essa é uma característica do mundo onírico que se deixa facilmente escapar. Muitas pessoas até imaginam que a razão está entorpecida ou mesmo suspensa durante o sono. Os estudos mais recentes, contudo, demonstram ocorrer exatamente o contrário, e que a razão, enquanto dormimos, está  na verdade mais ativa do que quando estamos acordados, e que todo sonho é engenho de alguma razão". 

Ela me perguntou que livro era esse e procurei as informações catalográficas nas primeiras páginas: "O mundo do sonho, Havelock Ellis. London, Bombay, Sydney, Constable and Company, 1922". 

Águeda Prazeres tirou o livro de minhas mãos, dizendo querer ver direito, mas eu tomei de volta. Ela me censurou com o olhar, e tentei me justificar: "Espere, espere, Águeda!", disse, e mostrei a primeira página, que deveria estar em branco. Lá, nas margens das páginas, estava escrito o seguinte: "A.B.H., 1938, B.A.". Ela pegou, leu, e disse que deveríamos investigar imediatamente. Sugeriu que eu procurasse pelos escritores publicados recentemente na cidade, que um deles poderia ser pseudônimo de Hunter. E que ela iria continuar a investigar a outra pista, um endereço encontrado na margem de um manuscrito que nos fez viajar para Buenos Aires. Achei que poderia até ser divertido, e aceitei a proposta. 

Depois, pairou entre nós um silêncio constrangedor. Ela sentou e comeu uma tapioca de queijo e orégano que trouxe na bolsa, e eu continuei a ler Euclides da Cunha. Em algum momento ela disse, querendo descontrair, que estava saindo com um tal de Oliverio: 

"Marcou de me encontrar em um restaurante caro, e ainda pagou por tudo. Se eu te falar o tipo, você nem acredita. Estava sentada na mesa, examinando o cardápio, quando vi ele chegar. Se apresentou e disse ser o Oliverio. Jantamos ostras e bebemos vinho deliciosos. E ele pagou tudo".

"Então qual é exatamente o problema?", perguntei, intrigada com a história.

"Bom, ele era... feio", murmurou Águeda, sôfrega.

"Ele era feio?", repeti, fingindo não entender. Ela não disse mais nada, abaixou o rosto e soltou um suspiro. 

"Era mais a sua postura. Andava praticamente cabisbaixo, como se assim pudesse esconder sua vergonha do mundo", disse querendo justificar-se:"E eu não preciso mais sair com um homem que não ache atraente, você sabe bem que não preciso mais disso na minha vida, Leila".

No início da frase Águeda soava como uma criancinha medrosa. Ao pronunciar meu nome, seu comportamento contudo era outro. Desferiu um súbito soco contra a mesa da biblioteca, e gritou de frustração. Suas pupilas se dilataram, e sua fronte ficou vermelha de raiva. 

"Acalme-se, Águeda. Está tudo bem!", disse, abraçando-a com ternura, mas isso não foi capaz de aplacar sua cólera. Me empurrou para longe dela e ficou andando de um lado para o outro, bufando.

O funcionário apareceu, a sua vassoura empunhada como arma. "O que aconteceu, o que aconteceu?", exclamava.

Me aproximei de Águeda e perguntei se ela estava bem. O funcionário ficou assistindo às duas, como quem não entende nada. Ela respirou fundo, disse que não era nada, mas lembrei do canivete com que matou Huckle. Olhei para o bolso de sua calça jeans e encontrei lá o contorno da arma.

"Precisam de alguma coisa?", perguntou o solícito funcionário.

"Vamos pegar uma águinha para Águeda", eu disse, e com ele fui até o bebedouro. Puxei um copo plástico e enchi de água gelada. Ele ficou do meu lado, observando. "Sua amiga está bem?", coitadinho, estava assustado. Eu disse que sim, meti a mão na bolsa, tirei de lá um frasquinho e pingue uma gota no copo. Ela tocou o líquido, que ficou avermelhado por alguns segundos, e depois perfeitamente transparente. Seria impossível Águeda perceber que a água estava envenenada. Para garantir, fui até a mesa em que ficava o café e coloquei uma colherada de açúcar.

