quinta-feira, 29 de junho de 2023

decadência de GILBERTO e decadência do açúcar

 Muito se fala sobre o aspecto decadente que o conjunto da obra de Gilberto revela, quando enfileirada em ordem cronológica. A associação imediata é entre a degradação intelectual e moral, i.e., seu relacionamento com figuras desprezíveis, e a entrega de sua obra aos caprichos ideológicos das elites. Há, também, as acusações mais diretas contra sua subjetividade, que muitas vezes se associam à primeira, e retratam Gilberto como vaidoso e avaro de glórias. A qualidade da obra, portanto, é traída pela sua paixão doentia por cobiça. 

Dentro dos comentários mais comprometidos diretamente com as ciências sociais, há o ensaio de Carlos Guilherme Mota, que estabelece relação direta entre a produção de Gilberto com a aristocracia açucareira de que era herdeiro: “o ensaísmo não surge apenas como terreno ideal, mas como discurso possível”. Difíceis palavras mais precisas do que essas, especialmente se mantivermos em vista o que o autor se refere como “o ajustamento desses estamentos a uma sociedade de classes em formação”. 

Não foi afinal a formação de Gilberto Freyre, assim como outros tantos intelectuais de sua geração, cultivados desde a tenra infância, no jeito que aprendia a pedir a criada a buscar o brinquedo? Foi no colégio também, por exemplo, que foi educado não só em latim e oratória, mas em práticas mais sujas, licenciosas, que não falaria em voz alta no jantar com a família? Gilberto frequentou espaços e se formou por prática e valores que, se não foram simplesmente apagados pela industrialização do país e a formação gradual de uma sociedade de classes, teve seus meios de cultivos desfeitos. 

A progressiva decadência do latifúndio açucareiro, meio de produção sob o qual o próprio Gilberto fundara a sociedade patriarcal, era não somente material como também espiritual: morria verdadeiramente um mundo, ou ainda, um meio, em que se produziam não somente objetos materiais, demarcados como característicos dessa cultura, como por exemplo, a antiga arquitetura das casas-grandes, que foram se europeizado e se assobradando, mas os próprios valores, e mesmo a própria gente, que por meio deles era formada. 


quarta-feira, 28 de junho de 2023

de quando alfredo freyre, pai de gilberto, foi torturado

Segundo Fonseca (2003, p. 33) Gilberto Freyre escreve o artigo intitulado "O exemplo de Ibiapina" em 9 de junho de 1942 n’O jornal do Rio de Janeiro, artigo onde chamava a pregação de um religioso, diretor espiritual dos escoteiros de pernambuco de racista, e alegava que o líder possuía inclinações nazistas. Além de o artigo ter tido sua publicação proibida no Diário de Pernambuco, a polícia prendeu Freyre na Casa de Detenção do Recife. Durante sua prisão Alfredo Freyre, seu pai, teve os dois joelhos fraturados e Gilberto Freyre só saiu da prisão no dia seguinte por ordem do general Goes Monteiro, então ministro de guerra.

NUNES, Matheus Rafael de Souza. A Biopolítica do proibicionismo de drogas em Pernambuco: Novas práticas do velho autoritarismo do Estado “Novo” (1937-1945), p. 69.

