domingo, 29 de dezembro de 2024

A ZOOLOGIA DE HEGEL

1.

a primeira obra de arte foi uma bosta. 

hegel relaciona o impulso-de-arte com o desejo e necessidade de cagar. diz ele mais ou menos que, diante do material inorgânico expelido pelos processos metabólicos, o homo faber se apossa da matéria e impõe a ela às formas da imaginação.

para hegel, o cocô é um conceito do intestino.


2.



hegel pensa a morfologia animal igualzinho pensa a filosofia: tudo tende ao absoluto e somente o absoluto é a revelação daqueles traços antes desprovidos de sentido.


3.



o homem - é a síntese e superação em que todos os traços insignificantes (como eram os traçados que os nhambiquaras faziam em suas cabanas: formas irregulares e desprovidas de sentido, grafismo estúpido que não compreendeu a natureza linguística da diferenciação, e que por isso não realizou o seu intuito secreto) de todas demais espécies; para hegel, todas as criaturas querem, mesmo que não saibam que queiram, ser o homem. para hegel, toda a natureza é acometida por essa profunda inveja da anatomia humana. só ela que é a realização perfeita e harmônica da matéria orgânica com a inorgânica; o homem, criatura perfeita, possui a complexidade interna (fisiológica) do verme, sem excluir a beleza externa (fisionômica) do inseto. sua carne é uma dialética viva.


4.


o progresso da dialética hegeliana, apesar de retornos, avança perpetuamente até a perfeição: o homem, o conceito, o estado...


5.


ao falar do canto das aves, se explicita como a hierarquia da história natural (a taxionomia morfológica) se relaciona diretamente a uma hierarquia da manifestação espiritual: a dotação morfológica da ave, que permite que canta, a coloca um passo mais próxima do conceito.


6.

para hegel a morfologia dos animais é compreendida como o produto do conceito. a matéria orgânica do corpo é formado, assim como nas artes plásticas a pedra, sob o intuito do conceito, é formada.
 
para hegel a história natural é o desígnio de uma inteligência eterna; o conceito sempre estava lá, desde o princípio, desde sempre aspirando ascender das formas baixas do monera até atingir a perfeita consciência de si sob a forma da linguagem articulada. 

a aparição do humano é revelação do conceito ideal de corpo que já era intuído pela vida mais rudimentar. o primeiro monera já queria ser o homem.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

A SUTIL ARTE DE CUIDAR DE SEUS ESCRAVOS (Sêneca, carta 47)

Quais são os requisitos para poder ensinar corretamente sobre a administração de uma grande fortuna? Ora, se queremos nos tornar mais sábios, é melhor começarmos por aprendermos quais são as fontes da sapiência e quais são as fontes da estupidez. É melhor nos precavermos para não sermos enganados por farsantes e amadoras, que para roubar nosso patrimônio, fingem ter um saber que no entanto nunca deram provas de ter. 

Para se tornar mestre nas artes econômicas, tal qual acontece em toda arte, é então muito útil saber discriminar entre os farsantes, e gastar nosso curto tempo somente com as lições daqueles que tiveram sua sabedoria testada. A experiência de um sábio é uma questão importante para avaliarmos o valor de seus conhecimentos, e pode ser muito útil para prevenir a nós, reles estudantes, a não cairmos nesses golpes conceituais fundado exclusivamente sobre as fantasias de alguém.

Ora, se assim é com a ciência das riquezas, pensamos sobretudo enquanto gestão do tesouro, ou seja, do acúmulo de dinheiro ou mercadorias, e facilmente esquecemos de como é a força de trabalho que efetivamente cria tais riquezas. Assim, além desse saber do tesouro, a que tantos economistas e comerciantes se dedicam, é necessário aqueles jovens, especialmente aqueles destinados a se tornar líderes e empreendedores de sucesso, que tomem também conselhos de como melhor administrar seu capital humano, já que é deles que provém toda a totalidade de seus ganhos.

Não podemos, contudo, deixar qualquer sofista discursar sobre a arte patronal da administração de seus serviçais. Muito melhor emprego de nosso tempo encontraremos a ler a sabedoria provada pela experiência e pelos costumes de um Sêneca, ao invés de dar ouvido às técnicas que ainda carecem de prova empírica. As teorias precisam ser testadas pela prática; e que exemplo mais feliz de prática administrativa que a do afortunado Sêneca, cuja propriedade era reconhecidamente próspera? E como todo homem de fortunas romano, a riqueza de seu patrimônio não se acumulava somente em metais, mas também em carne viva. Como todo patriarca descendente das famílias da nobreza, Sêneca adquiriu um enorme contingente de riquezas, e sobretudo os vários escravos domésticos, cada um deles educados para uma função específica. Nesse tempo que conviveu tão próximo com essa gente baixa, pensou e refletiu tanto que escreveu um dos mais sábios tratados sobre a administração da propriedade escrava da história, a célebre Carta nº 47 que redigiu ao jovem e inexperiente Lucílio.

Desejava instruir seu amigo na arte patriarcal da administração econômica. Ali, ensina que é melhor cuidar do patrimônio escravo com parcimônia, e evitar os excessos sádicos que muitos patrões cometem contra sua criadagem. Isso, para a sociedade escravocrata da época, acostumada a tratar os escravos como burros de carga, deveria certamente soar como um risco aos costumes e à toda vida econômica da nação romana. Que Sêneca recomendava tratar bem a seus escravos é porque pensou contra o costume, e deu com uma melhor técnica administrativa dos cativos. Bem, dizem que o saber se aperfeiçoa pela experiência. Aprendemos a arte de amar somente ao custo de corações partidos. Quantos escravos teve de Sêneca machucar antes de perceber que esses métodos violentos eram antiquados, e que era muito mais sábio deixar que o escravo - especialmente os melhores e mais naturalmente dotados - recebessem algumas regalias, alguns confortos, alguns presentes e favores, como comer na mesa e até mesmo o direito de falar com o patrão?

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Encerro aqui minhas reflexões porque já é tarde e tenho sono depois de um longo dia escrevendo sobre o nascimento da vida e a morte de deus. Meu intuito com essa breve notícia foi somente dar ao leitor alguma oportunidade de travar contato com isso que afinal foi o estoicismo, em todas as suas as partes, e não apenas aquelas que os youtubers e influencers de filosofia procuram mostrar. Por isso, me dei ao trabalho de escrever esse breve ensaio sobre a tão pouco falada arte que os estoicos inventaram com o intuito de instruir os futuros patriarcas e prepará-los adequadamente às suas funções de mando e administração de patrimônio.