"Para ela se acalmar", eu disse, como quem confidencia uma travessura.

O funcionário assistia de boca aberta, a vassoura apertada na mão direita, o semblante gordo perplexo. Não podia acreditar no que seus olhos viam. Aquela jovem de cabelos loiros, que ele sempre achou ser uma flor de menina, estava ali, bem na sua frente, colocando drogas ou seja lá o que fosse dentro da bebida de uma mulher. E o pior era o jeito desinibido com que fazia isso, como se ele não estivesse ali, assistindo a tudo, como se já tivesse feito isso milhares de vezes.

Dei um sorrisinho, e o funcionário sorriu de volta. O composto era uma mistura de clonazepam com um estrato de ópio que eu havia preparado na véspera. Uma dose mínima e seria mais que o suficiente para ela ficar nas nuvens. Menos de uma hora e ela estaria mansa como um gatinho.

Voltamos os dois juntos para perto de Águeda, que ao ver nos aproximávamos esfregou os olhos chorosos. "Cuidado, ela pode se tornar perigosa a qualquer momento", sussurrei para o funcionário, e ele assentiu, sério, apertou com força a vassoura, como se ela fosse a sua única esperança de sair vivo. 

"Tome, Águeda, beba um pouquinho de água com açúcar", eu disse.

"Obrigada, amiga", e bebeu tudo de uma vez. "Vou me sentar um pouquinho aqui, tudo bem?", e se dirigiu para a cama que havia no canto da biblioteca.

Ficamos eu e o funcionário sozinhos. Ele se ajeitou, esticou as costas e estufou o peito. Apoiado sobre sua vassoura como se fosse um cajado, me explicou, sem gaguejar, que havia um pouco de chá na copa, e que os novos frequentadores da Miguel Cané deveriam se submeter a um ritual de iniciação para que seguissem frequentando a biblioteca. 

"Como?", perguntei, incrédula.

"É só ir na minha sala", me disse, "tomar um cházinho comigo...".

Olhei para o homem, para seu tipo gordo e inofensivo, e achei que não seria muito cortês de minha rejeitar a um convite. Perguntei para Águeda se estava tudo bem e ela resmungou qualquer coisa, já deitada sonolenta na cama, se cobrindo com os velhos lençóis que fediam à armário velho, e senti repulsa por ver uma criatura tão limpa como Águeda deitada em algo assim.

O funcionário então me tomou pelo braço, disse "vamos" e me lavou na direção de uma salinha que eu nunca tinha entrado. "O que vamos beber?", perguntei, me fazendo de inocente, sorrindo. "Psilocybe recém-colhidos, que juntei a mel e limão na água quente dessa jarra", me respondeu, mostrando a garrafa de vidro debaixo da luz de um candelabro.  A cor era escura, de um azul quase negro. "Os torrões boiando na superfície parecem estrelas em meio a uma galáxia escura", ele disse. Fiz uma careta, aquilo era nojento. "Não se preocupe", se apressou a dizer, "eu mesmo que moí os cogumelos, são da melhor qualidade, posso lhe assegurar, senhorita". 

Me deu a xícara e começou a encher outra para ele. "Minha querida amiga, acaricie a delicadeza dessa porcenala chinesa". Sem jeito, passei o indicador em seus contornos. "Isso", disse, e suas palavras tremiam de deleite. "Sinta o seu calor, absorva o cheiro estranho que meu elixir exala". Ele meteu o dedo dentro da bebida e leva à boca:"O seu gosto ocre, prove de uma vez". Estava impaciente, queria que eu tomasse logo a bebida. Fiz o mesmo que ele, coloquei o dedo e pinguei algumas gotas na minha língua. Quase vomitei. O gosto era tão repulsivo quanto a aparência. 