domingo, 11 de junho de 2023

naturalismo e antropologia: lévi-strauss como paradigma da separarão

  Em um mesmo parágrafo fizemos uso do termo naturalismo que sugere dois sentidos distintos para essa única palavra. O primeiro naturalismo por nós escrito seria aquele associado à literatura, à ficção, à língua, à forma, etc. A segunda aparição da palavra, ocasião para que abrisse essa nota de rodapé, se refere ao que hoje se chamaria de biologia; é um naturalismo científico, responsável pelo estudo da anatomia, fisiologia, etc, de vegetais e animais. Há também um terceiro naturalismo; terceiro porque sua existência é dupla, e seu estatuto discursivo elástico. Me refiro ao naturalismo dos viajantes, aos diários, relatos de viagens e demais gêneros por eles produzidos. Essa separação entre literário e científico, no entanto, embora pertinente em relação à organização, controle e estabilização dos enunciados, se dentro de uma perspectiva da escritura, da disseminação da língua, percebemos séries de vazamentos e contaminações entre um e outro. Os naturalistas e seus estudos fisiológicos e anatômicos de plantas e animais, colocados a partir de uma história natural e/ou da da evolução, faz com que o estudo seja somente um ramo específico dessa ancestral genealogia em que todos os seres vivos são desdobramento de uma mesma força ou lei; desde os primordiais moneras, até o fantástico desabrochar da inteligência humana, atuaria o mesmo princípio, cujo protótipo mais disseminado foi a seleção natural de Charles Darwin. A história natural, portanto, é o desdobramento de leis da natureza; da interação entre organismo e meio; de sua concorrência e associação com os demais; e se sobrevivem aqueles mais aptos, e se são herdadas as características mais vantajosas, é portanto destino provado cientificamente que a natureza impõe aos seres vivos a adaptação e/ou o aperfeiçoamento e/ou progresso. A antropologia do século XIX surge como um ramo dessa história natural cujo intuito seria buscar, a partir das coordenadas oferecidas por diversos a prioris extraídos das leis naturais, as particulares do desenvolvimento humano no tempo, especialmente a partir da perspectiva de que este desenvolvimento deveria se expressar na forma de aperfeiçoamento das faculdades humanas - a razão, a política e a beleza, para repetirmos a tríada kantiana, são dimensões em que separa-se os humanos dos demais animais e seres vivos. Muita dessa antropologia, em contraste com o que se caracterizou enquanto etnografias, não por acaso era de caráter especulativo; seu objeto de estudo, afinal, não eram grupos ou comunidades humanas específicas, mas acontecimentos enterrados e apagados pelos milhares anos de história: Como do macaco se desenvolveu o homem? Qual seria afinal a origem da razão? Como passaram de bandos desarticulados e sem leis para sociedades dotadas de moralidade e organizada por preceitos públicos? Em que circunstância passou o ser humano a falar, comunicar e representar o mundo e os acontecimentos nessa forma tão arrojada que a língua permite? Percebam que essas perguntas não se tratam exatamente de encontrar princípios explicativos ou teóricos, porque esses já estavam dados; embora hajam divergências aqui e acolá, o princípio de tudo repousa naquilo que é a lei da natureza: a escassez, a superação do mais apto e o falecimento dos fracos, a herança das aptidões e gradual desaparecimento dos defeitos, etc. O que se tratava para estes antropólogos não era desvendar as leis da natureza; essa afinal já estava dada. O que a antropologia especulativa fazia era antes uma tentativa de estender as leis da evolução e os estudos naturalistas ao seu limite, até o ponto em que sairíamos das leis naturais e teríamos que passar a pensar em leis humanas; ainda que essas leis humanas partissem da analogia entre a evolução humana e a evolução natural, ao colocarem essa linha divisória entre o macaco e o homem - razão, ética, língua - de maneira críptica se abria a brecha por onde os antropólogos do século seguinte fundaram um campo totalmente autônomo, separando a antropologia dos métodos e teorias naturalistas por meio da aproximação de outros saberes. Embora saibamos da artificialidade dos paradigmas e origens, é difícil não mencionar o livro Estruturas elementares do parentesco, publicado em 1949 sob o nome de Claude Lévi-Strauss, não somente por propor um gênero de antropologia que se disseminou não só por dentro da disciplina antropológica, mas para outros campos discursivos. Talvez a antropologia cultural de Franz Boas pudesse ser um mito de origem mais adequado para tratar da cisão entre os estudos antropológicos e as leis naturais, é verdade, já que estabelece a primazia da cultura sobre o meio e a raça. Sem negar a importância de Boas para os estudos antropológicos, mas parte considerável do poder cifrado em Estruturas elementares do parentesco foi ter estabelecido a distinção entre natureza e cultura com a mesma força sistemática que caracterizava as teorias e filosofias da natureza. Quando Lévi-Strauss demarca a fronteira entre natureza e cultura por meio da capacidade humana de controlar, operacionalizar, distorcer, artificializar, organizar, e enfim, dar sentido diverso para aquilo que é o fim último da lei da natureza, a reprodução, transforma o que era fundamento e intuito da história natural em instrumento para a realização de coisas alheias ao mundo animal; muito especialmente, no Estruturas elementares do parentesco, a reprodução, o controle socialmente disposto sobre ela, faz com que a natureza, a reprodução da espécie, fosse, primeiro, um instrumento de política, que desenha redes de alianças e inimigos, mas segundo, e esse é o grande salto proposto, a reprodução da espécie, por meio da troca matrimonial, passa a atender não à lei da seleção natural, à reprodução dos caracteres mais fortes, mas sim à reprodução da sociedade, reprodução de suas estruturas. Não se herda ou não se interessa mais com a herança genética, com as aptidões passadas de pai para filho; Lévi-Strauss leva as ciências sociais para pensar na reprodução e nascimento como herança de um nomos, uma comunidade e modo de viver anterior ao nascimento da criança, e tão logo esteja nascida, tão logo será posta para participar de tal nomos, de modo tão intenso e alienante que a sociedade passa a adquirir as feições de natureza; a cultura é naturalizada. Somente à guisa de conclusão, ainda sobre Franz Boas, importante destacar que muito embora tivesse proposto a cultura como esse espaço teórico capaz de separar a antropologia do naturalismo, sua postura diante dos conceitos que canalizavam a filosofia e história natural dentro da antropologia, com a raça, o meio, é quase sempre o de ceticismo: embora preconize o estudo da cultura como método mais adequado para se conhecer uma sociedade, e que rejeite a hipótese evolucionista da superioridade entre povos e/ou raças, o ponto de Boas não passa por abolir a importância dos estudos biológicos, a genética e fisionomia, como saberes da disciplina antropológica; Boas, antes de mais nada, pretende declarar cientificamente infundadas as teorias de que a psicologia de uma pessoa possa ser explicada por sua origem genética, preferindo pensar na questão das patologias sociais como oriundas de causas estritamente sociais. 


o principal modelo de Lévi-Strauss, pelo que parece 


se destaca por definir de forma positiva a separação e distinção 

transpor esse arsenal linguístico e conceitual para um gênero, se não de historiografia especulativa, que dema o desenvolvimento da raça e/ou culturas e/ou civilizações, surge como símile da história natura uma história progressiva e violenta cujo modelo mais proeminente foi a seleção natural de Darwin


sobre empregar a tripartição kantiana - entendimento, ética, estética - sobre autor, obra, escritura, limites...