Especialmente, importa esclarecer qual seria a verdadeira finalidade do estoicismo. Essa transparece quando tomamos os tratados morais de Sêneca não somente na lógica do autocuidado com que geralmente se alardeia, mas como uma verdadeira arte do cuidado patronal. Nada disso é por acaso, é claro: quem melhor do que um senhor de escravos para escrever como os senhores devem administrar sua economia (ekos-nomia)?

Que essa "filosofia" da gestão dos escravos hoje entusiasme aos patrões, é muito compreensível. Mais estranho, no entanto, é porque produza tanto fascínio em gente que vai passar a vida ganhando mal e sofrendo da grande instabilidade econômica e existencial de nossa época.


PS: Sêneca apenas está explicando para a classe dominante da melhor maneira de tirar proveito do corpo de seus escravos domésticos. Ou ainda: Como ter escravos melhores 101.

Ele é um grande ideólogo da arte econômica (a palavra oikonomía se referia à arte de administração patrimonial, ou seja, do tesouro e dos escravos). era um saber destinado aos futuros patriarcas, e visava instruí-los a tratar um escravo da mesma maneira que parecia correto um governante superior e virtuoso tratar mesmo ao povo mais vil. Não que fosse bondade: era somente porque era do interesse da casa-grande. Perto dos senhores, é importante escravos lindos, bem-educados e cheirosos. Fabrica-se uma pequena aristocracia da servidão para melhor servir os patrões. E também para embelezar a casa, é claro. O resto, a massa de imundos e doentes, feio e mutilado pela exploração, fica bem longe, ou no eito, ou recolhido em sua senzala.

Não se deixe enganar pelas palavras belas dos patrões e de seus lacaios alienados que desejam envenenar-lhe com imagens grandiosas e heróicas de quem na verdade era uma grande canalha. Sêneca era um escravista e escrevia para ensinar escravistas. Esse era o fim de suas reflexões sobre a moral. Era esse o fim pedagógico último de sua filosofia estoica: formar filhos do patriarcado dirigente, tal qual aquele Lucílio para quem escrevia.

A arte econômica de Sêneca tem o seguinte fim: Perpetuar uma estirpe no poder. Manter os direitos de propriedade dos escravos e terras. Não tomem Sêneca como um filósofo liberal, que acreditava na igualdade humana. Escreve, esse ideólogo da escravidão o seguinte, com o intuito de contradizer qualquer um que viesse a entender suas lições como um gênero de abolicionismo; trata-se, na verdade, apenas de uma outra pedagogia da dominação: "eu proponho que escravos respeitem seus mestres em vez de temê-los", escreveu Sêneca no parágrafo 19 da Carta 47.

Se examinamos o documento, podemos verificar que o autor esclarecia sua proposta antes aprimorar a arte da escravidão, indicando que a educação da mão-de-obra escrava é importante sobretudo para a vida doméstica ordenada e bela. 

Era maneira de se antecipar a quem sustentasse, contra Sêneca, de que ele estava de alguma forma defendendo a" libertação dos escravos em geral e roubando senhores de sua propriedade", simplesmente porque propõe "que escravos respeitem seus mestres em vez de temê-los". (parágrafo 18)

Claro, é muito conveniente aos donos de patrimônio que estejam sendo disseminados esse gênero que naturaliza a escravidão como ordem natural. Existe muita gente ganhando dinheiro para disseminar esse saber da exploração da mão de obra. Mas não se deixem enganar pelo discurso adocicado do amor ao subalterno: ele é pura hipocrisia. No fim do dia, sabemos quem vai dormir na senzala, passando frio e fome, e quem quem vai dormir na casa-grande, cercado de ouro e luxo.

 Muitas filosofias constituem antes em um sistema de mentiras do que de verdades. Os ideólogos podem repetir mil vezes que Sêneca dava lições de fraternidade e amor universal; qualquer um que lê seus escritos, no entanto, sabe bem o que ele verdadeiramente fazia e pensava; ora, não é Sêneca justamente aquele a quem Barthes caracterizou pela hipocrisia dos ensinamentos? 

"O amor das riquezas, ao longo da história da Filosofia, se fez um tópos pejorativo, mas sempre à custa de uma hipocrisia constante: Sêneca, o homem dos oitenta milhões de sestércios, declarava ser necessário desfazer-se de imediato das riquezas".

(BARTHES, R. Sade, Fourier, Loyola, p. 96, acrescido de pequenas modificações) .

Escondida nessas lições de amor e fraternidade que hoje são verdadeiros sucessos editorial entre as editoras mais duvidosas, se enfia essa ideologia criada para a formação dos jovens senhores. O estoicismo é pouco mais do que isso: uma arte da escravidão suave.

ps 2: 

1. primeiro, evidente que existe mobilidade social em Roma. toda sociedade, mesmo as mais estamentárias, possuem uma flexibilidade na divisão do trabalho. escrevo isso pra me referir ao epiteto: que tenha ele se tornado filósofo é menos preciso do que a verdade: ele se tornou professor. isso era uma função exercida por escravos e ex-escravos. os romanos verdadeiramente livres se educavam para trabalhar com a coisa pública, e o ensino era considerado uma arte privada. repare que os professores de sêneca são todos estrangeiros: Átilo e Sótio eram estrangeiros vindo de Alexandria, e não cidadão romano. Ensinar filosofia era coisa de gente inferior, os verdadeiros aristocráticas aprendiam ela para depois ir às coisas públicas e sérias.

2. Assim Sêneca começa sua carta: "Fico feliz em saber, através daqueles que vêm de você, que vive em termos amigáveis com seus escravos. Isto convém a um homem sensato e bem-educado como você". Um homem bem-educado sabe como convém tratar a criadagem para conseguir ter sua fidelidade" Sêneca diz ficar feliz quando vê alguém tratando bem aos seus escravos, porque essa é a melhor maneira de um homem culto e erudito educar os seus servos. SÊNECA NUNCA QUESTIONA A HIERARQUIA ENTRE HOMENS SUPERIORES E INFERIORES. “Viva com seu inferior como você quer que seu superior viva com você", ele recomenda, e não viva com todos os homens como se fossem seus iguais. Sêneca defendia a escravidão.

3. Tudo que Sêneca escreve se refere à educação de escravos domésticos, e não aqueles que realizavam trabalhos pesados em oficinas e sobretudo eitos agrícolas. Reparem que, quando passa a denunciar o mal trato de escravos (emprega até mesmo imagens grotescas sobre vômito e secreções corporais), ele se refere exclusivamente dos ESCRAVOS DOMÉSTICOS, treinados para servir a família no lar, e que por isso, precisavam conviver com intimidade e proximidade. Sêneca ensina essa convivência aos senhores, para que não estraguem seus escravos com seus abusos.