Essa cerimônia não é como as outras", retornou o funcionário a explicar, enquanto bebia de sua xícara. "Essa cerimônia, senhorita, está perfeitamente integrada ao homem e ao seu ambiente... Digamos, é algo que irá nos permitirá viver naturalmente, realizar nossas pulsões mais secretas, e não segundo às espúrias necessidades inventadas por essa sociedade imunda, minha amiga". E fez um gesto na direção da porta, como se quisesse deixar bem claro que o mundo lá fora não merecia qualquer comiseração.

E parecia verdadeiramente feliz. Eu ainda estava me recuperando daquela simples gota de chá quando ele me disse, cheio de pressa, "Vamos, vamos! Não temos tanto tempo!", e começou a beber de uma vez a sua xícara de chá: "Pre-pre-pre-precisamos ter ter o pico-co antes do meu antes do meu chefe chegar, não posso da-dar pin-pinta", explicou, sorrindo, olhando para o chão. 

Prendi a respiração e virei aquele líquido fétido em minha garganta. Dei um, dois, três goles grandes e no quarto engasguei. A xícara caiu no chão, e a porcelana se partiu. O chá sujou todo o chão de mármore negro. "Não se preocupe, não se preocupe, minha amiga!", ele me disse, erguendo a vassoura ao ar, de prontidão: "Eu trato de limpar isso agora mesmo, pegue logo outra no armário, tem mais chá na garrafa", e passou a esfregar a sujeira. Peguei a outra xícara, e ainda tonta, me servi de mais um pouquinho. Saí da copa, pigarreando para tentar tirar aquele gosto de minha garganta, sentei em uma das mesas da biblioteca e fiquei assistindo Águeda dormir como um anjinho. Minha mão tremia, e dei mais um gole no chá. 

Dez minutos depois a xícara estava vazia. O funcionário se juntou a mim, mas ficou varrendo a poeira. "Você até hoje não me disse o seu nome", eu disse, assistindo ele varrer. "Meu nome é Jorge", e sem parar de varrer me estendeu a mão para que eu apertasse. 

Aquilo de alguma forma selaria o início de uma aliança sórdida, pensei: Ele acobertando os meus crimes, e eu os dele. Fiz questão de não olhar para seu rosto enquanto apertei desajeitadamente a sua mão. Era áspera, e me passou uma impressão de sujeira. Jorge rapidamente recolheu a sua mão, como se temesse meu toque, e passou a varrer com mais ânimo, forçando a vassoura contra o chão.

"Be-be-be-bem..." - o pobrezinho tremia - "be-bebem, se se me permite eu vou falar falar eu vou falar eu vou ler esse trechinhozinho que tenho aqui aqui no bolso, uma fá-fá-fábula...". Apoiou a vassoura na parede, retirou um caderno do bolso e passou a ler:

"O céu estava escuro e carregado. Refletia o humor sombrio da multidão reunida na pista de corrida. Para todos era apenas mais um dia divertido. Tomavam cerveja, faziam churrasco. Mas para um homem, era um dia triste. Tinha quinze anos e já era manco, sua perna torta e torcida, e tinha um único em mente: impressionar a todos que estavam assistindo à corrida. Mas enquanto os corredores se posicionavam na linha de largada, era evidente que ele não tinha a menor chance de vencer. Eram altos e fortes, suas carnes tingidas pelo sol e tonificadas pelos meses de treinamento. A arma foi disparada, e os corredores saíram correndo, deixando o manco para trás. Ele lutou para seguir em frente, sua perna arrastando-se atrás dele enquanto se arrastava pela pista. Elizabeth olhou-o com compaixão, seus olhos cheios de tristeza enquanto via lutar o coxo contra o próprio corpo.

