domingo, 12 de março de 2023

O CONTRATO

Na última sessão minha analista respeitosamente pediu para que não voltasse a lhe enviar mensagens durante a madrugada, e me explicou que nossa relação se limitava ao espaço restrito de seu consultório. O consultório era agradável, a tintura era branca, mas não daquele branco hospitalar capaz de perturbar os sentidos da criatura mais sã. Sentávamos de frente um para o outro, ela em uma poltrona, os cotovelos apoiados nos braços da cadeira, eu confortavelmente deitado no sofá, os pés descalços sobre o estofado fofo e a cabeça repousando em almofadas. 

Nesse dia, contudo, estava deitado, de frente para ela, mas a vergonha não permitia lhe encarar os olhos. "Meu tempo, como você muito bem sabe, custa a hora", disse pausadamente, como se desejasse que eu compreendesse cada sílaba.  "Nossa relação é estritamente profissional, e cada instante gasto com você deve estar traduzido por essa fórmula bastante objetiva que transforma a abstração do amor, a duração incalculável da atenção e do afeto, na cifra quantificável do dinheiro". Ela concluiu e olhou diretamente em meus olhos, aquele olhar lacônico de quem não deseja expressar coisa alguma, nem mesmo indiferença. Sustentei o olhar, o rosto queimando de vergonha, e balancei vagamente a cabeça, acatando suas palavras. "Que bom que estamos entendidos", ela disse sem alterar a expressão, mas senti que seus lábios finos, talvez o jeito com que pronunciou essa frase, ocultava alguma forma de júbilo, um prazer secreto em me repelir e me colocar no meu devido lugar. 

O resto da sessão ocorreu comigo remoendo alguns temas de sempre, as dificuldades de me relacionar com meu pai, a falta de dinheiro e perspectiva de futuro, minha esposa que me abandonou e levou nossa filha, etc. Ela disse que nosso tempo chegara ao fim, nos despedimos com um abraço breve, desconfortável, e assim que coloquei os pés do lado de fora do consultório e ela fechou a porta atrás de mim, sozinho, naquele corredor enorme de prédio comercial, fui atormentado pela vergonha e pela culpa. Quando passava pela roleta do metrô, a vergonha e a culpa haviam se transformado em rancor, e disse para mim mesmo que não precisava dela, que poderia simplesmente pagar uma outra analista. Ela é quem precisa de mim. Sou eu que tenho o dinheiro. Ela quem deve me obedecer, como uma cadelinha grata por receber a ração. Quero ver se não volta correndo para mim, o rabinho entre as pernas, assim que eu ameaçar enfiar meu dinheiro em outro lugar que não na sua conta bancária. 

Foi nesse estado de espírito que cheguei em casa. Entrei e me deparei com a sala quase vazia, apenas uma cadeira e uma televisão pequena, que costumava ficar no meu quarto. Minha esposa foi embora e levou quase tudo, mas não pude fazer nada, já que de fato quase toda a mobília era dela. 

Não dormia há mais de trinta horas, mas não me sentia pronto a deitar na cama e lutar com meus pensamentos até fazê-los ceder ao esgotamento e desligar. Liguei a televisão e fiquei mexendo no celular, sem dar atenção para o que passava. Inquieto, levantei e decidi tomar um pouco de morfina. Engoli quatro comprimidos sem água e senti-los atravessar minha garganta foi o suficiente para me acalmar um pouco. Deitei na minha cama e voltei a mexer em meu celular, mesmo que já tivesse visto todas mensagens e notificações no trajeto de volta para casa. Resolvi tentar dormir, ansioso por descanso, mas a tranquilidade que os comprimidos me deram foi subitamente arrancada por conta desse contato tão próximo aos pensamentos, e passei mais de meia hora virando de um lado para o outro, esperando os efeitos da morfina como quem espera a chegada de um messias que não vinha. Enquanto meu sistema circulatório entregava as substâncias químicas para meu sistema nervoso, o cérebro, ansiosamente produzia a mais variada torrente de imagens e ideias, amalgamando fatos e devaneios que a princípio não teriam nada a ver com o outro. Não suportava mais esse tormento, e depois de muito pensamento concluí que não desejava ficar em casa. Cheirei cocaína para tentar equilibrar o efeito da morfina, que deveria chegar em breve, bebi uma dose de cachaça pelo vício, e saí de casa.

Sob o sol do fim de tarde, andei de mãos dadas com Justina. Passeamos pelo parque e fizemos piada com os enormes gansos que trepavam graciosamente na beira do lago. Paramos diante do poente refletido na água e nos olhamos, os granidos animais ao fundo. Ela sorria, radiante. Desviei meu olhar e ensaiei uma expressão de dor. "Infelizmente preciso ir embora", disse num sussurro. Justina não alterou a expressão, mas agora seu sorriso era triste. Mordeu o lábio e fez carinha de criança que a mãe mandou ir dormir. Nos beijamos apaixonadamente. Quando nos desvencilhamos me pareceu cortês dizer que pediria um táxi para ela.

Alguns veículos passaram direto, até que um finalmente parou ao meu sinal. Abri a porta com um gesto estúpido e cavalheiresco. Enquanto Justina entrava, eu disse até logo, e ela me mandou um beijo com seus lábios ainda úmidos.

Fui andando até chegar em um bar desses cheios de pessoas com grana e descoladas. Entrei no banheiro, abri a carteira e cheirei um pouco de quetamina. Meu nariz estava ardendo. Passei em frente ao barman, que conhecia, e disse que estava cheirando quetamina, que se ele quisesse um pouco era só pedir. Ele agradeceu, mas disse que estava trabalhando, e foi atender a uma mulher que queria um cosmopolitan. Odeio esse mundo da coquetelaria. Prefiro cachaça pura, botecos baratos em que a sujeira se acumula e que não podemos frequentar sem a suspeita de sentirmos nojo. Detesto coisa de gente rica e fresca. Tudo limpinho, as mulheres com roupas caríssimas, maquiagens, os homens vestidos que nem bichas, encenando os papéis prescritos pela sociedade. Ai, eu quero uma caipirinha de caju, por favor. Eu vou querer um negroni, por favor, seu barman. Um martini seco, ai, que delícia. O caralho a quatro, vão se foder vocês todos. Fui até o boteco que havia ao lado e pedi uma dose de fogo paulista. Bebi quase tudo em uma golada só, e minha garganta ficou ardendo.

Por que tinha falado com ele que estava drogado? Por que sinto necessidade de explicitar minha dependência química? Por que ainda continuo a fazer essas coisas, a passar vergonha na frente das pessoas que mal conheço, e que no entanto, mesmo assim, são as que mais me humilham? Não sei o que deu em mim, e quando percebi estava mais uma vez convidando o barman para cheirar no banheiro. Por que fiquei tão decepcionado por ter recebido outro não? Por que queria afinal o sim? Tudo bem, se não quer cheirar, não cheira. Eu cheiro porque eu quero, porque não me importo em viver essa vidinha de merda. Fique fazendo seu trabalho de merda, servindo a esse bando de burguês desgraçado, lambendo as bolas da boa sociedade. Seja a putinha deles, venda seu sorriso, seus braços, seu corpo, sua alma. Ai, este drink aqui está uma delícia, tome essa gorjetinha, o meu muito obrigado. Ai, caprichou nesse aqui, heim? E tudo que consegue esperar é trepar no fim do dia com um cliente mais solicito, torcendo para que ele pague o táxi em que você voltará para o seu quarto de pensão em um subúrbio nojento. 

Estava cansado, com sono, a maldita morfina amolecendo meu corpo, mas a quetamina me deu forças para permanecer acordado. Me encostei na parede, buscando me equilibrar. Preciso colocar o despertador para nove horas da manhã, combinei com o funcionário da imobiliária de encontrá-lo às onze horas.. estava em processo de mudança. Briguei com minha esposa, decidimos cada um viver do seu lado. Ela foi morar com a mãe, no interior do estado, e levou nossa filha. Eu resolvi ficar, arranjei um emprego novo em uma empresa de controle de pragas. Até que gostava de viver na cidade, mas a casinha que alugávamos era grande e cara demais para pagar sozinho. Faz algumas semanas que estou pesquisando quitinetes da região. Amanhã visitarei mais quatro. Por isso preciso acordar cedo, na hora certa. Ter meu tempo de tomar café da manhã e ir caminhando  ao local de meu destino. Espero amanhã conhecer minha nova casa.