Lembrará dos bons tempos da escravidão, quando escravo e senhor não eram inimigos, e até mesmo conversavam; diz Sêneca que essa educação criava escravos verdadeiramente fiéis, e que por isso deveria ser estimulada. O bom escravo é entendido por ele como um cão fiel bem adestrado pelo dono:

"Os escravos dos dias passados, que tinham permissão para conversar não só na presença de seu amo, mas na verdade com ele, cujas bocas não estavam caladas, estavam prontos a expor seu pescoço a seu senhor, a trazer à própria cabeça qualquer perigo que o ameaçasse; eles falavam na festa, mas ficavam em silêncio sob tortura". (parágrafo 4)

SÊNECA ESCREVEU UMA ARTE DA ESCRAVIDÃO, DE COMO ESCRAVIZAR MELHOR. COMO TER ESCRAVOS MAIS FIÉIS E SOLÍCITOS. É UM ENSINAMENTO AOS JOVENS HERDEIROS QUE TERÃO QUE ADMINISTRAR AS ECONOMIAS DOMÉSTICAS DOS PAPAIS PATRIARCAS.

4: sobre a palavra humanitas, que você se referiu, mas que fiz questão de verificar no original em latim para ter ser certeva que ela não é empregada. Na verdade, mais uma vez você demonstra não conhecer nada de história romana. Vou lhe explicar de graça mais uma vez:

Em Roma, humanitas não era empregada no sentido de uma humanidade universal e isonômica, como se faz na modernidade ao falar, por exemplo, em direitos humanos. O sentido que a palavra tinha em Roma o era justamente o oposto; se referia não à humanidade como dotada de um direito comum e universal, mas sim a um processo pedagógico e educativo restrito à nobreza, em sentido parecido com que se referiam a paideia em Atenas.

Ou seja, a humanitas descrevia as virtudes não de todo o gênero humano, mas daqueles homens livres , donos de escravos e propriedades. Esse uso de humanitas remete a um outro conceito romano, que na modernidade também teve seu sentido desviado: quando em Roma se falava em artes liberais, se referia às artes próprias dos homens livres; trata-se de um conjunto de prescrições doutrinárias e técnicas que todo cidadão romano elevado deveria ter, como conhecimentos em retórica, dialética e eloquência, saberes administrativo relativos à economia da casa, conhecimento profundo na legislação e nas práticas do estado, etc. São VIRTUDES QUE DEVEM TER OS ADMINISTRADORES: a arte da fala para o tribunal e parlamento, a ciência da economia da casa e do estado, etc.

Portanto, humanitas sequer tem a ver com universalidade humana, no sentido isonômico moderno; e ao contrário, é um conceito fundado pela distinção entre homens educados para serem senhores e homens educados para serem escravos, entre quem tem a paideia aristocrática e quem se educa com as ars técnicas e operárias (desde o trabalho doméstico, até a produção agrícula e o exercício de artes menores como a medicina, a carpintaria, etc):

"Outro escravo fatia as preciosas aves de caça; com traços seguros e mão hábil ele corta fatias selecionadas ao longo do peito ou da coxa. Companheiro infeliz, que vive apenas com o propósito de cortar perus corretamente – a menos que, de fato, outro homem seja ainda mais infeliz do que ele, que ensina esta arte por prazer, ao invés de quem aprende isso por dever" (parágrafo 6)

O escravo se destina a aprender essas artes manuais, as artes dos servos, e não as artes do homem livre. isso se chama divisão do trabalho. A pedagogia que Sêneca propõe ao escravo é uma pedagogia da servidão: aprender a ter prazer e amor ao servir ao mestre. É uma fábrica de cordeirinhos. É educa-los para a servidão.

Se você verificar o texto em latim, verá que se escreve o seguinte:

"Alius pretiosas aves scindit; per pectus et clunes certis ductibus circumferens eruditam manum frusta excutit, infelix, qui huic uni rei vivit, ut altilia decenter secet, nisi quod miserior est qui hoc voluptatis causā docet quam qui necessitatis discit. 

ou, em português:

"Outro escravo fatia as preciosas aves de caça; com traços seguros e mão hábil ele corta fatias selecionadas ao longo do peito ou da coxa. Companheiro infeliz, que vive apenas com o propósito de cortar perus corretamente – a menos que, de fato, outro homem seja ainda mais infeliz do que ele, que ensina esta arte por prazer, ao invés de quem aprende isso por dever."

Destaquei em itálico a palavra docet, que alude ao verbo docere que costuma ser traduzido como ensinar. A tradução, no entanto, não esclarece uma coisa importante: havia uma arte docente adequada para formar aos servos, os estratos mais inferiores da plebe, e uma outra para formar os grandes homens Um cidadão romano superior era treinado tanto para lidar com seus iguais tanto com seus subalternos; ao falar com este, procurava docere, delectare, movere: ensinar e deleitar, como o fim de direcioná-los a um fim favorável. Sim, os romanos aprendiam a manipular seus escravos, e Sêneca era um dos seus inventores dessa arte da adulação. Como escreveu um historiador:

"No Iluminismo, porém, vige o Antigo Regime. Isto é, a classe comerciante não ascendeu ainda plenamente ao poder. Numa monarquia absoluta, toda reflexão acerca do poder gira em torno do governante, o que torna interessante observar portanto os discursos morais endereçados aos futuros monarcas quando de sua educação. Esse trabalho fica sempre a cargo de um membro do clero, o “preceptor”, que se valerá do melhor da tradição moral cristã para formar o futuro monarca. Trata-se de uma tradição que remonta, porém, a Roma antes da cristandade. Os “espelhos do príncipe”, gênero cujo pioneiro é, salvo engano, Sêneca escrevendo ao jovem Nero (que augúrio), se tornam o modelo mesmo de instrução moral para quem há de ocupar o poder de um reino."

https://loryenipsum.medium.com/bajula%C3%A7%C3%A3o-e-domina%C3%A7%C3%A3o-74f236a72e28

(SÊNECA, Carta 47https://www.estoico.com.br/934/carta-47-sobre-mestre-e-escravo/)

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

NIETZSCHE INSULTA RENAN

Estava lendo O crepúsculo dos Ídolos e lá Nietzsche dirige um epigrama contra Renan, um filósofo francês que hoje ninguém mas lê, mas que até o início do século XX era ainda popular. Para Nietzsche, não havia qualquer restrição filosófica para que a filosofia não fosse feita por meio de insultos. E como grande especialista nessa arte, que escreve o seguinte sobre Renan:

Renan. — Teologia, ou a corrupção da razão pelo “pecado original” (o cristianismo). Testemunha disso é Renan, que, quando arrisca um Sim ou um Não de natureza mais geral, erra o alvo com penosa regularidade. Ele gostaria, por exemplo, de unir la science [a ciência] e la noblesse [nobreza]: mas a science é coisa da democracia, isso é algo bem palpável. Ele deseja, com ambição nada pequena, representar um aristocratismo do espírito: mas, ao mesmo tempo, põe-se de joelhos ante a doutrina oposta, o évangile des humbles [evangelho dos humildes], e não apenas de joelhos... De que serve todo o livre-pensamento, toda a modernidade, zombaria e volúvel flexibilidade, se em suas entranhas o indivíduo permanece cristão, católico e até sacerdote! Renan tem sua inventividade na sedução, exatamente como um jesuíta e um confessor; à sua espiritualidade não falta o amplo sorriso de padre — como todo sacerdote, ele se torna perigoso apenas quando ama. Ninguém o iguala nisso, em adorar de uma maneira mortalmente perigosa... Esse espírito de Renan, um espírito que enfraquece o nervo, é uma fatalidade mais para a pobre, doente França, doente da vontade. —Renan. — Teologia, ou a corrupção da razão pelo “pecado original” (o cristianismo). Testemunha disso é Renan, que, quando arrisca um Sim ou um Não de natureza mais geral, erra o alvo com penosa regularidade. Ele gostaria, por exemplo, de unir la science [a ciência] e la noblesse [nobreza]: mas a science é coisa da democracia, isso é algo bem palpável. Ele deseja, com ambição nada pequena, representar um aristocratismo do espírito: mas, ao mesmo tempo, põe-se de joelhos ante a doutrina oposta, o évangile des humbles [evangelho dos humildes], e não apenas de joelhos... De que serve todo o livre-pensamento, toda a modernidade, zombaria e volúvel flexibilidade, se em suas entranhas o indivíduo permanece cristão, católico e até sacerdote! Renan tem sua inventividade na sedução, exatamente como um jesuíta e um confessor; à sua espiritualidade não falta o amplo sorriso de padre — como todo sacerdote, ele se torna perigoso apenas quando ama. Ninguém o iguala nisso, em adorar de uma maneira mortalmente perigosa... Esse espírito de Renan, um espírito que enfraquece o nervo, é uma fatalidade mais para a pobre, doente França, doente da vontade. —

domingo, 15 de dezembro de 2024

anotações sobre AMAR, VERBO INTRANSITIVO, de MÁRIO DE ANDRADE.

A intransitividade do amor parece sugerir o fulgor do desejo, que se conecta em detrimento das raças. Amar, verbo intransitivo, é um romance de um amor mestiço. Narra o idílio amoroso entre uma professora alemã e um jovem rapaz brasileiro e de origens portuguesa.

A família luso-brasileira se representa de forma grosseira, com tendência a ressaltar os traços cômicos do naturalismo (o suor, a sujeira, a protuberância e feiura dos corpos...); são simples comerciantes, com a cabeça nos cálculos econômicos e nos hábitos mais corpóreos e terrenos.

Contraste com a representação de Fraulein, a professora alemã, como um tipo ideal, linda e loura, cujo instintos pareciam determinar-lhe os gostos elevados dos arianos, a sua vasta cultura de Goethe, de feição contemplativa e imune às mundanidades das paixões baixas. 

Ora, o desejo que ela sente pelo aluno será narrado como uma sucessão de sensações novas, que fazem aquele corpo frígido de alemã conhecer torpores sentimentais até antes desconhecidos. Se é o romance da formação de Carlos, o aluno brasileiro por ela educado sentimental e intelectualmente - lembre-se que Fraulein deveria iniciar Carlos nos negócios das letras e do sexo -, esse é também um romance de re-educação dessa moça alemã, que sofrerá dos mais variados estados passionais sob a influência do rapaz.

UMA CIÊNCIA DO CHISTE E DO FRAGMENTO: INTRODUÇÃO METODOLÓGICA E CONCEITUAL

Se Gilberto Freyre era naturalista?

Ora, evidente que não. 

Esse negativa, evidente para qualquer um que tenha se demorado um pouquinho lendo os livros de Gilberto Freyre, poderia frustrar qualquer utilidade pretendida de uma obra que toma o autor desde essa perspectiva. 

Tratar Gilberto Freyre é certamente uma falsificação da perspectiva, e qualquer um que desejar formar uma espécie de sistema freyreano deveria tomá-lo estritamente como ponto de partida. Há muitos caminhos para se seguir para a construção de um sistema, e o aqui seguido é certamente um deles, com possíveis vantagens e desvantagens que os seus críticos deverão discutir, eu espero, com bondade e imparcialidade. 

Compreenderam, esses críticos benévolos, que esse é antes um ensaio sobre a obra de Gilberto Freyre, assim como é também um inventário para uma miríade de assuntos que não obstante a aparente desordem, perseguem a sistematicidade das velhas enciclopédias. Poderíamos dispor as partes dessa obra em ordem alfabética, mas pareceria ao leitor impaciente um excesso estético, uma presunção extravagante de nossa parte. Não que nos importássemos com a recepção desta obra: o que nos convenceu a redigi-la fora da ordem alfabética das enciclopédias é que isso revelaria o segredo de sua composição. E nenhum sistema pode ser verdadeiro se não reservar-se alguma parte de enigma.

O ensaio é certamente um gênero infeliz de ciência, já que não cessa de produzir em seu leitor a sensação de confusão. Não há qualquer pressuposição que a clareza seja um atributo da ciência verdadeira, mas há muitos séculos a filosofia vulgar produziu essa crença religiosa no conhecimento enquanto iluminação. Para essas mentalidades, é natural que o ensaio cause desprazer, já que leva o leitor por longos trechos de obscuridade. 

Muito dessa obscuridade pode ser atribuída à estupidez e ignorância, e mesmo a falta de caráter, daquele que é seu autor, e não duvidamos que a crítica em algum momento incida nessa direção, depreciando o ensaio a partir do referente biográfico e moral do autor. A verdade, no entanto, é que o ensaio é uma forma de vida autônoma, diversa daquela entidade psico-física do autor. Não acreditamos que seja a escrita, o documento, a literatura, e toda a linguagem, a memória substancial de um sujeito, embora, certamente, estas sejam informações por ele produzidas, e que pela arte de nossa ciência foi aqui ordenado para o fim de alguma inteligibilidade.