Mais por comodidade para nós, os escritores, que não desejamos perder muito tempo em tais pormenores, do que por inspirar qualquer adesão ou programa filosófico, aqui empregamos livremente a tripartição tipicamente kantiana entre entendimento, ética e estética. É muito prático para nossos intuitos de brevidade e legibilidade o emprego de categorias que às vezes parecem muito gastas, mas é justamente por serem tão gastas que se torna tão ligeira a troca que propomos entre o leitor e as palavras aqui escritas. Caberia, no entanto, uma observação: A estrutura de um livro, ou ainda, de um sujeito, soa melhor quando conjugadas no plural, “estruturas”. Nos parece que um único escrito, e/ou mesmo um único corpo, estão tão bem disfarçados pelas máscaras que vez ou outra esquecemos que foram nós mesmos que os vestimos para, sobre o palco do papel, encenarem os papéis de “identidade”, de “continuidade”, de “sistema” e enfim, quantas mais palavras que enfatizem a unidade do objeto ao invés de sua ansiosa dispersão puderem ser pensadas. O que chamamos vagamente de objeto, no entanto, possui limites muito frouxos, e se curta compreensão destinada aos seres humanos temos dificuldade de percebê-la, é talvez o exame de sua história a melhor forma de nos atentarmos como aquele que parece um mesmo é capaz de existir como se fosse um outro. Mudam-se as fantasias, trocam-se as máscaras, mas a metáfora alcança seu limite quando esperamos descobrir o corpo verdadeiro escondido por trás desses ornamentos que nos distraem da verdade. A filosofia seria assim o despojar o mundo das fantasias, mas assim que realiza seu fetiche, e o strip-tease chega ao seu fim, a criatura revelada é ou grotesca demais para ser desejada, ou então, pior ainda, é indiferente, não causa qualquer espanto. Levamos então esse corpo atrofiado e atávico para os laboratórios e arrancamos sua pele, catalogamos seus ossos, damos nomes para sua anatomia… Depois de algum tempo confuso e cabisbaixos, os filósofos voltaram a sorrir. Esse corpo não é o corpo. O nu é somente outra fantasia? Arranquem de uma vez a epiderme pálida e seca e encontrem os verdadeiros segredos! músculos, órgãos, células, hormônios, neurônios, genomas, bactérias, vírus, reações químicas, átomos, elétrons…


As obras e autores são entidades múltiplas e escorregadias; o quão fácil é passarmos de um livro para um outro que o seu autor jamais sonhou em ler! A língua é um fenômeno mais complexo e estranho do que a lógica da influência, da proximidade física e afetiva entre um livro e outro, entre um autor e outro… A língua se espalha de formas estranhas; a escritura habita uma geografia própria. 


Quando falamos da “obra de um autor”, nos situamos dentro de uma geografia do estado-nação; cada autor é soberano de sua própria obra, e se a diplomacia é a forma liberal e legalista que os estudiosos encontraram para abrir a economia desse reino - a diplomacia equivale ao estudo das influências, das trocas intelectuais -, a guerra também é um meio legítimo para esburacar a autonomia do autor-obra -  as tensões e disputas entre os diversos países -. 


A flutuação estranha da escritura é similar à globalização e ao neoliberalismo. Porque as palavras atravessam fronteiras quase sem ser percebidas que são literalmente invasões, assim como mercadorias e empresas adentram países de terceiro mundo como se fosse somente fenômeno econômico, sem implicações políticas.


Enfim: as categorias também se desdobram; a transcendentalidade universal poderia se desdobrar e ramificar em muitas outras.


sexta-feira, 9 de junho de 2023

A biografia de Pallares-Burke sobre o jovem Gilberto Freyre E ETC

 A historiadora fez trabalho exaustivo para documentar-se e assim escrever a biografia dos anos de formação de Gilberto Freyre.

Há uma espécie de teoria psicanálise que atravessa todo o seu trabalho, muito embora uma psicanálise discreta, que merece uma investigação e comentário mais cuidadoso, já que repercute e amplia uma língua do objeto em que se debruça; Pallares-Burke, ao biografar a juventude de Gilberto Freyre, se distancia das biografias intelectuais típicas, feitas principalmente por meio das relações entre a obra do biografado com a de outros intelectuais a que teria lido. Não que sua história da formação de Pallares-Burke dispense o método típico da história intelectual, espécie de história dos conceitos que rastreia, a partir das leituras do autor, as influências ou, nos melhores momentos, o arcabouço em que o intelectual pode desenvolver a própria obra, a arqui-linguagem desde onde a sua opera; Pallares-Burke, no entanto, privilegia um ângulo particular em sua história do jovem Gilberto, em que as operações racionais e sistemáticas, os esquemas conceituais postos em sua obra, são consideravelmente elipsados diante das relações afetivas do biografado.

Para a história intelectual, o método psicanalítico-sociológico de Pallares-Burke possui um quê vanguardista, ao situar a produção do conhecimento dentro de uma rede que não é a da sucessão conceitual, dos emaranhados linguísticos e dialógicos que caracteriza, por exemplo, a historiografia de Quentin Skinner, tributária de filósofos da linguagem como Wittgenstein e Austin. Para estudar e compreender a obra de Freyre, essa metodologia da história filosófica-política são dispensadas por uma perspectiva em que o autor é, antes de se fazer sujeito da própria obra, é feito de objeto diante das relações que estabelece com as pessoas, objetos e, claro, livros com que convive. 

É uma historiografia da convivência, e não é surpreendente que fosse escrita como uma biografia, já que antes de ser história da linguagem, esta é uma história do corpo, de como a vida pessoal de Gilberto Freyre abriu caminhos, por meio de suas paixões e afetos, capazes de explicar aspectos diversos de sua grande e variada obra.