A corrida estava chegando ao fim, era óbvio que o vencedor seria o homem bonito, alto e moreno que havia tomado a liderança logo no início. A multidão explodiu em vivas enquanto ele cruzava a linha de chegada, e ninguém prestou atenção no homem manco que havia chegado em último lugar. Até Elizabeth foi com eles.

Enquanto a multidão se dispersava e os corredores comemoravam suas vitórias, o manco se afastou, sua cabeça pendendo baixa em derrota".

Levantou a cabeça, e sem esboçar nenhuma reação, olhou para mim. "É sua?", perguntei, desconcertada. "É sim", ele me respondeu. Fechou o livro e me olhou mais uma vez, esperando algum comentário: "Você é escritora, não é?", me perguntou. Como ele sabia disso? Nunca contei para ele nada a respeito de mim. "Bem...", e eu não soube o que dizer, e disse que o texto era muito emotivo e profundo, e que fiquei realmente comovida com a sua crueldade. Ela pareceu ficar satisfeito com minhas palavras; Sentou na mesa, ao meu lado, e disse sorrindo que o chá já estava começando a bater, e que teríamos uma deliciosa tarde pela frente.

Ele se manteve sorrindo, ao meu lado, mas não falou nenhuma palavra. Constrangida, olhei para a parede e vi uma baratinha. Me levantei, pedindo licença, Peguei o livro que estava lendo mais cedo e, com um golpe certeiro, matei o inseto. Uma gosma verde ficou grudada na capa, bem em cima do retrato do autor.

"Você estava lendo a Euclides da Cunha", exclamou ele, encantado, observando a capa de Los Sertones. Expliquei que no Brasil trabalhei como editora de uma revista, e até que publiquei alguns contos naturalistas, mas que hoje havia desistido das palavras, que preferia trabalhar com música. Jorge me confessou ter escrito uma novela, ainda sem título, e que iria me dar os manuscritos para que pudesse opinar. Eu disse que tudo bem. Depois, me pediu para ouvir alguma canção de minha autoria, e à contragosto tirei uma fita-cassete da bolsa e coloquei no tocador da biblioteca. Depois de alguns segundos de estática, começou a tocar um violão velho e desafinado, em um ritmo que se mantinha o mesmo, sempre duas notas hipnoticamente alternadas entre o ruído abafado das cordas. Meus dedos se lembraram da sensação daquelas cordas, e das notas que entravam por dentro deles e corriam até alcançar os seus olhos. Cada som emitido vibrava aos meus nervos, e faziam o mundo ao meu redor estremecer. E passamos esses minutos que duraram mais que a eternidade assim, discutindo sobre os poucos escritores brasileiros que ele já ouvira falar, como Coelho Neto, Graça Aranha e Oliveira Viana, e censurei ele por nunca ter lido a Aluízio de Azevedo, à despeito do seu interesse pelo realismo. Em algum momento ocorreu algo estranho, tive uma alucinação, não sei, deve ter sido o alucinógeno. Nunca havia visto nada parecido. Tudo estava mais vívido, mais belo, grandioso e, às vezes, estranhamente melancólico, grotesco. Olhei para o rosto de Jorge e vi sua bochechona, as fissuras de sua pele, o bigode feito. Quantos anos devia ter esse homem? Trinta, quarenta, Cinquenta? A idade de meu pai. E era feio, coitado. O terno surrado, também, dois números acima, não ajudava. Olhei para seu rosto e ele olhou para o meu. Sua pele piscava em rosa, verde e amarelo. Enquanto Jorge abria e fechava a boca para falar palavras que eu sequer conseguir entender, pois falava muito rápido, e gaguejando mais do que nunca, seu queixo se liquifazia, e palavra por palavra era derramado no chão.

"Senhor...", me precipitei em sua direção, preocupada, mas com um movimento ele virou a cara e escondeu ela para o lado. Eu só queria ajudá-lo. "O que está acontecendo?", perguntei algumas vezes até que virasse para mim. "Seus olhos são lindos", me disse, comovido. Colocou a mão no meu joelho e apertou delicadamente.