Uma mulher se aproximou de mim. Cabelos cacheados , decote, saia curta, sem sutiã, tatuagem em um dos braços. Vira pra mim e pergunta se tenho isqueiro. Meto a mão no bolso e tiro de lá um isqueiro daqueles grandes e com o desenho de um cavalo. Acendi a chama e perguntei seu nome. "Catarina", ela respondeu. Era gorda, sua bunda era gostosa. Descobri que trabalhava como tradutora, discutimos sobre literatura e sem surpresa descobri que era estúpida e que seu gosto era tão deprimente quanto o de qualquer pessoa que eu esperaria conhecer em um lugar daqueles. Depois começamos a discutir ao reality show que estava passando na televisão e que eu fingia sem dificuldades conhecer (esses programas são todos iguais). Se juntaram mais dois amigos dela, e passaram a desfilar um festival de comentários imbecis. Crianças de dois ano e meio possuem não subjetividade. Prefiro manga, eu prefiro melão. Eu acredito em alma. Aquele garçom era gostoso, aquela moça eu deixava até bater em mim. Feminismo. Meu mapa astral é cheio de escorpião e peixes. Experiências paranormais. Etc. 

Depois de umas duas horas fomos foder no apartamento dela. Tirava a roupa de Catarina pensando em Deusa. Deusa pelada, sem roupa. "Você me sexualiza, me objetifica?", perguntou. Me joguei a seus pés e comecei a lamber as solas de seus sapatos. A erosão provocada pelo contato entre a sola e o chão áspero fez com que ficasse irregular e recoberto de poeira. Passava a língua nas rachaduras de suas sandálias e me sentia como um cão beagle bem-educado decifrando as notas aromáticas de um cheiro gostoso de um delicioso almoço sendo preparado, e pensava, cada listra tem sua história, cada inexplicável espiral que sinto com a língua um inimitável acidente provocado pela natureza, Deus acéfalo esculpindo sua obra de arte com desleixo, os defeitos congênitos e aleatórios, órgãos deformados, o desenho estupendo das cordilheiras e dos morros que recobrem a costa... Ninguém escreveu aquelas marcas que sentia com a ponta de minha língua, mas elas estavam ali. Fui subindo pelas panturrilhas, pelas canelas, e babei especialmente a dobradura do joelho, e quando estava prestes a tocar em sua buceta ela me repeliu e sorrindo balançou o indicador e disse que não. Quando despi o seio de Catarina, mamei nele, pensando que era o de Deusa. Ela gemeu, como se fosse Deusa. Tudo que fez, a forma com que se entregou, o guincho que emitiu, era exatamente como Deusa faria. 

Terminamos de foder. Catarina vestiu a calcinha. Ficamos deitados um ao lado do outro, fitando o nada, em silêncio. Ela acendeu um cigarro e fumou. Peguei o celular e fiquei mexendo. Disse que iria embora. Ela disse que se eu quisesse poderia dormir com ela, que no dia seguinte comeríamos um delicioso café da manhã, ovo mexido, frutas diversas, granola, iogurte natural, suco de framboesa, café feito na hora. Eu agredeci, mas disse que não poderia, pois tinha compromisso na manhã seguinte. Desci e entrei em um moto táxi. Ele me disse para vestir o capacete, deu a partida e fomos para meu destino.

"Você mora onde?", perguntei.

"Por aqui mesmo", ele respondeu.

"Ah".

"Mas morava em Mesquita, minha família é da baixada".

"A minha também. Morava do lado, em Edson Passos".

"A família é de lá?"

"É sim".

Em algum momento a moto ficou tão rápida que não conseguia mais entender o que ele falava. Minhas mãos apertavam com força as alças da moto. Senti vontade de apertar-lhe a cintura com força, mas me controlei. Ao invés disso, fiz ainda mais força na barra de ferro da moto. Quando dei por mim, estava fechando meus joelhos contra suas ancas, para com as pernas agarrar-lhe e me sentir mais segura. 

Ele não parou de falar, mas não entendia o que estava me dizendo. Séries de palavras, histórias inteiras, mas o vento abafava sua voz. Em meu ouvido só chegava aquele ruído incompreensível, grunhidos encadeados em um ritmo agradável, mas que não podia entender o sentido. No máximo, uma palavra ou outro. Ainda assim, eu assentia, exclamava, fazia de claque, e se meu instinto dizia que era o necessário, até respondia alguma coisa, na esperança dele também não compreender. 

A moto cortava a noite quente, me enchendo com uma felicidade que lembro de ter experimentado certa vez que andei de montanha russa em um parque itinerante. Estava com tesão. Fiquei pensando em Deusa, em como seria prazeroso retirar toda a sua roupa e lamber cada parte de sua anatomia. Cada partezinha, cada uma com seu nomezinho, pois gostava de saber onde estava colocando a língua. passava horas estudando manuais de anatomia, pelo simples prazer de dizer, em tom de quem sabe, por exemplo, tibiofemoral lateral, e em seguida sentir a protuberância característica do músculo. Cada músculo, cada órgão, cada osso, cada parte era única. Cada pele tinha seu toque, e como era precioso gastar meu tempo verificando sua particularidade com a língua. Será que Deusa me deseja? Sei que desejo ela, mas não sei se é recíproco. Não tenho coragem de falar nada, somente imagino ela aberta em minha cama, os olhos fechados, deixando minha língua brincar no seu corpo. O motoqueiro passou por cima de um buraco e fechei com mais força as pernas no seu corpo teso. Gritei para que pudesse me ouvir e disse que morava na próxima direita. Ele parou bem na frente do meu apartamento, e desci desajeitadamente.

Ele tirou o capacete e ficou de pé, parado ao meu lado. 

"Aquela mãe adotiva que eu estava falando", ele me disse, "foi quem me ajudou a pagar, minha mãe mesmo não me deu um tostão".

Não fazia a menor ideia do que falava, mas assenti, e quando reparei, o motoqueiro estava com lágrimas nos olhos.

"Para qualquer um que precisasse", ele me disse, "minha mãe fazia... Estava com fome? Ela dava pão, servia almoço como se fosse da família. Estava desempregado e precisava de dinheiro? Ela emprestava. Separou da esposa? Pode ficar uns dias em nossa casa, até você se ajeitar. Minha mãe fazia o melhor que ela podia, não importava para quem".

Estava com sono, que horas eram? Resmunguei alguma coisa, em tom melancólico. Será que interrompo essa conversa? Estou morrendo vontade de chegar em casa e masturbar. E depois apagar. Que cansaço. Por que então estou de papo furado com esse senhor? E o senhor continuou falando:

"Ela era tão boa, a minha mãe". 

"Uma santa", eu disse vagamente.  

Ele arregalou os olhos.

"Aí é que tá", disse, e colocou a mão no meu ombro. "Aí é que tá", repetiu. "Imagine uma pessoa tão boa, mas que trata você que nem lixo? Ela me batia muito, filho. Quando ficava com raiva, descontava na gente. Não tenho filhos, não sei porque, só não aconteceu, mas meus irmãos têm, e eu digo para eles não serem como mamãe".

"Deve ter sido dificil, disse depois de um tempo".

"Foi", ele respondeu, "mas tinha também minha mãe adotiva".

"Ah, sim".

"Foi como foi".

"E hoje você e sua mãe?"

"A de sangue?"

"Sim".

"Está morta".

"Ah".

"Câncer, uns cinco anos atrás".

"Meus sentimentos".

"Não, tudo bem".

"E a relação de vocês nunca melhorou?"

"Ela continuou a ser assim comigo a vida toda. Sofri muito com isso. Você está condenado pelo sangue a viver com uma pessoa que parece te odiar. E uma pessoa que você ama, que você aprendeu a amar. Sofri muito. E precisei ler muito para conseguir entender isso. Como ela poderia me odiar assim? Eu nunca fiz nada para ela. Ao contrário, eu era um filho bom. Cuidava dela. Quando tive idade, comecei a trabalhar e ajudar ela com os meus irmãos. Nunca entendi isso, eu era o melhor filho, e mesmo assim era o mais judiado. Sofri muito, filho, sofri muito. Passei tanto tempo pensando nisso. Estudei a Bíblia, Alan Kardec, Chico Xavier, li muitos livros, pensei a fundo a questão. Foi minha irmã que veio com a resposta, tão simples. Eu tinha quase trinta anos já. Era aniversário de, se bem me lembro, cinquenta e dois anos de minha mãe. Festinha simples. Ela havia feito uma grosseria comigo e com meus irmãos, que organizamos toda a festa. Comigo principalmente. Eu fui na rua para chorar. Minha irmã depois foi atrás. Me disse para não culpá-la. Que havia entendido. Enfim havia entendido. Meu irmão, ela me disse, acho que ela foi nossa filha em outras vidas, Engoli um seco. As lágrimas vieram com força. Não consegui disfarçar, minha irmã nunca tinha me visto chorar assim, depois de velho. Realmente fiquei em prantos. O que foi, irmãozinho?, ela perguntava, desesperada. Nada, eu respondia. Me fale, me fale, exigiu. Tudo bem..., eu disse, e baixinho, como se não quisesse ser ouvido, disse que eu devo ter feito minha filha sofrer tanto na outra vida, para que ela reencarnasse assim, com tanto ódio. A culpa era minha".