"Meu objetivo não será fazer uma análise de semelhantes manifestações literárias ou de influências puramente intelectuais de pensadores ingleses sobre Freyre, mas buscar em seus escritos – especialmente nos artigos de jornal e no diário de juventude – indícios do papel que teve em sua visão de mundo, maneira de ser, estilo literário e opções intelectuais o convívio com ingleses: um convívio direto e pessoal, tanto em sua infância como durante sua primeira permanência no exterior; e um convívio indireto, por meio de suas leituras e de anglófilos, como o pai, que se orgulhavam das tradições inglesas de sua região natal". (p. 13 - 14)

Ao invés de uma historiografia de bibliófilo, metalinguística, "puramente intelectuais", Pallares-Burke, sob forma do gênero biográfico, reestabelece a primazia do corpo dentro da história intelectual. Os livros e autores que Gilberto Freyre teve contato, e cuja leitura possuem grande repercussão em seu pensamento e escritos, antes de serem objetos para sua racionalidade, são em seu trabalho colocados a partir de uma perspectiva do convívio... 

"Convívio": Para os leitores de Gilberto Freyre, é impossível não ouvir nesta simples palavrinhas o eco estridente de seus livros, da ênfase que sua sociologia colocou sobre as relações cotidianas, na vida íntima, a prevalência do erótico sobre o racional, a formação afetiva e cultural de uma subjetividade construída a partir dos meios frequentados, das relações estabelecidas entre as pessoas...

Comento, de maneira breve e rasteira, em como a psico-historiografia de Pallares-Burke, assim como a crítica e opinião geral sobre a obra de Gilberto Freyre, enfatiza sobremaneira as relações amoras, e se o modelo psicanalítico em questão é perfeitamente édipico, isto é, culto amoroso com a mãe e reconciliação e herança do pai, assim também é a biografia de Pallares-Burke: Onde estão afinal os inimigos e rivais de Gilberto Freyre?

Ainda assim, é interessante o que realizou Pallares-Burke, ao propor uma história intelectual em que se tornam proeminentes as relações pessoais e os meios frequentados pelo escritor, e assim, a partir deles, é aberto o caminho para o típico objeto de estudos da história intelectual, os livros e autores que Gilberto teria lido. 

***

Depois de Casa-grande & Senzala, a antropologia deixou de interessar a Gilberto Freyre; se sua bibliografia é repleto de livros antropológicos, me parece que a disciplina, em suas obras posteriores, pouco interessou a Gilberto. Isso é somente uma hipótese, ainda a ser esclarecida; se no entanto o interesse pela bibliografia antropológica se dissipa depois de Casa-grande & Senzala, em Gilberto Freyre permanecerá um traço, tanto em seu perfil quanto em sua obra, que é característico do antropólogo, e mais ainda, do etnógrafo: a obsessão e o gosto pela viagem, o espanto e grafismo do exótico, das estranhas impressões que lhe afligem ao estar entre pessoas e lugares estranhos. 

Se retornamos para o estudo do plano escritural, este pouco tratado por Pallares-Burke, percorre em longo de sua obra verdadeiras línguas relativas a uma escritura etnográfica, capazes de, primeiro, construir descrições daquilo que encontra, de paisagens, roupas, arquiteturas, comportamentos, fisionomias, e embora a visão pareça predominar diante dos outros sentidos, Gilberto também está atento ao olfato, ao paladar, à audição, e talvez mesmo até o tátil...

O que me parece decisivo é que essa língua em que se faz capaz a percepção e construção textual de uma dimensão exterior de caráter descritivo - poderia me referir à "ekphrasico", em referência às antigas retóricas - é que estão subordinadas a certo romantismo, de assim apreender a totalidade de um modo de vida, de um modo de ser - a cultura, a nação -, mas também a uma segunda língua, esta relativa às impressões interiores, os movimentos ocorridos no corpo de quem percebe, na intimidade de sua alma; toda a epistemologia de Gilberto Freyre está presa a essa insistente subjetividade, em que o conhecimento só é verdadeiro se referido como o conhecimento sentido e vivido por alguém. Gilberto Freyre, enquanto etnógrafo, é antes de mais nada um impressionista, e constrói suas descrições a partir da afetação que causam em sua alma. Ricardo Benzaquen se refere ao problema da "auto-estilização" dos livros de Gilberto, e embora toque nas cordas corretas, a questão é ainda mais ampla; a auto-estilização é pelo historiador tratado como um problema estético, e criticado como um excessivo ao ponto de ser descrito como retórico, ornamentação; no entanto, o perspectivismo cubista com que Gilberto Freyre descrevia sua historiografia e obra sociológica, e mesmo as inscrições auto-biográficas que atravessam tantas de suas escrituras - inclusive aquelas de caráter cientifico - colocam o estético dentro da dimensão do epistemológico: sim, conheço, mas conheço somente a partir de mim mesmo, poderia dizer Gilberto Freyre, com certo sotaque estranho, é verdade, que admito ter sido posto por mim, que a pouco estava a ler Jean-Jacques Rousseau. Se a escrita de Gilberto é não só auto-biográfica, mas auto-estilizada, como se quisesse personificar a singularidade de seu autor, se é estetização do seu sujeito, é porque esta é de fato não só a teoria estética e ética do autor, mas também epistemológica; especialmente, eu diria, em Ordem & Progresso, em que a abundância documental de textos auto-biográficos possibilitam sua penetração na história íntima que em Casa-grande & senzala foi possível por observadores: viajantes, cronistas, inquisição...