O que se deseja conhecer, certamente, é o passado, mas o passado desde uma dimensão próprias da história dos conceitos, em que estes somente podem ser esclarecidos se pela experiência. Nosso livro, de certa maneira, é um Discurso do método, mas um Discurso do método perdido, ou que jamais chegou a ser escrito. É, em parte, uma rememoração da história de nossos próprios conceitos, que tem em vista encontrar as origens de nosso próprio pensar, que ainda é o pensar da antropologia, da psicologia, da sociologia, da história, da economia, da biologia, da física, da química, da semiótica, a da fisiologia, etc. Esperamos que revirando as raízes de nossos conceitos, poderemos acrescentar alguma coisa para o seu aperfeiçoamento. 

Esse ensaio, portanto, é um Discurso do método, mas de um método para um conhecimento desconhecido, que nós, em nosso discursos, estamos apenas principiando a elaborar. Como tantas filosofias do futuro, essa história do passado tem em vista o que não foi escrito, mas que será. Se nosso ensaio denuncia a parcialidade com que nos aproximamos de nossos assuntos - por ex., a perspectiva de Gilberto Freyre enquanto antropólogo naturalista -, é preciso esclarecer que de qualquer posição é possível ver alguma coisa do autor. O que se tomou como fim, na verdade, foi menos o conhecimento de qualquer sistema Gilberto Freyre, mas um sistema abstrato, que haveria entre esse sistema e os sistemas-vizinhos: Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Júnior, Eduardo Prado, Oliveira Vianna, Oliveira Lima, Sylvio Romero, Arthur Ramos, Euclides da Cunha, etc. Como o leitor pode comprovar de nossas referências biográficas, o escopo de nosso trabalho é limitado a alguns nomes e obras, mas que trabalho consegue abarcar todo o universo? Para escrever a verdade é preciso aceitar o dever de menti-la. Uma verdade sobre Gilberto Freyre, ou sobre qualquer outro assunto, somente poderia existir por meio dessas representações parciais e fragmentárias que para muitos são as fraquezas do ensaio. Para os espíritos dessa estirpe, tudo que não seja rigor e objetividade deve ser excluído do sistema do conhecimento. Irão argumentar que são parâmetros de comunicabilidade, que o conhecimento precisa ao menos ser claro, e que ninguém pode ficar perdendo tempo lendo lixo

Quanto à verdade, somos por ora reticentes. O que nos parece certo é haver todo um sistema moral para produzir, ao menos, os efeitos de verdade e mentira. Se desejam começar uma crítica do conhecimento, deveriam então principiar desde já a compreender como e porque vocês pensam que tais coisas são verdades. Montem todos os cavalos de guerra argumentativos, enviem todos os seus artigos com péssimas avaliações, etc. Ora, e não é afinal o conhecimento parte de uma política? Por que esperaria outro tratamento, se já sei de todas as armas que poderiam empregar contra mim? 

Sabendo disso, me convenci de que os ímpetos mais vanguardista dessa historiografia deveriam ser refreadas, para o propósito de adequação aos preceitos do público, especialmente daquele da banca em que haveria de defendê-la como tese. O enquadramento em torno de Gilberto Freyre, assim, nasceu em parte dessa necessidade retórica de dispor o conhecimento em torno de um sujeito. Não que sejamos contra as monografias, apesar de sermos um pouco. O fato é que o biografismo atual nos desinteressa, e se adotamos a perspectiva que toma a história das ciências em torno de Gilberto Freyre, é simplesmente porque foi conveniente. 

Essa obra é composta por uma série de ensaios que poderiam ser transformados em unidades isoladas, mas que quando dispostas em conjunto também formam um agregado coerente e sistemático. Que a obra possa estar organizada alfabeticamente ou de outras formas, sugere que seus componentes fornecem diferentes modos de uso. O leitor benéfico que nossa obra ansiosamente espera encontrar haverá de compreender que o princípio de leitura mais prazeroso é o aforístico, em que as unidades lógicas se desenvolvem em um intervalo curtíssimo de tempo. Por isso a importância da conceitualidade em nossa obra, que a muitos parecerá um cacareco intelectualóide sem sentido, mas que na verdade são parte de um saber que acontece em um ritmo muito breve. Schlegel afirma que o fragmento é um corpo perfeito e distinto, assim como o porco-espinho é distinto de outro animal. Assim também é o nosso ensaio, composto desde aforismos independentes, que depois foram convenientemente organizados para sugerirem uma unidade agradável aos críticos. 

Por isso nossa obra parecerá a alguns como um verdadeiro cavalo de Tróia, em que por meio de um artifício fajuto, a mentira se introduz no reino da verdade. Os intelectuais-técnicos do empresariado, por exemplo, irão dizer que esse gênero de conhecimento não contribui para nenhum progresso técnico. Melhor seria se retirassem as verbas das ciências humanas, e exterminassem de uma vez todo o sistema em que se produz esse gênero de aborto do conhecimento. Não é preciso ser nenhum gênio para saber que os intelectuais-técnicos estão certos: sem as verbas das ciências humanas, esses saberes inúteis não seriam produzidos. E é exatamente isso que a classe empresarial deseja, já que esse gênero de escrito - como tantos outros - não se adequam aos propósitos tecnicistas e burocráticos da produtividade. 

Essa obra somente pode ser o que é porque também é uma obra escrita contra esse saber técnico e capitalista. Somos reticentes a expressar posicionamentos, e isso talvez seja um mal de nossa época. Tomemos, no entanto, alguma responsabilidade política ao menos em nossa profissão. Isso é, apesar de tudo, um triste consolo para quem esperava a revolução. Adorno, esse revolucionário posto nos limites burocráticos do aparelho estatal, é o protótipo de muitos que hoje escrevem, desiludidos de seus métodos. 