Ficamos eu e o motoqueiro em silêncio até que enunciou que precisava ir. Apertamos as mãos rapidamente. 

"Você é um cara inteligente", me disse enquanto colocava o capacete. Eu sorri e disse que aprendi muitas coisas com ele. Segurou o capacete embaixo dos braços e me olhou nos olhos, um olhar profundo e aterrador:

"Descubra o que faz os outros felizes, e use isso para controlá-los, filho".

Estremeci. Essas palavras banais pareciam ter provocado alguma reação química em meu corpo. Senti a inebriante sensação de euforia que descobri ao cheirar cocaína pela primeira vez. Ele sorriu, um sorriso macabro. Abriu o bagageiro da sua moto e retirou de lá um pergaminho e uma pena.

"Você sabe o que deve", me disse.

Peguei a pena, furei a ponta de meu dedo com uma faca e, com meu sangue, assinei meu nome no contrato. Ele guardou o pergaminho, vestiu o capacete, e subiu na moto. 

"Até, filho. Se cuida".

Partiu para o meio da noite. Subi as escadas, sentindo o corte em meu braço arder. Tirei os sapatos, deitei na cama, todo vestido, e antes que me desse conta, dormi.


quarta-feira, 8 de março de 2023

COSTA LIMA

Acordou por conta de pesadelos. Da terra ignota do inconsciente, pensamentos extravagantes invadiam sua cabeça. 

Esses pensamentos eram muitos, e se anotados, poderiam encher todo um romance. A sua situação desordenada, resultado do acúmulo e superposição dessas impressões caleidoscópicas, contudo, fazia com que Costa Lima não conseguisse conceber com clareza qualquer um deles, imaginem então se seria capazes de anotá-los. 

Se conseguisse pensar adequadamente, Costa Lima teria concebido o conceito de ruído branco para descrever aquela sinfonia atônica regida pelo seu inconsciente. E como não conseguia pensar, tudo que pode fazer, depois de tentar dormir por alguns minutos, foi sentar em sua cama de solteiro e acender a vela que havia na mesinha ao lado da cama. "Quase no fim, preciso arranjar outra", ele disse em voz alta, para si mesmo, e ficou feliz em reconhecer o tom grave de sua voz.

A chama iluminou o cubículo em que era condenado a viver. Um retângulo apertado, de quinze metros quadrados, construído com paredes de alvenarias, a tinta branca toda descascada. Numa das paredes, uma abertura no tijolo deixava à vista um cano d'água vermelho e enferrujado (sempre que davam descarga Costa Lima ouvia a água escorrer pelo metal). Na outra parede, acima de sua cabeceira, havia um retrato de Alfredo de Roterdão pintado com carvão. Haviam duas únicas passagens, a pesada porta feita de ferro e vidro que abria para o corredor do prédio, e a que levava ao lavabo, que se resumia ao espaço suficiente para o sanitário. O chuveiro, por falta de espaço, ficava bem cima da latrina, e Costa Lima adiava constantemente seus banhos pois a água sempre escorria para o seu quarto, molhando todo o piso.

"Mais uma madrugada sozinho nesse quarto que o destino cuidadosamente esculpiu para mim no fim do terceiro mundo...", disse mais uma vez para si mesmo, em voz empostada, como se falasse para um público imaginário. Respirou fundo, melancólico, mas não se permitiu ficar ali, definhando em sua cama. Estava cansado de não fazer nada. Passara a última semana deitado em seu catre, ou então sentado em sua mesa do computador, gastando seu tempo de maneiras esdrúxulas e que sua psicoterapeuta condenava mordazmente. "Estou deprimido, doutora", ele se justificava, mas para a Doutora Clara aquilo não passava de um teatrinho encenado por seu paciente. "Já te prescrevi uma dose ainda mais forte de medicamento, Costa Lima", ela lhe disse na última consulta, em tom severo. "Mas doutora, acho que não está funcionando", ele respondeu, timidamente. 

A doutora revirou os olhos, impaciente. "Olhe", disse para seu cliente, "você já está no controle dos seus fluxos neurológicos, você já pode remodelar como quiser a direção das suas pulsões... Começo a desconfiar que você simplesmente deseja, Costa Lima, viver a sua vida assim"...

Costa Lima esfregou os olhos e, num inesperado gesto decidido, pegou a vela e levantou-se da cama. Quando colocou os pés descalços no chão sentiu o toque da água gelada, mas, indiferente, foi até o baú e, com a luz da vela iluminando seu interior, procurou algo para ler. Depois de mexer e remexer em alguns livros, tirou de lá uma revista vela, amarelada, a capa quase soltando.

Revista Brazileira, leu na capa gasta. Foto de uma mulher de óculos e jaleco. Os peitos eram grandes, os mamilos eram rosados. Um pequeno segmento de sua púbis, um emaranhado de pelos negros, podia ser visto. Ao lado, a chamada para uma matéria: "AS NOVAS DOENÇAS DOS PRÓXIMOS ANOS". 

Quanto pagou nisso? Tenta lembrar, mas não consegue. Barato, provavelmente muito barato. Abre o artigo em questão, e pula direto para um subtítulo, "A loucura epidêmica". Demora quase duas horas lendo cerca de vinte páginas em que se descrevia os efeitos de uma psicose sistemática progressiva desencadeada experimentalmente em uma população de uma ilha no pacífico sul. O estudo fora conduzido por uma junta de engenheiros, que segundo a matéria, ficaram todos muito "satisfeitos com os resultados produzidos na fisionomia física e moral daquela gente". 

"Que estupidez", pensou Costa Lima, "amostragem ridícula, nem dez mil habitantes, mas fazem essas matérias chamativas, caminhões de dinheiro para fingir que fazem pesquisas sérias... Idiotas... Os detritos subconscientes da antiga cultura com certeza estão armazenados no hipotálamo desse povo... Melhor seria extraí-los, acessarmos o coeficiente diferencial de sua consciência, para entender as leis de disseminação da doença a partir desse prisma deformante da realidade, e não simplesmente tratá-los como amostra representativa da humanidade..."

Essa pesquisa, Costa Lima descobriu, havia sido patrocinada por uma instituição filantrópica associada a uma enorme empresa do ramo farmacêutico, que no início desse ano havia comprado a compra de sua última concorrente. A compra da RazioTec, mais tradicional empresa do ramo, pela razoavelmente novata Sanitas (fundada a menos de trinta anos por um conglomerado de bancos), não deixou de causar espanto da opinião pública. Pessoas  que acompanhavam com afinco tais assuntos, contudo, não deixaram de perceber que a compra tratava-se de simples realização de uma óbvia profecia. 

Desde que a Sanitas desenvolveu um procedimento capaz de remodelar as partes do cérebro, seus negócios cresceram vertiginosamente. Seu método, guardado à sete chaves, não era rudimentar como aqueles oferecidos pelas concorrentes. A

A tecnologia antes disponível já tornara possível a intervenção no córtex cerebral, anatomia do cérebro que acreditavam responsável pelo pensamento consciente. As tentativas de reprogramação, contudo, só se tornaram sérias quando se esclareceu que uma pequena porção do córtex cerebral, conhecido entre os cientistas como córtex pré-frontal ventromedial, poderia estar associado com o que se chamava de inconsciente, o que pareceu se encaixar com as teorias dos filósofos da mente. As tentativas de intervenção química, contudo, foram todas frustradas, pois nenhuma conseguia dar controle ao experimento: vez ou outra, de fato, algo ocorria, e o paciente passava a agir de maneiras distintas. Pessoas furiosas, conhecidas pelo seu mal humor, depois da intervenção, tornavam-se surpreendentemente cordiais, alegres. O contrário, contudo, também poderia ocorrer, e um homem perfeitamente normal e adequado ao convívio social poderia sair da máquina com o gênio perverso de um psicopata.