Agora era eu que não tinha coragem de olhar para ele. Olhava para a parede velha de alvenaria, e atordoava sequer registrei o que me disse a seguir. "Obrigada", respondi baixinho, apenas para não parecer mal-educada.

"Posso lhe beijar, se-senhorita?", sussurrou no meu ouvido depois de alguns segundos.

Olhei então mais uma vez em seu rosto. Estava no lugar, e brilhava em cores estranhas, que lhe davam um aspecto fantasmagórico. Seus olhinhos desviaram ao sentir meu olhar. As pupílas eram do tamanho de bolinhas de gude, e muito escuras. Demorei alguns segundos sem responder, olhando aqueles olhos sombrios. Ele se aproximou de meu rosto e me deu alguns selinhos, a mão nervosamente apertando meu ombro. "Não!", eu exclamei, me afastando, e disse que não queria, que era comprometida, e que me desculpasse pela descortesia. Ele disse que quem tinha que se desculpar era ele, e ficou cabisbaixo, olhando para a gravata, e fingindo ajeitá-la, em silêncio.

"Acho que vou embora", eu disse por fim. Ele assentiu. Deu um sorrisinho amarelo e me acenou, me desejou boa tarde. Acordei Águeda, que ainda estava grogue, e disse que precisávamos ir embora. Ela assentiu, e fomos sem nos demorar mais tempo.







quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

RENÉ 3. JUNE 16.

I was alone seated on the rug. 

40 hours without sleeping but sleepless. 

Sometimes I feel like I’m not thinking. That I’m actually reading someone’s thoughts. Intracranial voices talking to myself. 

Who told me to do this? 

It was a normal day, like any other. My body hurts like it never hurt before. I fell to my knees and vomited blood. I looked down at my belly and realized that it had been pierced by a metal beam. 

Who wrote my throught? 

A memory floating in the air. Flapping and buzzing the memory entered my right ear. 

My dad didn't give me money to go to the arcade. I was starving to play Polybius

Polybius was a video game released in 1991 that had devastating effects on its players: there were many reports of insanity, stress, horrible nightmares, and at least eight suicides. Shortly after its release the game disappeared without a trace. 

I was addicted to video games. Spent hours in arcades. Just ten dollars was enough for me to play all week, with enough money left over for me to have lunch in the arcade canteen. 

Darkness. The sound of gunfire, of a violent and barbaric world. 

Les rideaux s'ouvrent: 

Huckle shares a slice of dessert with René Descartes in his bedroom. 

“Do you know, René, that it is scarcely more than eight or nine hundred years ago since the metaphysicians first consented to relieve the people of the singular fancy that there exist but two practicable roads to Truth? Believe it if you can! It appears, however, that long, long ago, in the night of Time, there lived a Turkish philosopher called Aries and surnamed Tottle .The fame of this great man depended mainly upon his demonstration that sneezing is a natural provision, by means of which over-profound thinkers are enabled to expel superfluous ideas through the nose; but he obtained a scarcely less valuable celebrity as the founder, or at all events as the principal propagator, of what was termed the deductive or à priori philosophy. He started with what he maintained to be axioms, or self-evident truths. 

René sniffs two white wings of angels:

“And the now well understood fact that no truths are self-evident, for sure! - really does not make in the slightest degree against his speculations!”, says René. “It was sufficient for his purpose that the truths in question were evident at all”. 

Huckle: “From axioms he proceeded, logically, to results. His most illustrious disciples were one Tuclid, a geometrician,” (he means Euclid) “and one Kant, a Dutchman, the originator of that species of Transcendentalism which, with the change merely of a C for a K, now bears his peculiar name”. 

René quickly sniffed another line. 

René was the first who conceived the possibility to rigorously delimit the principles necessary for the composition of an "ideal poem", which should be “an object supremeness, or perfection, at all points”, transforming what was once a function of "imagination and poetic intuition" into "pure and honest work of reason". His procédure: make not a perfect piece of thinking, a "philosophy": make an "argument plausible enough to be selled". 