É certamente uma época infeliz essa nossa, e é impossível não escrever assim uma história infeliz. O leitor benéfico com certeza notou que muitos trechos adquirem a entonação quase humorísticas, e que algumas passagens são até mesmo irônicas, e certamente estranharão isso em trabalho científico, que deveria primar sobre a objetividade. Estamos aqui sobre o influxo da ciência natural de Schlegel e de Novalis (que ainda não lemos), e que somente concebem o saber enquanto forma divertida e engenhosa a que chamamos de chistes. O princípio chistoso da linguagem é aquela capacidade que ela tem de nos provocar afecções, e assim favorecer à produção do conhecimento no leitor. Kant teria dito que Hippel "seguia a máxima recomendável de que se deve temperar um prato saboroso da exposição humorística com o condimento da reflexão". (SCHLEGEL, Dialeto dos fragmentos, p. 27). A crença de que a verdade implica em seriedade é um pressuposto que não encontra antecedentes em largas partes do cânone nacional. É preciso remontar à gênese desse discurso da sisudez, para assim principiar a desvendar a fraude de sua universalidade. Remetendo à aparição desse discurso, Oswald de Andrade respondia às críticas de Antonio Candido (é uma conversa entre a elite do café paulistana que no curso de sua vida desviou-se politicamente, cada um a sua maneira, e que aqui não cabe explicar):


Segundo o sr. Antonio Candido, eu seria o inventor do sarcasmo pelo sarcasmo. [...] Porque a vigilante construção de minha crítica revisora nunca usou a maquilagem da sisudez nem o guarda-roupa da profundidade. O sr. Antonio Candido e com ele muita gente simples confunde sério com cacete. Basta propedeuticamente alinhar coisas que ninguém suporta, utilizar uma terminologia de in-fólio, para nessa terra, onde o bacharel de Cananéia é um símbolo fecundo, abrir-se em torno do novo Sumé a bocarra primitiva do homem das cavernas e o caminho florido das posições. 


É já tempo para reabilitamos a bufonaria transcendental de que falava Schlegel em certo fragmento seu (p. 27). Como pensar em qualquer verdade se a própria filosofia, que se presume procurar o discurso da verdade e da justiça, é "a verdadeira pátria da ironia"? "Onde quer que se filosofe em conversas faladas ou escritas, e apenas não de todo sistematicamente, se deve obter e exigir ironia; e até os estóicos consideravam a urbanidade uma virtude. Também há, certamente, uma ironia retórica que, parcimoniosamente usada, produz notável efeito, sobretudo na polêmica; mas está para a sublime urbanidade da musa socrática, assim como a pompa do mais cintilante discurso artificial está para uma tragédia antiga em estilo elevado. Nesse aspecto, somente a poesia pode também se elevar à altura da filosofia, e não está fundada em passagens irônicas, como a retórica. Há poemas antigos e modernos que respiram, do início a ofim, no todo e nas partes, o divino sopro da ironia. Neles vive uma bufonaria realmente transcendental. No interior, a disposição que tudo supervisiona e se eleva infinitamente acima de todo condicionado, inclusive a própria arte, virtude ou genialidade; no exterior, na execução, a mímica de um bom bufão italiano comum". (pp. 26 - 27).

A conversa se opõe ao sistema, como notou Hume: "parece pouco natural apresentar um sistema sob forma de conversação". (p. 172) No entanto, esse trecho é extraído de um diálogo desse filósofo inglês, que demonstra como essa reflexão sobre os meios adequados para a verdade, se cogitava a estranheza de fazê-la sob os estigmas da conversação e oralidade, era porque não deixava de empregá-la como método filosófico. "Conversa falada e conversa escrita constituem, assim, para Schlegel, formas de exposição que fogem à cadeia lógico-dedutiva do sistema filosófico. Se, no primeiro caso, o diálogo socrático é naturalmente o modelo literário, a idéia de uma relação dialógica pela escrita é predominantemente moderna. As conversas de Jacobi e Lessing, reproduzidas nas Cartas a Moses Mendelssohn sobre a doutrina de Espinosa, podem ser consideradas os modelos mais imediatos de Schlegel, que em 1800 publicará na revista Athenaum a famosa Conversa sobre a poesia". (p. 172)


Em Sílvio Romero, a sisudez é relecionada à velha gravidade retórica dos salões literários e das tribunas políticas, antes concurso para agradar ao público e cortejar favores políticos do que construção de sistemas eficientes e imparciais. O caso de sua obra, assim, oferece um exemplo particular de chiste empregado contra o chiste, esse espírito químico e elétrico da linguagem que introduz no ouvinte uma determinada afecção. "Nossa república ainda não saiu do período do feiticismo dos nomes próprios", escrevia Sílvio Romero em artigo para a Cidade do rio (1 de maio de 1895), incapazes de compreender que "um homem não se prendesse a grupos, para poder ser justo com todos e independente diante de todos; que não quer por enquanto admitir que se possa falar bem de Deodoro da Fonseca; que se possa reconhecer em Floriano Peixoto a virtude da resistência sem que por isso tenha-se obrigação de desconhecer os grandes erros de seu governo [...]" (Obra filosófica, p. 254) Era necessário vir a público, e assim, documentar-se contra o discurso do inimigo. Porque na República Brasileira, o que contava era sobretudo o palavreado doce, capaz de enfeitiçar a audiência por meio das sensações provocada por elas: tratar-se-ia de um gênero de método hipnótico, que dirige-se antes ao inconsciente sensível do que à racionalidade estritamente conceitual e consciente. Na historiografia brasileira, é repetidamente associado a uma disposição portuguesa ou jesuítica: "essa tendência ao formalismo teria encontrado suas primeiras manifestações relevantes na Colônia, com o modelo educacional então adotado, como sugere Fernando Azevedo, para quem a educação, naquela época, estava intimamente relacionada à família, à Igreja e ao poder político-econômico". (O sorriso da sociedade, p. 134).

Ora, a despeito de como era a prática discursiva nos tempos da Colônia e do Império, é fato que, para os analistas, elas podem ser avaliadas desde o "fundo moralizante e pedagógico" que todo e qualquer discurso haveria de conservar para si. (Idem, p. 134) A "poesia retórica" era assim considerada sobretudo como um meio para mover e deleitar a audiência, tendo em vista uma finalidade (em teoria) prática. Esse déficit da república brasileira - pois isso era entendido como uma desvantagem - pois provocava um verdadeiro "prejuízo de mais vitaes energias" por meio daquela produção contínua da "sensualidade da frase". (Idem, p. 135). Essas são palavras de Graça Aranha, que certamente desejavam gerar alguma eletricidade no espírito do leitor do Atheneu Argentino, para quem escrevia em 1897. Tratava-se de uma crítica à inteligência brasileira, dessas que são comum de se encontrar entre nossa inteligência:

"Vivemos da forma. Para saboreá-lla melhor, separamo-la do pensamento, e com que delicia não contemplamos as transformações por que passou a frase antiga, simples, lapidaria, límpida, até chegar ao complicado período moderno, em que a palavra é feita de música, impregnada de pintura, e carregada de eletricidade". (Idem, p. 135)

Como escreve Márcio Suzuki, o fragmento deve ser compreendido como uma descoberta, ou ainda, uma "tentativa de solucionar problemas de natureza filosófica", que uma "filosofia estritamente técnica" não deixam de produzir. (p. 16) Um destes problemas é o evidente silenciamento sobre o fato das faculdades sensíveis e fisiológicas - rotineiramente caracterizadas como pré-lógicas e tomadas desde a perspectiva da produção de fantasias - são na verdade não somente condição, mas parte constituinte da faculdade do entendimento. Por isso a importância do chiste, essa corrente elétrica que corre do texto para o sujeito que lê, mas não para se instalar imediatamente em seu entendimento, e sim para estimular os seus sentidos de maneira diversa. O conceito de chiste, assim, busca recuperar alguma coisa do conhecimento enquanto esse acontecimento literal, isso é, como uma produção iniciada desde um processo físico que, no sujeito, irá desencadear o processo do pensamento. O chiste representa a capacidade de um discurso afetar o leitor, coisa que somente seria possível se seu conhecimento estivesse em uma economia moral, em que determinadas ideias e conceitos, palavras e modos de dizer, são percebidas não de um ponto de vista da razão pura, mas sim desde uma série de valores que separam a priori o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, o digno de ser lido atentamente, e o texto que se passa o olho correndo, etc.