(Talvez o desaparecimento da bibliografia antropológica após Casa-grande & senzala se relacione a essa escassez documental; a antropologia ali é espécie de antropologia especulativa - a antropologia, afinal, era empregada para se escrever a história colonial; seu saber era forma de tapar os buracos, ou ainda, ampliar, os documentos disponíveis... Uma antropologia, portanto, imaginativa, e para falar como o autor, uma antropologia até mesmo poética, muito diversa dos estudos empíricos preconizados por Franz Boas e pelos continuadores do culturalismo americano, que fizeram da descrição etnográfica seu princípio de trabalho... Com o passar dos séculos, é possível que a multiplicação documental - e também o desprestígio crescente da antropologia teórica, somente reabilitada a partir do estruturalismo de Lévi-Strauss - se fez desnecessário o emprego desse gênero de bibliografia.

Uma outra hipótese é que o passar dos séculos representasse também a evolução e constituição de uma civilização; que Freyre é um escritor evolucionista, isso me parece evidente, ainda que seja seu evolucionismo de um tipo estranho, que preconize a pluralidade cultural dentro da evolução técnica e do bem-estar; mais correto seria, portanto, dizer que Gilberto é um progressista, ou mesmo tecnocrata, características que combinam com outros traços seus, como o de engenheiro e reformador social. Os estudos antropológicos estariam, portanto, relacionados à fases primavas da sociedade; em Casa-grande & senzala, grande parte das referências à obras antropológicas se concentram no capítulo em que se estuda o indígena e sua contribuição para a gênese da sociedade brasileira. Com o progresso da civilização brasileira, seria natural que os estudos antropológicos, naquele tempos dedicado às populações primevas e selvagens, se fizesse desnecessária).


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O sujeito sempre estabelece um gênero de simbiose com seu objeto de pesquisa. Não é de se espantar que Pallares-Burke, depois de tão demorado e cuidadoso mergulho feito dentro da escritura que cruza e vai além da obra de Gilberto Freyre, escrevesse uma biografia em que se evidenciam os aspectos eróticos e terrenos. O grande livro em que Ricardo Benzaquen percorre tortuosos caminhos para conseguir sistematizar e conceituar os escrito de Freyre, Guerra e paz, deixaram evidente como Casa-grande & senzala possui a peculiaridade, em relação às ciências sociais hegemônicas, depor em jogo e representação aos "império das paixões" (p. 72). As páginas desse livro, ao narrar a formação e história do Brasil patriarcal, nos mostram cenas repletas daquilo que Benzaquen chamou de hybris; um deslocamento significativo: não quer se contar sobre a história política, dos chefes de governo, do que os dispositivos oficiais, em sua pomposa retórica, deixaram registrado; e embora seja inegável a importância do meio de produção - o engenho latifundiário e escravocrata - dentro da construção do mundo colonial e da civilização brasileira, não quer o historiador de forma alguma verificar estatísticas, verificar gráficos, pensar em demografia ou fluxos de caixas. Até mesmo os grandes homens são desprezados, na medida em que não são meios para se conhecer a mundaneidade, a vida conforme ela ocorria dentro das casas-grandes e senzalas, engenhos e vilarejos. 

Inevitável se referir à historiografia de Freyre como dramática; está, afinal, desinteressada de quase tudo que não demonstre o corpo e suas proximidades; é uma escritura, a de Casa-grande & senzala, muito especialmente, que coloca em performance dessa zona baixa, mesquinha, menor, e entendam a justeza com que emprego essa palavra: feminina, cotidiana, esquecida dos grandes livros de História. 

A historiografia freyreana multiplica regiões da vida social que a ciência histórica excluía, silenciava. No plano metodológico, é inevitável a importância de Casa-grande & senzala, e embora me desagrade as palavras pomposas, diria mesmo ser revolucionário. Evidente existir outros historiadores e cronistas que colocavam essa região do baixo e menor por escrito (Eduardo Prado, que Freyre saúda como mestre e de quem encontrou interlocução, incentivo e mesmo orientação intelectual em sua investigação), mas certamente não houve ninguém, mesmo que dentro de um livro classificado recorrentemente como assistemático, desestruturado, etc, reunisse tantas fontes textuais e devidamente enunciasse o projeto de escrever uma história do brasil, de reconhecer o caráter brasileiro, por meio dessa busca do mundo íntimo.

Sobre a aversão que Gilberto Freyre sentiu pela retórica - falo de modo grosseiro, mas de modo algum falso -, trata-se não somente de aversão estética a uma língua empolada e palavrosa; a língua, para ele, também possui uma dimensão epistemológica. A retórica, que por Gilberto é sempre referente aos excessos e arrojos dos políticos, oradores e poetas de mesa de jantar, não consiste de maneira alguma em tentativa de por os acontecimentos, objetos, pessoas, relações, sentimentos, etc, na forma de palavras; seu intuito é agradar, impressionar, esmagar; não é fiel jamais: é caricatural ou hagiográfica. 

Os discursos e artigos políticos, por exemplo, devem ser lidos com luva de pelica. Neles sempre há a tendência de mentir, exagerar para o lado que for mais conveniente. A retórica é a língua interessada, raciocinada, calculada; mas, contraditoriamente, é muitas vezes tratada como uma língua apaixonada. A política, para Gilberto, é o espaço mais propenso às hybris discursiva; por isso, diante dela, quase sempre parece querer recuar para o ceticismo.

Em Ordem & Progresso, livro em que a política é tema central, não por acaso tanto se reafirma tratar de uma historiografia cubista, em que o autor procura equilibrar as diferentes perspectivas e, não obstante recolher a síntese sociológica que persegue em cada livro seu - o caráter brasileiro -, constrói o tempo todo uma retórica da distância, como se não quisesse se intrometer nas discussões. Ao citar ou glosar alguma opinião, é comum indicar que talvez estivesse exagerada, ou que cometesse equívocos - até mesmo perdoáveis e compreensíveis - por conta da paixão que animava suas palavras. Ainda assim, como disse, trata-se afinal de uma retórica. 