O resultado da pesquisa decepcionou os investidores da Sanitas, que tinham ganas de o mais breve possível vender o revolucionário tratamento de reprogramação do consciente em todas as suas clínicas e sanatórios. A junta de médicos e pesquisadores pediu mais tempo, o que causou impaciência aos diretores da empresa. Um importante bloco dentro da diretoria, liderado pelo influente Dali, começava a movimentar entre os demais diretores a opinião de que os gastos com o desenvolvimento dessa máquina já haviam passado há muito dos justificáveis, e que mais valia colocar os trilhões gastos dessa empreitada inútil em uma mais frutífera. Outro bloco, contudo, acreditava que não poderiam parar ali, justamente por conta do enorme montante de dinheiro já gasto no projeto. Liderados por Lucíola, esse partido acreditava nos esforços do Doutor Fréderik, a cabeça por trás do experimento. 

Foi só depois de muitas sessões e deliberações parciais que um homenzinho baixinho e corcunda, um dos sócios menores, propôs uma solução que agradou a todos, ou pelo menos levou a um acordo parcial. Esse homenzinho, de nome Bartebly, era pouco estimado pelos demais. Não só por ser um sócio menor (sua cota na empresa era somente 1,4%), mas por conta de hábito recluso e de poucos amigos. De jeito calado, não parecia fazer questão de agradar ninguém. Quase não falava nos corredores, não pedia aos superiores para que realizasse favores e tarefas extras. Nas reuniões, nos raros momentos em que falava, era sempre muito breve. O tom seco e eloquente com que entregava suas opiniões era para muitos indícios de aristocrática arrogância, e era só falar para que muitos revirassem os olhos

Naquela tarde, contudo, o que sugeriu impressionou a todos, e até seus detratores tiveram que transigir quando viram que os sócios superiores haviam acolhido a ideia com bons olhos.

O que Bartebly propôs foi o seguinte:

"Vejam bem, cavalheiros: Nossa máquina é capaz de efetivamente transformar o pensamento e comportamento de nossos pacientes. O problema, como informam nossos pesquisadores, é que essa transformação não pode ser controlada efetivamente: que os caracteres deformados e adquiridos durante o procedimento são aleatórios. O doutor Fréderik me disse faza alguns dias que a esse inestimável coeficiente de caos, os cientistas estão tratando pelo nome de "efeito borboleta". Recebi aquilo com agrado, pois me pareceu espirituosa a imagem delicada de um bater de asas de multicolorido inseto para sugerir a lei aleatória que rege desde a dispersão dos terremotos até a deformações dos órgãos do corpo. Fui para a minha casa, depois fiz ginástica, comecei a fazer ginástica na semanada passada, preciso perder um pouco de peso. Enfim, isso não importa. Estava fazendo exercício no aparelho quando lá fora, atrás do vidro, vi voar uma borboleta e tive uma ideia".

Naquele dia, pensou Lucíola, Bartebly estava se alongando demais. E não era somente ela que percebia isso. O contraste entre o hábito discursivo breve e direto de Bartebly chamara a atenção de todos. Uma sócia, Átropos, disse em tom de deboche: "Quasimodo, sua fala é rouca, gutural e ininteligível". Alguns deram risinhos, mas Dom Isidoro, um dos sócios majoritários, fez um gesto e todos imediatamente se calaram. Vermelho de vergonha, Bartebly voltou a falar, dessa vez olhando diretamente para Dom Isidoro.

"Nós podemos vender esse procedimento, Dom Isidoro, exatamente em seu atual estado de funcionamento".

"Como, Bartebly? Diga de uma vez", disse Lucíola, em tom de comando.

"Lucíola, é simples", respondeu em tom oblíquo, de quem deseja esticar o mistério. Pegou o controle remoto e acendeu o enorme televisor. Reproduziu um vídeo em que uma mãe realizava o trabalho de parto. Gritos, som de choro, e um médico aparecia com o recém-nascido no colo, o enorme cordão umbilical ainda preso à mãe. Uma voz diz "é um menino, é um menino". Cortam o cordão umbilical e entregam a criança à mãe. A criança não para de chorar por nenhum momento. Corte para uma tela preta, que gradualmente clareia até distinguirmos um adolescente chorando, abraçado ao travesseiro em seu quarto escuro. Entra uma mulher vestida de branco e para olhando para a câmera. O adolescente continua chorando, como se não percebesse a presença da mulher. Ela começa a falar, tom delicado e angelical (ao fundo, sem nunca atrapalhar a clareza da voz da mulher, de vez em quando escutamos os soluços e gemidos do adolescente): "Você nunca poderá escolher como nascer, mas agora poderá pelo menos ter uma outra chance". Entram dois operários carregando um pesado computador. Ligam os cabos na cabeça do adolescente, que se mantém indiferentemente chorando. Depois de um deles digitar alguns comandos no computador, o adolescente estaca, para de chorar, seu olhar fica vidrado, e então dorme profundamente. A mulher de branca volta a falar: "Você não pode escolher o que se tornou, mas e se pudesse nascer de novo?" O adolescente acorda. Senta, confuso, como se não soubesse como foi parar ali. Olha para os operários, para a máquina, estuda o quarto, o dia começando a nascer e entrar pelas janelas, e então compreende. Close no seu rosto, iluminado pelo sol. Um sorriso radiante. Corte para uma tela branca com o logo da Sanitas, e abaixo, o slogan: nasça de novo.

A maioria dos sócios votou para que o produto fosse levado adiante, e os lucros obtidos com o tratamento, difundido pelas empresas de marketing como um reset da consciência, fez com que a Sanitas crescesse em uma velocidade impressionante. Os analistas do mercado sabiam que era questão de tempo até que a empresa devorasse as demais, e foi isso que foi acontecendo ao longo de algumas décadas, até chegar no ponto da absorção da Razio. Costa Lima, embora esperasse o total controle da Sanitas sobre o mercado de saúde, não deixava de se espantar com a velocidade de todo ocorrido. "Não demorou nem cinquenta anos para que esses bilionários organizassem um plano para controlar todo o segmento", disse alto para si mesmo.

Fechou a revista, impaciente, e procurou uma leitura que lhe aborrecesse menos. Remexeu no baú até encontrar um livro velho de capa escura e desbotada. Colocou contra a luz e leu o título. "Até que enfim poesia! Estou cansado da imaginação pedestre que os cientistas enfiam no nosso cérebro dia após dia!"

Costa Lima adorava aquela estranha sensação de ter as palavras passando da língua abstrata de seu pensamento para a materialidade carnal de sua garganta. Antes de contar as palavras que leu em voz alta, para si mesmo, pois morava sozinho naquele cubículo, tratarei de explicar como Costa Lima aprendeu a falar.

O pai de Costa Lima foi um importante escritor, muito renomado pelas cartas de amor que escrevia. Os sentimentos de amizade, os relatos emotivos, confessionais, expressos pelos seus cumpridos dedos de tipógrafos, todo tipo de elogio e idílio, em sua mão se tornavam ainda mais deliciosos. Era a glória de seu pai saber que alguém se emocionara com suas palavras, saber que servira de cupido para algum amante. 

Conheceu sua esposa em um funeral. Estava vestindo terno violeta e chapéu de abas retas. Ela completamente de preto, um macacão cumprido e apertado que lhe cobria desde o pescoço até a ponta dos pés. Uma corrente de ouro escorria sobre os contornos duros de seus seios. 

Ninguém poderia imaginar humores mais diferentes. Ele era expansivo, alegre, faceiro; ela era quieta, fria, e sempre parecia doente. Talvez fossem as letras que aproximaram aqueles dois, mas até nisso eram contrastantes. Se ele louvava o amor, ela louvava a morte, aquele terreno que os retóricos associavam às regiões mais baixas da alma. Sua especialidade eram as cartas rancorosas, os ataques públicos, as palavras que fedem de tanto veneno que carregam. De vez em quando, mas somente pela necessidade monetária, já que a atividade lhe desagradava sua misantropia, escrevia alguns elogios funerários. Não era de seu tipo escrever palavras lisonjeiras, mas isso não queria dizer que fizesse o trabalho de qualquer jeito. Embora não alcançasse nem o prestígio e nem o talento que o marido possuía na arte do elogio, seus pares lhe consideravam mais talentosa, pois além de dominar sua especialidade, conseguia executar a do marido com relativa facilidade e beleza.