Outra vantagem do chiste, é que no tempo do discurso enquanto consumo, se responde ao suposto déficit cognitivo de uma época, incapaz de se atentar aos discursos sapientes do passado, desde a perspectiva de que é justamente essa desagregação histórica da compreensão que torna o chiste uma necessidade pedagógica ou ainda, propedêutica, que deve introduzir o leitor no saber desde a região sentimental. É somente tomando a dimensão do saber como um acontecimento produtivo, em que o verbo e as palavras interagem com um organismo sensível, que pode-se compreender a necessidade dos discursos "Um achado chistoso é uma desagregação de elementos espirituais, que, portanto, tinham de estar intimamente misturados antes da súbita separação. A imaginação tem de estar primeiro provida, ate a saturação, de toda espécie de vida, ara que possa chegar o tempo de a eletrizar de tal modo pela fricção de livre sociabilidade, que a excitação do mais leve contato amigo ou inimigo possa lhe arrancar faíscas fulgurantes e raios luminosos ou choques estridentes". (p. 24 - 25).

A necessidade de reaproximação entre os saberes da poesia e da literatura com os da filosofia era defendida, no tempo de Schlegel, como o estudo de uma arte capaz de produzir, pelo meio escrito, os efeitos luminosos e elétricos que a palavra oral parecia provocar no ânimo dos sujeitos. O velhos e infames discursos da tribuna e dos salões, que se improvisavam por meio de explícitos mecanismos retóricos, pode ser tomado a partir dessa particularidade de ser explicitamente dedicado à uma audiência, já que são empregados não para o fim da leitura silenciosa e solitária do escriturário moderno, mas sim para práticas discursivas destinadas à performances orais, diante de um público que estava fisicamente presente. Quando lemos um discurso de Sílvio Romero encontramos diversos registros que remetem a essa presença do auditório. Em "Que é um caipira", trata-se de uma carta, escrita para o Dr. José Piza. Perceba que Sílvio Romero se refere a um "você", esse doutor da ática fluminense, se colocando em uma irônica posição de baixeza e submissão: "Antes de mais nada, não atino com o fim, nem lhe gabo o gosto, de misturar com seus dizeres pilhéricos, com seu prosear chistoso, as rudezas da minha frase de escritor provinciano, impenitente sectário da Escola de Recife, incorrigível no trajo, nas maneiras e nas idéias". (p. 196) É evidente que a pompa e humildade que o emissor empregada em seu discurso é um exagero que visa, na verdade, ridicularizar o interlocutor, por quem Sílvio Romero nutria inimizade. Examinemos um pouco mais da carte, que deveria ser lida em voz alta pelo próprio José Piza, diante de ampla audiência, o que certamente haveria de provocar verdadeiras risadas. Sílvio Romero escreve um ensaio sobre o que seria afinal o caipira, e depois de descartar a possibilidade de se referir a sujeitos de uma única zona geográfica, ou de uma única raça, ou ainda, uma atribuição profissional, ou mesmo algum tipo de patologia degenerativa. Caipira, explica Romero, assim como matuto, tabaréu, mandioca, capixaba, "são expressões de monosprezo, de debique, atiradas pelas gentes das povoações, vilas, aldeias, e até arraias, contra os habitantes do campo, do mato, da roça. São a expressão dum antagonismo secular. São chufas dos desfrutadores de empregos, profissões, ofícios e outros variados meios de vida, que a habilidade de certas populações faz nascer nas grandes aglomerações de gente, especialmente contra os que mourejam nas rudes tarefas dos amanho das terras, do cultivo dos campos, os homens do povo, que são os operários rurais". (p. 195)

Se é verdade que José Piza lia aquela "palavra selvagem" de Sílvio Romero com seus "lábios de exímio diseur", o que se conseguiu foi uma singular encenação discursiva, em que a voz e cadência educada desse Dr. José Piza, a quem nos parece ser um bacharel palavroso que Sílvio Romero não cansa de debochar em seus escritos. É assim que, em um discurso pronunciado aos 31 de maio de 1908, Sílvio Romero se dirigia a sua audiência de bacharéis:


"Meus senhores:

Almas vesgas, esterilizadas pelo ódio e pelo egoísmo; espíritos fechados a quaisquer solicitações do bem, do amor, do devotamento a causas nobres; caracteres comburidos por paixões mesquinhas, sem o menor surto para os lados do ideal, hão de perguntar, no alvoroto febril dos amaldiçoadores de profissão, como é possível que eu me apresente hoje, [...]" (p. 197)


Sílvio Romero ressalta a "independência de sua crítica", e certamente ela somente poderia ser levada em consideração como parte de uma retoricidade da independência, firmada a partir da sinceridade da injúria àqueles que seriam os poderosos. Seu discurso comete a imprudência de degradar os "detentores do poder"). (p. 197)

Se era verdadeiro ou não o risco que os discursos de Sílvio Romero dão a entender - é um discurso paranóico, que parece sempre prestes a ser censurado e difamado por inimigos e conspiradores. Antes de mais nada, Sílvio Romero parece precisar defender a própria reputação, demonstrar a justeza de suas condutas e como estas estavam perfeitamente de acordo com suas ideias. Era preciso não somente ser correto, mas também defender, diante do público que julga, a correnteza de suas condutas.