Benzaquen afirma que Casa-grande & senzala, em sua narrativa e descrições das ações e psicologia dos homens e mulheres do passado, faz entrever a hybris, o excesso das paixões, o descontrole do desejo, como verdadeira teoria antropológica, a leitura de Ordem & Progresso sugere coisa muito diversa. 

Sabemos que, embora um dos mais importantes e discutidos autores da história intelectual brasileira, o interesse pelos escritos de Gilberto Freyre costuma girar ao redor da década de 30, quando muito 40. Casa-grande & senzala é de longe a estrela mais brilhante, e diante das demais, menores e mais fraca, brilha como verdadeira rainha, e serve de norte para quase todas as investigações. Na constelação, é verdade, diversos astrônomos também se interessam por Sobrados & Mucambos e Nordeste, também obras desse primeiro Gilberto Freyre. Uma estrela mais distante, contudo, chama atenção por seu brilho solitário. Tempo morto e outros tempos, o diário publicado em 1975, é caso excepcional, porque talvez seja a única parte da obra freyreana tardia, posterior a década de 50, a despertar amplo interesse. Talvez, cogito, isso se explique por conta de sua configuração formal, por ser diário, autobiografia, autoficção, e enfim, por atravessar tão visivelmente por tópicas que hoje se referem como "literatura do eu" e que despertam atenção da crítica e do público. De resto, todas as demais, quando lembradas, esses pontinhos costumam se limitar ao serviço de remendar os buracos que o estudo dos astros maiores exigem; sua citação, afinal, quase sempre atendem às necessidades exegéticas dessas obras mestras, e como peças únicas, singulares, despertam poucos olhares.  

Importante, no entanto, me contradizer parcialmente; há, na verdade, diversos estudos sobre a obra tardia de Gilberto Freyre; são, contudo e em grande parte, aqueles que atravessam ela por dentro do campo da história política, e que, de forma semelhante ao praticado por Guilherme Mota nos anos setenta, estudam os escritos de Freyre a partir da posição ideológica e relativa ao salazarismo e o colonialismo português na Ásia e África.

Quando observamos os escritos freyreanos a partir de uma temporalidade mais extensa, e tentamos situá-la dentro de uma longa duração, torna-se contudo impossível não observar, em seus aspectos estruturais - me refiro em termos de "estrutura", que não me agrada, porque foi esse o parâmetro entregue pela bibliografia; me refiro diretamente a uma história da recepção, mas a uma recepção que atua ainda hoje; a forma com que a obra de Freyre se arranja diante de meus olhos, afinal, não é livre, não é espontânea, não é natural; seus livros não se oferecem a mim como se guardassem a substância do sistema ou pensar freyreano; se falo em "estrutura", não é porque há por si só uma organização formal ou conceitual que cifra o "segredo" do livro; se falo em "estrutura", é porque conheço a Gilberto Freyre graças à prisão projetada por Ricardo Benzaquen, imposta a mim e a grande parte dos estudiosos como condição, limite, possibilidade, de saber, pensar e julgar aquilo que está reunido e associado ao nome próprio Gilberto Freyre -; entre Casa-grande & senzala e Ordem & progresso há pelo menos uma descontinuidade flagrante; Benzaquen caracteriza o narrador do primeiro e mais clássico livro de Freyre a partir de uma peculiaridade por mim muito referida: para ele, não é somente o estilo literário, tão peculiar para uma obra historiográfica, que está subordinada a seu autor, como se sua unicidade fosse expressão do self autêntico e único que lhe pariu: Casa-grande & senzala, assim como o suor, as batidas do coração, os padrões neurológicos do cérebro, foram tornadas, pelo esforço do próprio autor, de sua insistente escritura autobiográfica que atravessa toda sua obra, em extensões do corpo e da subjetividade de Gilberto Freyre, e assim Benzaquen caracteriza essa auto-estilização como forma não só de estetizar a historiografia, mas também o próprio autor; é, assim que Benzaquen diz ser irônico que as fugas e desprezo pelos velhos retóricos reconduziram Freyre a uma nova retórica, em que toda a força da língua parece empregada para expressar ninguém mais que o próprio autor: 

"A autenticidade, portanto, transforma-se em um poderoso motivo retórico em CGS, convencendo-nos de que, não só quando Gilberto se aproxima de seu objeto como membro da sociedade que estuda, mas também quando sua abordagem segue um ritmo acadêmico e indireto, mais ou menos atento às evidências da documentação, estamos diante do mesmo impulso de natureza confessional" (p. 194).

A estetização, e esse é o perigo que Benzaquen tentará desconjurar no final de seu livro, não se refere apenas ao estilo e forma do livro, mas também aos próprios conceitos e representações que o historiador fará do estilo colonial; o que Benzaquen pretende dizer é que a auto-estilização não penetra somente o estilo, não se refere apenas à linguagem instrumental que pacificamente deve server ao conhecimento do passado, mas ao próprio passado

"Nesses termos, não acredito que seja descabido sugerir que a forma de Gilberto argumentar, “usando a mesma língua que todos falam” e identificando-se tão fortemente com seus antepassados, acabe por produzir a sensação de que os objetos que estuda permanecem vivos e influentes através do seu relato, quer dizer, vivos porque influentes na confecção do seu texto. CGS, então, deixa de ser apenas um livro para transformar-se em uma espécie de casa-grande em miniatura, em uma voz longínqua mas genuína, legítima e metonímica representante daquela experiência que ele próprio analisava, enquanto o nosso autor se converte, até certo ponto, em personagem de si mesmo, como se escrevesse não só um ensaio histórico-sociológico mas também as suas mais íntimas memórias".