"A mamãe estava no leito de morte", me confidenciou certa vez Costa Lima, "quando me admitiu que grande parte dos trabalhos de papai, inclusive alguns dos mais festejados, como a Carta ao amante, era na verdade de autoria dela..."

E passou a falar do casamento de seu pai e de sua mãe. Me contou que se conheceram em no funeral de um diplomata. As palavras lidas no enterro não comoveram especialmente a ninguém, pois todos os presentes não possuíam cultivo de espírito suficiente para acessar o conteúdo profundo daquelas palavras, mas o poeta Cícero, pai de Costa Lima, ficou impressionado com o poder daquelas figuras de linguagem. Chorou discretamente, e no fim da cerimônia foi até o organizador perguntar quem havia escrito aquele belíssimo elogio. Ele passou o endereço de Acrópole, a mãe de Costa Lima.

O que teria escrito Marcato para Acrópole, para se tornar merecedor de atenção? Não sei exatamente como, Costa Lima não entrou em detalhes sobre isso, mas o cortejo, não importa como ocorreu, de alguma forma surtiu efeito. Passaram muito tempo enamorados pelas palavras um do outro, até que em um demorado dia reuniram seus corpos e copularam. Isso voltou a acontecer mais três ou quatro vezes. 

De alguma dessas sessões, nasceu Costa Lima. Filho de escritores, era natural que fosse seguir o ofício. Desde criança foi educado para a palavra impressa. Seus pais eram da última geração em que a ciência pedagógica obrigava o desenvolvimento de uma linguagem fônica. As novas propostas pedagógicas, a que Marcato e Acrópole estavam de acordo, visava desfazer o privilégio fonocêntrico da língua. Para ser um escritor, explicava Marcato para seus colegas, é preciso começar pela escrita. Nada interessa a fala para um profissional da escrita, complementou Acrópole. 

E para escrever que desde bebê Costa Lima foi desenvolvido. Entregue a um internato assim que completou seus dois anos de idade, desde muito cedo que aprendeu  a cultivar as letras e a solidão. Com três anos já conseguia ler, e com oito já dominava fluentemente cinco línguas. Passava todo seu tempo recluso em um cubículo. Toda manhã, era entregue por uma passagem na porta de ferro um livro e as provisões alimentícias do dia. Tudo que podia fazer, além das estritas necessidades fisiológicas, era ler e escrever (para isso havia um caderno, um estojo de penas e tinta preta, que toda vez que terminavam, deveriam ser passadas pela passagem da porta para que no dia seguinte fossem entregues novas.

Não conheceu outra pessoa pessoalmente até completar dezesseis anos, embora desde os dez já tivesse um computador e acesso à internet. Desde muito cedo, começou a trabalhar redigindo notas científicas, e entre alguns usuários de um fórum era reconhecido como filósofo. 

As seitas dos peripatéticos, que há alguns anos eram apenas um grupo romântico que pregavam a abolição da vida virtual e a reimaginação do mundo real, tornava-se mais presentes nos espaços públicos da rede. Foi em uma reunião dos peripatéticos que conheci Costa Lima. Como não-falante, tudo que ele podia fazer era aparecer escrever mensagens para os participantes, o que fazia prolixamente, em textos enormes. 

Costa Lima nunca havia tido contato tão próximo com falantes assim, que desavergonhadamente falavam, que falavam com gosto e com todas as possibilidades fônicas, cantavam, falavam em rima e métrica, imitavam vozes, enfim, faziam uso de enorme plasticidade vocal. Ver a língua assim, em tão vivo estado de oralidade, provocou em Costa Lima um horrível desconforto. Isso explica as passagens iracundas que escreveu, descrevendo a fala como amoral, herança das antigas e ultrapassadas sociedades logocêntricas. Por algum motivo, contudo, voltou a aparecer em outras reuniões. E seu tom belicoso arrefecia. Conforme me confessou depois, o incômodo e raiva inicial foram somente maneiras de elaborar o estranho encanto que a palavra falada lhe produziu. Nunca havia sentido nada assim. E quando tentou falar, sozinho, em sua casa, se frustrou, pois seu aparelho fônico havia sido atrofiado ainda quando era um recém-nascido. 

Os peripatéticos não são simplesmente uma milícia desorganizada da internet. Seus membros possuem disciplina, seus movimentos são calculados. Permitir que um sujeito extremamente avesso à fonação - isso para não falarmos nas maneiras mais desagradáveis com que Costa Lima batia de frente com os demais membros - frequentasse os meios peripatéticos não era descuido ou tolerância descabida, mas estratégia elaborada pelos líderes do movimento. Em uma tarde, assistindo a chuva de ácido cair lá fora, Nick me confidenciou o seguinte: "Deixemos esses estúpidos se aproximarem. Deixemos terem o gozo de sentir razão até. Mas não nos permitamos ser afetados por seu discurso. Seu discurso é falso, e a falsidade é sempre inócua. Nada fará contra quem conhece a verdade. O mal não seduz aquele que ama o bem. Será o contrário, Mallarmé. Deixe que fale aquele monte de merda fascista, não se importe, ou melhor, se importe apenas o suficiente para retirar ainda mais alegria de nossa verdade. Irradie força. Aquele pobre Costa Lima é um doente. Cedo ou tarde descobrirá que somos nós a sua cura".

Nick estava certo. Lentamente, a argumentação de Costa Lima recuou. Começou a ponderar, a reconher, se não a pertinência, a plausibilidade dos argumentos peripatéticos. Demorou quase um ano para que estivesse de acordo com as principais ideias da seita. Depois de algum tempo, convidei-lhe para ingressar oficialmente. Creio que precisou de algum tempo para pensar, pois demorou algumas horas para me responder que sim. 

O procedimento cirúrgico de reconstrução do aparelho fônico era simples e rápido. O demorado, na verdade, eram as sessões de fonoaudiologia que o paciente precisaria depois, pois a atrofia não era somente da fisiologia, mas também era psicológica. Foi necessário mais de um ano de tratamento para que Costa Lima conseguisse reverter o quadro afásico que sua formação escriturária produzira, mas no fim desse tempo ele já era capaz de dizer com segurança quase qualquer fala, ainda que fosse pego com dificuldades em alguns fonemas mais complicados.

Naquela madrugada de pensamentos intranquilos, encontrou um novo livro para tentar mitigar sua tormentosa angústia. Seu título era Introdução Concisa à Engenharia Social. Folheou algumas páginas e, ao acaso, leu uma passagem em voz alta:

"Os engenheiros podem ser definidos como profissionais da observação, especialistas em olhar competentemente. Na evolução histórica, substituíam o amadorismo de viajantes e turistas que, em suas viagens pelos países exóticos, recolhiam impressões vagas sobre a paisagem. Por meio de uma linguagem rigorosa e objetiva, os engenheiros se tornaram capazes de sistematizar a observação em parâmetros científicos, e seus relatórios são hoje as principais fontes para as reformas que o estado organiza..."

Fechou o livro, e suspirou. Estava exausto.

"Não aguento mais, meu corpo vai desmontar. Quero estar sóbrio, quero dormir, quero interromper o pensamento, quero interromper os sentidos, mas não consigo, é como respirar, só vou parar quando o corpo morrer de velho ou quando, por meio de um dos banquetes de comprimidos, daqueles que Clara receitou para me manter vivo, induzir-me ao silêncio prematuro e eterno. Não pularia de um prédio, muita sujeira. De tiro já ouvi falar que pode se sobreviver. Ficam-se sequelas horríveis". 

Há alguns dias Nick contou de um amigo de infância que tentara se matar com um tiro an cabeça. "O idiota pegou a espingarda do pai", ele dizia, rindo, "mas a bala passou de raspão ele continuou vivo, mas ficou pra sempre retardado". Deusa disse, daquele seu jeito indiferente, alheio à tudo, que chegou a conhecer o sujeito pessoalmente, e que além de retardado, seu rosto era grotesco, pois durante a cirurgia de reconstrução facial um dos médicos cometera um erro grave que pra sempre comprometeu a integridade de seu crânio. "É verdade", disse Nick, olhando para a cara espantada de Costa Lima, "nunca vi nada mais nojento e desagradável do que o rosto daquele imbecil", completou.