René and Huckle opened a start-up named Sophistes to sell that "arguments" pour certains clients. 

René playing a piano, pressing keys like a autistic kid who doesn't know there is a proper way to play the piano, who doesn't know scales, chords, harmony, any kind of theory that goes beyond the relaxed and wild movement of the fingers. 

A guitar in the hands of Lacan, fingers wandering over the frets, looking for some melody that she remember hearing in a chocolate milk commercial. The room has no pictures, the walls are high and white. 

Hans M. with percussive instruments: xylophone, cymbals, nylon guitar, triangle, snare drum, bass drum, tambourine, maracas, gongs, chimes, celesta, and piano. 

Leila voice echoed by the stereo: “Este é o proêmio de meu poema, Canto Vesícula Biliar: Forma de pêra entre sete e dez centímetros escorre verde escuro excremento: espessura quinze mililitros, água e bicarbonato de sódio borbulhante, sais biliares, gorduras, tecidos, ácidos graxos, universo distante e imaginários de bioquímicas entidades que até poucos séculos não tinham nome: este poema entoa teu nome”. 

Hans goes out early. 

Marijuana smell in the air. 

René naked, lying on the rug and curled between a sheet. 

Leila in panties with a face that I couldn't tell if it was a face of innocence or cynicism.

Lacan is sleeping on my bed like a child. 

René sniffs the last line. 

Something even more unlikely happened that night, when it seemed that we had already exhausted all our probabilities. Huckle walks through the door, and all attention is turned to the sudden visitor. 

“Ink for weapons”, he says, smiling. 

“J'avais écrit un roman, lis le extrait: 