A retórica da autenticidade é um verdadeiro pântano em que todos estarão presos atolados: a escrita, o conteúdo, o autor. A repetição, portanto, é sempre tripla; os conceitos por meio dos quais Benzaquen funda sua leitura de Casa-grande & senzala são metonímicos. Ao mesmo tempo, a hybris, por exemplo, caracteriza à dimensão literária do livro, ao estilo e voz do narrador, que em seu ensaísmo corrido, a argumentação desorganizada, o tom oralizado e de conversa, está em relação mimética com os personagens e situações por eles representados, igualmente agitados por um sentimento erótico e passional que ultrapassa a simples e desumana racionalidade da economia - seja a economia de um tratado, seja a de um modo de vida -. E ao fim e ao cabo, Benzaquen afirma que o autor, a pessoa Gilberto Freyre, por meio de sua obra, igualmente se caracteriza e se estiliza, coroando a terceira parte dessa triple mimese.

A "retórica", a que Benzaquen se referiu, se encontra justamente na necessidade da "obra ter que provar o homem", nessa tripla subordinação que Freyre impõe aos seus escritos e que ao fim e ao cabo fazem retorná-los a sua pessoa.

Em Ordem & progresso, contudo, desaparece a referida hybris: o narrador, ao contrário, insistentemente quer se distanciar da paixão. Essa é a condição que encontra para escrever e, também, para julgar: porque a posição do narrador de Ordem & progresso é muitas vezes a de juiz, aquele cuja imparcialidade, frieza e distância possibilita pesar e avaliar, por meio da razão, quais foram os excessos cometidos, e assim esfriar as paixões dos discursos e relatos que, proferidos no calor do momento, apenas nos afastam da verdade histórica. Freyre não ocupa a posição de juiz somente no sentido de que, como todo historiador, exerce o poder de escolher e avaliar antes mesmo de iniciada a escrita da história; tantas vezes que recorrentemente coloca por panos quentes, abranda opiniões, faz reparos e emendas a um enunciado, ou ainda, para manter-se dentro dos conceitos de Benzaquen, busca equilibrar os antagonismos da época por meio de seu discurso analítico de historiador.   


Se Gilberto Freyre jamais foi capaz de conceber qualquer teoria da língua ou linguagem em que esta fosse objeto de reflexão autônomo, é primeiro porque esta sempre lhe foi pensada a partir da condição de documento, da possibilidade de representar o passado, mas também porque a autonomia era sinônimo de artifício: e para Gilberto Freyre, se formos verificar os mais variados

O que Gilberto Freyre prestou atenção pouco interessou à historiografia pretérita; era, afinal, um mundo desimportante para a compreensão do passado e da sociedade, pretérita ou atual. Em seus excessos, Gilberto Freyre começou a parecer um filólogo ou erudito totalmente distraído  colecionar palavinhas e se entreter com o pitoresco dos jardins e os mais variados tipos de árvores e flores com que embelezavam a vista dos sobrados, se passa a enumerar prolixamente os detalhes de indumentária, a detalhar o entra e sai da moda por meio de manchetes de jornais, tratar de maneirismos e gírias e tentar por em cena a vida cotidiana, a muitos essas minúcias e muitas outras, como escreveu Antônio Cândido em 1943 ( Estado de São Paulo, 15/07/43)

 A historiografia de Gilberto Freyre não se trata o excesso, propõe uma racionalidade extra-racional, uma razão alternativa, diversa  uma reabilitação da figura das paixões

Não custa lembrar que, para uma corrente crítica bastante significativa (ver Guilherme Mota e Luís Costa Lima), Casa-grande & senzala e os demais escritos de Freyre estavam desqualificados academicamente; eram considerados desprovidos de rigor, teoricamente inconsistentes e, melhor ainda, desatualizados. Fosse pela crítica orientada pela sociologia e marxismo paulista, como fez o ensaio de Mota, ou ainda, já no fim dos anos 80, pelo estruturalismo de Costa Lima, Casa-grande & senzala estava enquadrado de maneira muito clara dentro do difuso conceito de ideologia. As críticas desses dois autores, e falo isso sem retirar as virtudes analíticas e intelectuais de ambas, porque considero as duas muito boas, eram também marteladas com que se demoliam o ídolo e monumento que havia se tornado Gilberto Freyre. Além de estudos acadêmicos, sociológicos e filosóficos, eram portanto atentados morais, manifestos contra o mestre dos Apipucos e de sua obra. Esta circunstância está muito claro quando Mota, antes de mais nada, subordina a obra freyreana à aristocracia patriarcal e decadente (e isso, contudo, não quer dizer que seu estudo se esgote no simples reflexo da classe na obra e subjetividade). Costa Lima, que escreveu pouco mais de dez anos depois de Mota, já estava adequado às novas teorias literárias e intelectuais, que buscam pensar a obra em relativa autonomia do social e econômico, mas mesmo se reenquadra a Gilberto Freyre dentro de uma história intelectual brasileira, i.e, coloca o livro dentro de uma linhagem de estudos sociais brasileiros que passa por autores como Silvio Romero, Euclides da Cunha, Oliveira Viana, etc, faz isso com evidente intuito de crítica ideológica, para colocar Freyre e toda essa linhagem de autores dentro de um discurso relativo às classes dominantes. 


este é, como já enfatizei, o seu contraste com a história intelectual fria que muitos desenvolvem por meio do cotejo de diferentes obras. Se Gilberto possui uma língua para grafar a repercussão dos eventos, pessoas e lugares sobre suas paixões, Pallares-Burke também emprega língua similar para contar a história da formação do autor; já no título de um de seus artigos, "Gilberto Freyre e a Inglaterra: uma história de amor", o aspecto passional praticamente se entrega e se exibe, como um um peixe que pula para fora do lago à espera de um pescador atento para capturá-lo. 