Costa Lima pensa no cheiro de Deusa. Tabaco, suor, algo ocre que não sei nomear mas que dá prazer só de farejar de longe. Narina direita entupida. Costa Lima deveria ter sentido melhor esse cheiro. Deveria guardá-lo para sempre dentro dele, pois é questão de tempo para que desapareça, para que seja falsificado pela lembrança e do cheiro verdadeiro se torne reles fantasma. 

Assim como eu, Costa Lima era apaixonado por Deusa. Assim como eu, Costa Lima pensará no cheiro de Deusa, mas esse nome anunciará somente a sensação de que ela está longe e que não voltará jamais, e que nunca mais sentirá o cheiro que a lembrança consegue apenas aludir, que pode até mesmo encenar dentro de seu cérebro sua sensação, mas que ele sabe que nunca irá reproduzir o cheiro verdadeiro que se desprendia de Deusa.

Conversamos muito sobre Deusa. Ele não sabia que também amava ela, e por isso me tratava como um confidente fiel. "Ela me beija, me beija de novo, e com os olhos cheios d'água, me diz que já deu", ele me contava, choroso, quando de súbito passou a falar da mãe: "Mamãe também foi embora assim, para nunca mais voltar. Por algum motivo pensei em mamãe, quando vi Deusa se afastando, cada vez mais longe, na proa daquele navio. Sou só um garoto, Mallarmé, exatamente como no dia em que mamãe me deixou. Posso ter crescido em extensão, mas por dentro... Sinto que ainda sou o mesmo garoto, que em mim para sempre se realizará o destino da solidão..."  

Estávamos na praia, e para mudar de assunto, falei dos morros arredondados pelo mar, e falava da rocha se degradando pela força do vento, pelo devir lento e demorado da matéria, e que se a isto os olhos não conseguem enxergar, a imaginação é quem faz ver. "As formas esculpidas no litoral", disse, como quem deseja comover, "versos minerais cantado pelo ir e vir do mar..." Achei essa frase improvisada sinceramente digna de nota, e por isso fiz questão de anotar em meu caderno. Costa Lima assistiu com olhar irritado, como se eu tivesse feito algo contra ele, e com ironia, disse: "anote na areia, para que a onda lamba a letra, como o tempo lambe a montanha".

Não conseguia parar de pensar em Deusa. Foi seu nome chegar à luz de sua consciência que, em meio à madrugada de seu quarto, seus pensamentos voltaram a se multiplicar, e que em alguns minutos um quase infinito de palavras proliferaram e ocuparam todo o pouco que havia vazio em sua cabeça. Naquele momento, é certo, Costa Lima não mais pensava.  As palavras incharam como tumores. Uma dor de cabeça horrível, verdadeiramente insuportável, surgiu. Costa Lima apertou seu crânio e gritou bem alto. Caiu no chão e teve uma crise epilética. Depois de se debater por quinze segundos, seus sentidos retornaram ao normal. Na sua cabeça, uma série de imagens que trataria de esquecer, mas que naquele momentos eram límpidas, cristalinas. Antes de desfalecer, consegue sussurrar alguma coisa incompreensível.


2.

O alarme disparou e retirou Costa Lima de seus devaneios. Foi até a máquina de escrever e conectou aos seus pensamentos. Já eram Cinco e trinta e um. Engoliu os comprimidos da manhã com um pouco de água e começou a digitar. 

Estava escrevendo sobre o efeito dos buracos negros quando recebeu uma carta de sua médica. Seu coração disparou. Estava esperando aquela resposta há tempos. Tratou de ler imediatamente:

Caro Costa Lima,

Durante seu último sonho, quando me enviou essas palavras, "Mxyzptlk, ele é o único que poderia me ajudar", pude perceber um novo diagnóstico em seus sintomas. Serei breve, já que nunca interessam aos pacientes os pormenores médicos. Tudo que você deseja, afinal, como todos os demais, é curar-se. Envio de uma vez, ainda enquanto durmo, essas novas palavras. Espero que sejam úteis de alguma forma.

Atenciosamente,

Doutora Clara.

Em anexo, estava o seguinte:

Presa dentro da cidade de vidro, encolhida, proporções reduzidas as de um inseto. Depois de seu último fracasso, aliou-se a um ricaço, sócio majoritário de uma empresa. Conseguiu dinheiro para fazer seu experimento maluco. Máquina para encolher pessoas. Onde a ciência irá parar, doutora?, Costa Lima me pergunta, está aflito. Meu amor, sabes que acredito em um mundo melhor, e sei que as ciências são necessárias para o melhor desenvolvimento da civilização...

Você me interrompeu nesse ponto do sonho e exclamou, incrédulo: "desenvolvimento da civilização, doutora?"

Respondi que era necessário fazer o suficiente para a sociedade melhorar. Só que às vezes, Costa Lima, os cálculos vão longe demais. E você passou a me falar do holocausto, do seu pobre colega de trabalho Sandman que perdeu o pai. 

Me conte mais sobre esse amigo.


A estrela

Força gravitacional sobra a nave

girando em torno do buraco negro

como espaguete,

galáxias,

corpo em colapso 

o astronauta.

curvatura dp esáço-tempo dentro de um buraco negro.

O censor cósmico: 

As singularidades produzidas pelo colapso gravitacional ocorrem em buracos negros.

Censor cósmico, fracote:

Proteja os observadores que permanecem fora dos buracos negros! 

E o astronauta que caiu no buraco negro?

O que aconteceu com ele?


segunda-feira, 6 de março de 2023

JAMES JOYCE: O CRIADOR DE UM RITMO NOVO PARA O ROMANCE

Em James Joyce surpreende e perturba, ao primeiro contato, o poder criador.

Está a meio sua obra e no entanto parece a metade de uma catedral. Ou uma catedral inteira. Porque Ulysses é talvez o livro mais gótico e mais complexo que desde a Comedia de Dante se escreveu.

Nasceu James Joyce com esse sentido arquitetônico das coisas, a um tempo largo e intenso, que apenas se satisfaz em complexidades de catedral. Daí a vertical de concentração que assumiu em Ulysses seu poder criador. Sua força jovem e virgem de imaginação.

Ulysses é por isto, por esta concentração, de um simbolismo que exige Beadekers¹ como o da Catedral de Toledo e o da Catedral Chartres. De um simbolismo como as das catedrais góticas. 

A fecundidade de Joyce não é de superfície: está na concentração vertical. Fecundidade de superfície chamo eu a do sr. Blasco Ibánes, cuja obra tanto se assemelha a uma vila operária espraiada sobre larga extensão.

Onde foi buscar James Joyce um sentido arquitetônico tão fora do tempo, ou talvez, tão antecipado do tempo, pelo seu ritmo gótico e pelo seu fôlego épico? Nasceu com ele. Mas a eurritmia da educação por certo que desenvolveu. Educou-se o romancista inglês em um colégio de padres. De padres jesuítas. Na filosofia tomista, portanto. A qual se aproxima da arte e da vida com um critério ao mesmo tempo arquitetônico e melodioso: o integritas e o consonantia

Também em Joyce há um senso agudo da melodia das coisas. Senso de melodia que também a influência católica-romana, sob a qual foi nascido e criado, o artista deve se explicar. Pode-se falar assim da formação de Joyce porque ele próprio a fixou na desse menino doloroso que foi Stephen Dedalus. O retrato de The portrait of an artist. O retrato do livro que antecipa Ulysses: e no qual Joyce trabalhou dez anos. 

Nesse doloroso menino que é Stephen, a se amarfanhar de pudores e de sensibilidades aos primeiros contatos da vida, deve-se ter desenvolvido no colégio de padres uma quase doença de melodia. Ele próprio confessa que ao encanto da música renunciava a consciência. E como resistir, na verdade, ao encanto dessas rimas em vogais da psalmodia - boas e doces como ondas de ritmo? "Cinnamon et balsamum", "palma exalta sum", "te Deus laudamus", "Beati immaculati" - há nesse luxo de vogais que se deixam bater voluptuosamente pela voz, uma escola da música da frase.

No meio delas criou-se Stephen Dedalus. Criou-se James Joyce. Eram-lhe todas as manhãs e todas as tardes batidas aos lúbricos ouvidos essas sílabas latinas de psalmodia. Sílabas que não são afinal puros valores melodiosos aristocratizados pelo tempo: trazem em si íntimos sentidos, forças que se concentram na consonância das rimas, toda uma mística multi-secular, todo o drama litúrgico da Igreja de Nosso Senhor. 