“A man chasing me down the street. Under his coat he has a gun. Who are they? What do they want? A red scarf. I got distracted and lost track of my motorcycle. Flies through the window of a department store, my body against mannequins, bookshelves and women's shoe boxes... Helmet broken, brow bleeding, a huge pain. Tried the first step, dizziness almost knock me over... After a few moments to regain the lucidity of my senses, I saw the motorcycle passing through a metal shelf, the books scattered on the floor, the front wheel spinning in the air. Alone in the library, myself. Silence, the book opened, and sang the anguish chaotic character of the universe. Infinity of thought, I thought, but impossibility of action. Nevertheless, the irrefutable passion of thinking. The list of books: Siller Dawn Sailors, by Leopoldo Luganes, translation by Emerson Shakespeare: "On that night a hundred galleys with five thousand sailors on board, sailed up to a island near Rio de Janeiro. Having dropped anchor at daybreak, they effected a disembarkation with secrecy and despatch; then they formed in the order customary in their country, and advanced in their several companies against the Tapuas lines. These last were overwhelmed with astonishment by the unexpected disaster: May Tapuia teach all the world not to calculate on the future as though it were the actually existent, and not to reckon securely on what may still turn out quite otherwise, but to allow a certain margin to be unexpected. And as this is true everywhere and to every human, so is it especially true in war". The Banquet, by Plato, translation by Donald Schüler: "Socrates unveils what is the correct opinion: how it differs from the false", writes Luzia Colina Verde in the preface. The key to alchemy, by Paracelsus: "It is convenient for you to know in advance that all diseases universally have five different and fundamental types of treatments. The treatments will easily lead us to discover the origin of diseases (ex-juvantibus). Five arts or five faculties of understanding. One knowledge branches into another, and the divisions of the being can be easily reassigned, even if the truth is not known". The ---- of Reality, by Allan B. Hunter, translation by Mariah Duchamp: "The philosophy is frankly evolutionist in believing that there is superiority in European cultural practices, including European intellectual habits, which they simply are made to think about a better world than us. Not to forget that not only artists and intellectuals, but any scribe in general, dedicate themselves to the creative leisure of writing and writing. To write is to create, without the need for any truth in its production, because truth is not a form of text. In writing, truth does not participate: even if it did, it would be the truth as stated in a given space-time. At the limit: the truth will be ideology. So what to do with the truth? The philosopher, who read the great names of truth, who so carefully write the finest weave of the real, redistributing the words and reconstructing their games of difference. There is an experience of profound mystique among those who manipulate and play with the word. Love, yes, it is true, but their costly activity indicates a dangerous lack: Either they write, or they work. Do not forget that such genres of development are the result of a series of violence exerted not only on the language, but on the subject's body. Consciousness is not angelic like Descartes' one; consciousness has a demonic quality. If there is power in the language, power also is paralinguistic: organizes not only discursive practices that take place in historical time, but bodies and places that exist in the space of the world". Communist Manifesto, by Marx & Engels, translation by Sue Tomazini: "Communists work everywhere for the union and understanding of democratic parties in all countries. Communism also offers the consensus and dialogue of liberals. Communists, however, refuse to conceal their views and purposes. they openly proclaim that their goals can only be achieved by the violent overthrow of every past social order. Let the ruling classes tremble at the idea of ​​a communist revolution. The proletarians have nothing to lose, except their shackles". A Fragment to Another, loving dialogue between the characters Fragment and Another, by Alexandrinos Heraclitorius, translation by Urbano Grosso: "It seems to me that photography is closer to the pure image than cinema. In fact, and this is not necessarily a defect, movement, sound, perfume, meaning are removed from the object, in photographic form. The image lies at the term of this indefinite subtraction. The image is only possible through this deep meditation on nothingness". The romantic sect of concessions, psychological novel by Sérgio Buarque de H (no description). If time were an oyster, by Johanis Gabrielis: "Loved his poems so much and fell madly in love. He willingly surrendered his masculine portion to the lover; felt like he was committing a kind of dishonor against his wife, against his family, against good morals, against god, against humanity. And the degenerate was so delicious or more delicious than the most beautiful and perfect angel body. The reserved and radiant meteor, the scandals, the adultery trips, the shooting that the pederast gave his lover, the things they did in the dead of night, drunk between sleep and alcohol, they pretended not to remember anything... I looked down at my belly and realized that it had been pierced by a metal beam. Who wrote my fate?”

“Swap ink for weapons”, Huckle says, smiling, through his long beard, calmly like the leader of a terrorist sect. They wake up Lacan and explain what they are going to mettre une bombe dans la boîte aux lettres d'un entrepreneur d'art. René-Emerson goes to the hand mirror where we were snorting cocaine and licks its surface in search of any trace of that sacred powder. 

“Isn't there another more practical and cheaper way to get money from them?” says René. 

“There 's no way”, Huckle replies. “Are you in?”

“Yes”, he says.

They go around whispering things to each other. Silence when they finally go out. 

Later. René starving to play Polybius. 

“I could take the money from his wallet while he is sleeping”, René thought. 

He slowly opens the door to his parents' room. A muffled voice enter the hallway and reach the ears: 

“The sailors playing!, all birds fly and I say stoooop!” 

Mr. Descartes puts his hand in front of his lips and subtly stops talking, making an angry face to the mirror. 

“Ssshhhh”, the hands cutting the red lips: “And washing up dishes... they called it on the pier!” 

In front of the mirror wearing a feathered dress, sheer enough that René could see her nipples through the red fabric, talking to himself, his painted lips reflected in the mirror, his opera singer's melodramatic gaze, like a maniac about to kill a president or a child arguing with an imaginary friend, like a cheap cabaret actress wearing his mom lingeries. 

“The sentry in front of the governor's house…”, he goes on…

René closes the door before being noticed.

ai, minha fama de maldito, 2

O after na casa de Pedro Fernandes estava uma bosta. Gente fumando maconha pelos cantos e fazendo aquela média com todo mundo. Artifício emo...