Farei um breve catálogo dessa língua sentimental e afetuosa que Pallares-Burke emprega em sua escritura biográfica de Gilberto Freyre; empregarei o artigo já citado, e somente amostras recolhidas já as suas primeiras páginas; ultrapassar o princípio do trabalho seria apenas se alongar em repetições. Fazemos, de certa maneira, como os psicanalistas, colocamos o artigo para se deitar no divã e identificamos espécie de ideia fixa; diferimos do psicanalista, no caso, por não procurarmos sintomas, somente a demonstração do léxico amoroso, afetivo, paternal, edipiano, que em poucas páginas, já se tornam não somente visíveis, mas mesmo repetitivas:


amor

convívio direto e pessoal

    p. 13

convívio indireto

como o pai, [...] se orgulhavam das tradições inglesas de sua região natal.

autêntico brasileiro: extremamente devotado

Muito na Inglaterra seduzia Freyre

A língua [...] o atraía pela sua simplicidade

origens do amor: [...] infância

sedução

cioso de suas origens

    p. 14

a sentimentalidade que guardava no íntimo

lembrava-se Alfredo com carinho dos dois livros que ganhara do pai

Devia a seus muitos amigos britânicos [...] educadores em Recife [...] sua anglofilia

dívida empagável

entusiasmo

esse mestre anglicano tenha sido qualificado de “figura angélica”

luxo impossível

Destinado pelo “pai lusófilo” 

Alfredo transferiu o sonho para seus filhos Gilberto e Ulisses

É com imenso orgulho que se refere à cultura que Gilberto sorvera in loco, ao seu Phd na Universidade Columbia

É com carinho que lembra que deles e de seus próprios amigos ingleses desde sempre recebera os tão desejados cachimbos, fumo e uísques britânicos, três de suas grandes paixões

Alfredo só iria conhecer a tão amada Europa aos 77 anos de idade, em companhia de Gilberto, numa viagem qualificada de “memorável”, em que muito lhe dava a sensação de “um delicioso déjà vu”

    p. 15

Ao lado da figura paterna, a de Mr. Williams é, ao que tudo indica, de importância significativa na vida de Gilberto Freyre.

Seguramente por sugestão dele, As viagens de Gulliver, de Swift, foi o primeiro livro que o menino Freyre leu.

influência de Mr. Williams

Não é preciso ser psicólogo para perceber a grande importância na formação de um indivíduo dos estímulos ou desestímulos que se recebem na infância

"o querido inglês Mr. Williams: o melhor de quantos mestres já tive”

    p. 16

preocupações

flerte

amor

um outro mestre [...] teria revelado a Gilberto um tesouro [...] que se revelará marcante na sua trajetória intelectual: o ensaísmo inglês.

    p, 17

o dileto aluno que chamava de “son”

casar-se, ou pelo menos namorar, só com autênticas anglo-saxônicas (e abandonar “a encantadora italianazinha”), naturalizar-se norte-americano, receber os últimos polimentos em Oxford e, finalmente, tornar-se um “novo Conrad”

se encantou com a jovem Helen, “tipo perfeito de ‘Anglo-saxon girl’”

    p. 18

 Já é mais do que o suficiente; nosso objetivo é somente introduzir essa língua desde onde Pallares-Burke pensa e escreve a história do jovem Gilberto Freyre. 

 



GILBERTO FREYRE: RITUAL E TRADIÇÃO

[PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Gilberto Freyre e a Inglaterra: uma história de amor. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(2): 13-38, outubro de 1997].

"Os brasileiros pecam por não se aperceberem da imensa importância dos rituais para a vida e dignidade das instituições. Tudo em Oxford, lembra Freyre aos recifenses (que assistiam impávidos à destruição dos cerimoniais na Faculdade de Direito), é feito de acordo com rituais que não são “velharias” dispensáveis, como pensa o “delírio modernista” crescente, mas se revestem de importantes significados estéticos e morais (cf. Freyre, 1979, 1, p. 280; 2, p. 173 passim)".


Enlaces entre ética e estética; se acrescentado a questão epistemológica, estaríamos falando como kantianos. 


"ao lado da submissão às convenções, valoriza-se a espontaneidade criativa; poesia, filosofia e ciência coexistem em harmonia; o povo é regido pelo bom senso (que chama despretensiosamente de common-sense) bem como pelo misticismo e pela poesia (cf. Freyre, 1979, 2, p. 302, 303); extremos doutrinários e contradições teóricas são sabiamente conciliados em “meios-termos” (cf. Freyre, 1942c, p. 149); e não há outro lugar onde melhor se equilibrem as tendências especulativa e ativa (cf. Freyre, 1975, p. 22)


O despretencioso common-sense colide despretenciosamente com repercussões do dialeto pós-kantiano... o enlace das faculdades...

ai, minha fama de maldito, 2

O after na casa de Pedro Fernandes estava uma bosta. Gente fumando maconha pelos cantos e fazendo aquela média com todo mundo. Artifício emo...