E ao contato dessas rimas místicas, aristocratizou-se em James Joyce o senso melodioso a qual Walter Pater atribuía a maior força do estilo. Tanto que o primeiro livro de Joyce - livro de versos, aliás, e um como exercício de caligrafia para a prosa - chama-se Chamber Music; e é na verdade um múrmurio abafado e debussyano como o de um canto gregoriano acompanhado a flauta pagã.

Em James Joyce, criador de um ritmo novo para a prosa inglesa, que conseguiu amolecer em valores musicais de um líquido de latim de igreja, de um líquido de óleo quente e às vezes de sangue vivo, de sangue jovem, de sangue virgem; em Joyce é preciso não esquecer a influência jesuítica. Da vida em colégio de padres, ritmada pelos exercícios espirituais e pela psalmodia grave.

Educação que o ia predispondo para o mais intenso misticismo - o de padre S. J. - quando o crucifixo lhe caiu das mãos góticas de adolescente; e partiu-se. Educação que o acabou lhe predispondo para o estetismo - o pan-estetismo, diria o sr. Graça Aranha não tivesse barateado a expressão - em que hoje se aguça a atitude de Joyce perante a vida.

Mas ao estetismo de homem feito prendem-se ainda raízes do misticismo de menino. E assim que no Stephen que em Ulysses se analisa e rõe no mais podre da consciência e da sub-consciência, sente-se ainda o católico-romano do colégio de padres. Incapaz para rezar pela alma da mãe, o Stephen homem feito é também incapaz de refugir a sensações místicas as mais estranhas e até macabras que lhe surpreendem. Um dia, em sonho, sente repreender-lhe a perda da fé a própria mãe que lhe aparece com o corpo meio comido e um hálito cujo cheiro era como o de cinza molhada.

No Portrait já se analisara Joyce na crise religiosa da adolescência ligada à primeira experiência do amor físico. Experiência que lhe comunicaria, com impureza das masturbações em que antes se requeimara um senso de pecado de tal forma pungente que só a confissão o aliviaria. A confissão e a promessa de dedicar-se ao serviço "ad majorem Del gloriem"

Intensas páginas são aquelas do Portrait em que Stephen, sob a arguta consciência do pecado, segue os exercícios de retiro dirigidos pelos padres jesuítas. A voz acre do pregador evoca os poena damni. E debruçado sobre o próprio eu, como sobre uma poça muito verde de podre, a si mesmo pergunta, surpreendido da tentação que o vencera, se de fato estava cheio e sujo dos terríveis pecados que levam ao inferno. "Coned it he that he, Stephen Dedalus, had done those things?" Agora, só o confessionário. Mas como confessar tanta imundície? E é uma cena de rara intensidade a que precede a confissão do adolescente; e a da confissão.

Em Ulysses, esse mesmo Stephen que já prefigurava as iniciais S. J. ligada ao nome, é homem sem fé consciente. Apenas restos subconscientes da fé antiga do mesmo agarram-lhe ao cérebro. É Telêmaco. Porque Ulysses - o homem do século XX - é Leopold Bloom. O judeu Leopold Bloom, aclimatizado em Dublin. O qual tanto tem de acomodado perante a vida quanto Stephen tem de inquieto e satisfeito. Bloom chega a acomodar-se ao adultério da esposa.

Dir-se-ia parte da obra formidável que é Ulysses uma como reportagem taquigráfica de flagrantes mentais. Do muito que se pensa sem ter coragem de dizer. Do muito que é recalcado na vida mental do homem. pelo "censor" da teoria freudiana. Joyce criou uma espécie de método taquigráfico para apanhar esses flagrantes da vida mental interior. Vida sem olhos e sem boca - porém vida. Vida sem disciplina moral. O "carnaval dos miolos", segundo frase do sr. Herbert Gorman.

Ao livro formidável que é Ulysses conheci em Oxford, onde sua atualidade intensa era a inquietação de certos chás. O puritanismo conseguiu dalgum modo abafar-lhe a influência, aliás destinada pela própria natureza do livro a aristocráticos limites. Mas o livro vai vencendo: e até sob as bananeiras do Rio já se vai pronunciando o inglês fácil do nome de Joyce. O inglês de suas obras, é que será difícil de soletrar.

Ulysses trás um ritmo novo para o romance. Nunca se escreveu um romance assim. A análise da vida interior que ali se faz é duma transparência e complexidade perturbantes. Ao lado de Ulysses - escreve um crítico - o Satyricon é apenas o trabalho de uma criança obscena. "It leaves Petronious out of sight" - observa o sr. Arnold Bernett. E Ezra Pound exalta-o sobre Cervantes, sobre Flaubert, sobre Proust. 

Joyce quis tomar do fenômeno da vida um fôlego largo e forte; e para fixá-lo como que adotou ao romance o ritmo da arquitetura medieval. Ulysses é complexo como uma catedral. Não lhe encontro melhor comparação. É a mesma concentração de símbolos e de aspectos da vida. Nas catedrais góticas se representam vícios, virtudes, o feio, o belo, as coisas da terra e as do céu e as do inferno. Ulysses é assim. Um livro duma amplitude que perturba. Às vezes parece que é pouco chamá-lo de livro.


 Extraído do Jornal de Pernambuco, nº 288, ano 90, 11 de dezembro de 1924.


NOTAS

¹ Durante o final do século XIX e início do século XX, as guias Baedeker eram particularmente populares entre os viajantes europeus, que os usavam como um guia essencial para explorar as principais cidades do continente. As guias incluíam mapas, descrições detalhadas de pontos turísticos e informações práticas sobre hotéis, restaurantes e transportes locais. O nome "Baedeker" tornou-se sinônimo de guias turísticos detalhados e precisos, e a editora ainda publica guias turísticos até hoje, embora em menor escala do que no passado. As guias Baedeker são consideradas importantes fontes de informação histórica e cultural e são valorizadas por muitos colecionadores.


sábado, 4 de março de 2023

TURBILHÃO DE PENSAMENTOS

No vagão doo metrô uma mulher vai ao chão. Sangue aguado de fim de raça. Está passando mal. Pessoas se reúnem ao redor, piedosas diante do sofrimento alheio. Apertem o botão de emergência, diz uma voz masculina, e apertam o botão de emergência. Na próxima estação chegam os funcionários do metrô. A mulher diz que está bem, que precisa chegar ao trabalho. Mesmo assim, levam a mulher em uma maca. A viagem continua. 

Deusa despeja quetamina na tela do seu celular. Vamos pra praia, diz Nick. Tanto faz, diz Deusa. Vamos, está muito sol, digo. Deusa cheira a carreira com a narina direita, a esquerda estava completamente obstruída. Não gostei daquela garota, ela diz depois de levantar o rosto. Leila?, pergunto. Ela mesmo, diz Deusa. Namoramos por um tempo, digo, enquanto pego o celular. Como conseguiu?, ela diz em tom de desprezo. Sei lá, respondo e cheiro.

Finge que não liga, mas não para de falar do pai, da mãe, Deusa diz. O quanto é culpa deles? Toda família deveria ser um cofre indestrutível, um enorme forte militar, fortalezas impenetráveis munidas de abrigos anti-bomba, respondo. O governo recomenda que cada família tenha as armas adequadas para evitar Hiroshimas e Nagasakis na vida infantil, que cada família fabrique suas próprias armas de destruição em massa, pois o governo não irá interferir nos negócios dos particulares, desde que os planos assistencialistas do antigo presidente foram classificados como deletérios para a economia do país, diz Nick. Os pais que devem preparar seus filhos para a guerra fria a que foram convocados quando na ocasião do nascimento. Sair do útero quentinho da mãmãe e entrar de cabeça na era do gelo da existência, diz Deusa. O mundo, as pessoas, lhe atacarão não com dentes ou garras, Matheus, mas com tecnologias mais sofisticadas. Telepatia. Guerra psicossomática. A sociedade oculta uma guerra psíquica, guerra secreta e ao ar livre, diante de todos, mas oculta de todos. Guerra secreta, de todos contra todos, todos lutam, saibam ou não, Nick disse, pegou o celular e cheirou o pó branco.

Vontade de dormir cinco dias e acordar no consultório do analista, como é o nome dele? Aquele analista. Esqueci, não interessa. O pântano com a cara da minha mãe na água preta, doutor, queria dizer, e receber de sua boca a expressão vaga de compreensão e julgamento, e de seus dedos o papel branco com a autorização para comprar meus medicamentos, minha dieta química mensal, me disse Átropos.

A herança de uma maldição. Pego em meu corpo o débito de papai e mamãe. E eles, pagam a quem, pagam o quê? O feudo familiar. A decadência vem de longe. Passa na rua um cara sem camisa que poderia ser eu. Um doppelganger, como os alemães chamam. Sua fisionomia repete a minha. Nos olhamos brevemente, e reconheço em seu olhar o olhar de um irmão perdido. Se reconhecem de longe como os cristãos das catacumbas cruzando nas praças. Sua história, será que também repete a minha?  Sócio-telepatia. Alguém que também sofre do que sofremos, imaginamos. A sociedade é o emaranhado de contra-histórias, gêmeos univitelinos que contudo vivem histórias diferentes. Será que poderíamos nos compreender se trocássemos alguma palavra? A compreensão é um fenômeno mais propício ao silêncio. 

Quais as condições sociológicas, que configuração tortuosa necessária da economia libidinal, para que alguém se apaixone pelo analista? Desintegração do feudo familiar, o dinheiro a mediar as relações, o fluxo dos encontros e desencontros, amor e dinheiro enroscados de maneira indelével, capitalismo, diz Deusa.

Dois dias sem dormir, cheirou o pó, o coração dispara, bate com força e sacode seu corpo fraco e maro. Cheirou a quetamina, a realidade é refletida no espelho rachado da história, se bifurca em séries de histórias e contra-histórias, memórias e contra-memórias. 

Sensação de morte, o corpo do rapaz espatifado contra meu para-choque, a tripa escorrendo pelo chão, tanto sangue. Meu irmão, meu irmão, diz Nick de dois em dois minutos, tento acalmá-lo. Que história sinistra. Quando criança, Nick matou o irmão menor. Na gaveta do pai uma pistola. Brincando de caubói, como nos filmes da televisão. Um único disparo, na cabeça. O irmão menor era o índio. Um único disparo e o estampido, o som alto do tiro, e o sangue, tanto sangue. Mamãe entra, assustada, nada podia fazer, pegou o telefone, atônita, as mãos tremiam, meu irmão, o rosto desfigurado, em carne viva, tanto sangue, tanto sangue.

Quando era menino minha mãe me censurou uma vez por ter falado a palavra buceta. Meu deus, que nome feio, melhor chamar de pererequinha, filha, disse gentil. A nhem-nhem fala popô abotoando a boquinha. Na cama, a filhinha com vestidinho cor-de-rosa e marias-chiquinhas, abraçada a um ursinho de pelúcia, puxa a aba do vestidinho, a pererequinha sem nenhum pêlo, pede para meter devagar na pererequinha para não machucar ela. Hoje vamos brincar de uma coisa diferente. Diferente? Sim, diferente? Eba, como? No popô. No popô? A nhem-nhem fala popô abotoando a boquinha. 

E seu pai, Deusa? E seu pai? Não irá falar dele?

Seu pai se matou dois anos depois de publicar a obra que preparou em mais de vinte anos de estudos. Deusa pegou os livros e um por um atirou na fogueira. Vamos multiplicar as Alexandrias, diz. Livro por livro.

Que horas são? Preciso ir embora.

Obra de filosofia social e histórica. A sociedade representada pela grotesca figura da degeneração. A humanidade perpétua transmissora de uma doença hereditária. Deusa conta sobre Adão e Eva. 

Ano novo, Átropos do outro lado do vidro, peitos enormes, beijando outro cara de língua, lambendo seus lábios, as mãos descendo da cintura para a bunda, abrindo elas, Átropos contemplativa passiva, manipulada, usada, dando-se, entregando-se. Arranco o vestidinho rosa e gozo nos peitinhos bicudos. Alguns jatos e morro, a máquina para, a tela desliga, alguns segundos somente, e tudo retorna, seu rosto e maria-chiquinha sujos de porra, ela ri, a mão direita vai até o rostinho, pega a porra e lambe com gosto. Gostoso. Você ama sua namorada?, pergunta enquanto seus dedos finos lhe fartam com meu gozo. Cansado, deitado ao seu lado, digo que sim. Ela chupa o indicador e depois o médio. Quero mais, diz com beicinho.

Pisco e estou nos braços de Deusa. O homem que matei era padre. A batina preta pintada de sangue. Miolos misturados às páginas da Bíblia. Barulho infernal de banda de fanfarra em algum lugar. Bumbo. Prato. Percussões que não sei nomear mas que reconheço o som. Metais, violões, cavaquinhos. Talvez um violoncelo. Madrugada. Roupas coloridas borradas pelo torpor sujo da quetamina. Dor de cabeça, dormência, parece que flutuo. Que horas são? Pergunto para Deusa e ela diz que não precisamos mais medir o tempo. A cidade é uma paisagem impressionista. Cores misturadas e em movimento. Cada pixel inchado e distorcido, como se tudo fosse feito de borracha e tivesse sido esticado até perder as proporções típicas. Tudo está perto demais, ou tudo está longe demais, tudo fora de foco. Quanto tempo passei entre seus braços? Fui furtado, estou sem celular. Não tenho como medir o tempo, não tenho relógio. Tento dizer alguma coisa e ela me cala com o indicador na minha boca. Não precisaremos da linguagem, explicou. 

As formas esculpidas no litoral. Qual sua mensagem mineral? Verbo esculpido em pedra pelo movimento do mar. Anoto na areia e a onda lambe. Ela me beija, e diz que já deu, adeus. Mamãe foi embora quando eu era um menininho. Os morros arredondados pelo mar, a rocha se desfazendo, devir lento e demorado, que os olhos não podem ver. 

Cheiro de Deusa. Tabaco, suor, algo ocre que não sei nomear mas que gosto de cheirar. Narina direita entupida. A mente ainda pensando os pensamentos da cocaína. Examinou-lhe os bolsos e num gesto automático tirou o maçarote de dinheiro e sem contar guardou-o no bolso do casaco. Meteu dois dedos por entre os cigarros e pesquisou o fundo do maço. Trouxe nos dedos em pinça uma fina tira de papel de seda cuidadosamente dobrada. Apalpou o papel e fechou-o na mão.

Confuso demais. Alguém me acerta com uma garrafa de vidro e meus óculos quebram. Óculos quebrados, equilibrados sob o nariz, as lentes pintadas de vermelho. Gritaria, estampidos de bala, uma noiva correndo, cinta-liga, querubins atrás.

Papai me dá um carrinho de brinquedo. Quando crescer, vai dirigir um igual, filho. Vou e venho com o brinquedo, fingindo que o piso da sala era uma pista de corrida. Não sei quanto tempo passou, não sabia ver as horas. O relógio da sala era uma pintura estranha, uma palavra escrita com caracteres cujo significado simplesmente não havia. 

A história é escrita de sangue, disse Deusa.

O carro acelera e bate contra a parede. O piloto voa pelo vidro da frente - vrum vrum - bate a cabeça na parede, o cérebro explode, sangue espirra para todo lado. Gosto metálico de sangue. Limpo os óculos com as costas da mão, cuspo o gosto para fora da boca. Nick guarda a pistola dentro da cueca. Vamos, rápido, me diz, e nos leva. Eu, Nick e Deusa por entre as ruas escuras do centro. Para onde? Não sabia. As ruínas da cidade velha pintadas pelo meu sangue escorrendo.

Não aguento mais, meu corpo vai desmontar. Quero estar sóbrio, quero dormir, quero interromper o pensamento, quero interromper os sentidos, mas não consigo, é como respirar, só vou parar quando o corpo morrer de velho ou quando, por meio de um banquete de comprimidos, obrigá-lo ao silêncio prematuro. Não pularia de um prédio, muita sujeira. De tiro já ouvi falar que pode se sobreviver e ficam-se sequelas horríveis. História de Nick sobre um conhecido seu que ficou retardado e deformado depois de ter atirado com uma espingarda na cabeça para imitar Kurt Cobain. Tinha quinze anos o cara, diz Nick. Meu pensamento também vermelho. As linhas se multiplicam e novas palavras preenchem o branco vazio da cabeça, até que o branco se torna vermelho. As palavras incham, como tumores, crescem. Silêncio, por favor, sussurro para mim mesmo antes de cair no chão.

ai, minha fama de maldito, 2

O after na casa de Pedro Fernandes estava uma bosta. Gente fumando maconha pelos cantos e fazendo aquela média com todo mundo. Artifício emo...