É que Sílvio Romero somente pode escrever desde essa posição de quem luta uma guerra não restrita aos princípios racionais e críticos que deveria caracterizar o pensamento rigoroso e sistemático. Essa divisão entre um discurso da amizade e um discurso da inimizade parece-nos tocar em uma tópica algumas vezes negligenciadas à respeito da dimensão moral e passional das práticas intelectuais. O próprio Sílvio Romero não deixa de recusar que deva-se existir um espaço discursivo destinado ao jogo limpo, que prescindem dos artífices exigidos quando diante das tribunas inimigas. O discurso precisa sempre preparar-se para abrir-se a pelo menos esses dois registros discursivos: daqueles que irão aplaudir e aclamar nosso discurso, e aqueles outros que, ao contrário, se encherão de ímpetos de discursar vaias e palavras duras. É assim necessário, mesmo ao saber mais puro e verdadeiro, que possa proteger-se contra esses inevitáveis inimigos, que se animam com sentimentos maus tão logo as palavras ferem sua sensibilidade. Esse emprego insistente que alguns autores fazem de sua correspondência pessoal pode ser visto desde essa perspectiva de proteger a própria reputação por meio de um discurso de autoridade, ou ainda, simplesmente, de um testemunho de outrem favorável à pessoa que fala. Sílvio Romero, por exemplo, encerrará certo prefácio com as palavras de um certo Srs. Samuel de Oliveira e Liberato Bittencourt, escrita em 25 de junho de 1894, em que os emissores adulam agradavelmente a pessoa de Romero: enviavam a ele uma edição de Geometria Algébrica, um presente de agradecimento a Romero. "Assim procedendo, andamos de perfeito acordo com as nossas consciências, admiradores que somos de vosso belo talento, de vossa variada e sólida ilustração e, mais do que tudo, dessa honrada altivez que tanto vos nobilita e vos distingue entre os nossos homens de letra em geral. Por outro lado, tanto hemos aprendido nos vossos livros, cheios de saber e de patriotismo, que a oferta que vos fizemos, temo-la por conta do cumprimento de um dever". (p. 261)


Que não saibamos quem são esses tais Samuel e Liberato - que aparentemente eram jovens escritores procurando a aprovação de Romero -, talvez denote como a estratégia de empregá-los como autoridade pode não resistir aos rigores do tempo; hoje, positivamente, ninguém atribui a Samuel e Liberato qualquer reputação; no entanto, mesmo assim é possível encontrar alguma forma com que suas palavras podem afetar a audiência, e predispô-la a ouvir o discurso de Sílvio Romero desde a perspectiva de um rígido e sapiente professor, muito admirado por seus alunos. Essa certamente seria uma maneira que agradaria a Sílvio Romero de ser lembrado, e não parece casual que tenha encerrado seu prólogo com essas palavras benevolentes. Tratariam de causar uma boa impressão no leitor.

Se Sílvio Romero ironizava aos dizeres pilhéricos e ao prosear chistoso daquele Dr. José Piza, a verdade é que no entanto não se furtava ele mesmo de fabricar seus discursos enquanto dispositivos pilhéricos e chistosos, destinados a provocar reações fisiológicas e comportamentais variadas em seus ouvintes. A efetividade de suas palavras sobre os ânimos da audiência fica explicitada quando o texto transcreve, junto do discurso, a reação da audiência que lhe ouve. Assim, quando Romero recorda a própria história, monumentaliza a própria história, mas não por meio da gravidade característica das estátuas dramáticas (esse seria o estilo às vezes caricatural de Euclides da Cunha), mas sim por meio de uma verdadeira arte do insulto, que relembra, por meio de chistes, como Romero havia humilhado e derrotado seus adversários intelectuais nos duelos que travaram publicamente, em jornais, para que todos pudessem ver: "Há já cerca de quarenta anos sacudi para longe as ridículas injunções de todos os Veríssimos existentes e por existir (gargalhadas...)". (p. 198). Esse chiste Romero é ainda singularmente eficaz, e talvez seja até mesmo mais poderoso, tendo em vista a profícua árvore genealógica dos Veríssimos. A seguinte pilhéria, dedicada a Pinheiros, é construída pelo mesmo mote anterior, e coroa a trajetória política de Romero com a derrota de toda a árvore genealógica dos Pinheiros, existentes e por existir: "De certo tempo a esta parte resolvi em política atirar no sorvedouro das coisas inúteis, imprestáveis, e quase sempre maléficas, as medonhas cataduras de todos os Pinheiros havidos e por haver...". E a plateia, morria de rir: "(risos)."(p. 198)


O carisma pessoal, a capacidade de improvisação e o anti-convencionalismo, em parte, entraram em decadência, quando os meios personalistas de produção de ideias foram suplantados pelo aparelho burocrático das universidades e seu registro abstrato e impessoal de ciência. Haveria, ainda, de considerar a transformação da linguagem jornalística, que se inclinou a uma retórica da imparcialidade e da objetividade pura, em que se rejeitava qualquer politicidade enquanto indício de conlui com alguma das partes. Embora o jornalismo pressupunha o debate público, sua única maneira de participar dele é pela simulação de que nele não toma posição, e para isso, certamente, contribui as argúcias formais que os mais variados técnicos da informação empregam para escrever.

Os gêneros de performance vocal, e mesmo corporal, que dispõe um falante diante de uma platéia a ouvi-lo, certamente ainda existe, e na verdade é um verdadeiro pilar da indústria de espetáculos, com podcasts, programas de auditório, blogs em vídeo, etc. O que parece ter ocorrido foi, no plano científico, a produção de uma consciência avessa ao fundamento dialógico que haveria em seu discurso. Alguns gêneros, como os acimas citados, mas também os estritamente literários, como as correspondências, certas crônicas ou ensaios jornalísticos em que o escritor se refere diretamente ao seu público, e ainda, muito especialmente, o gênero socrático do diálogo filosófico, em que os sistemas são preteridos por essa exposição dialética e gradual, em que muitos ouvintes se envolvem com o fim de chegar à verdade, representam explicitamente a linguagem enquanto uma produção entre diferentes partes.

Por isso que, à despeito de qualquer crítica contra a seriedade, é necessário concluir essa introdução reiterando uma nota já acertada a certa altura passada do ensaio: nada mais elevado do que a bufonaria, nada mais gracioso que o fragmento, nada mais filosófico que a poesia.


Comecei protestando sobre a confusão que se faz entre a seriedade do espírito humano e, por exemplo, a sisudez de uma sessão acadêmica, com suas ratazanas fardadas e a coleção de suas carecas de louça. Ao contrário disso nada mais sério que o blague de Voltaire ou de Ilya Ehrenburg, a fantasia de Joyce e o suspeito moralismo de Proust. (p. 34)


sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

DISCURSO SOBRE A INIMIZADE


esse trecho escrito por theodore holmes bullock me parece esclarecer alguma coisa sobre o estranhamento que as mentes chamadas "analíticas" sentem diante das "continentais". bullock, um especialista em fisiologia da próspera universidade da california sentia-se desconcertado com a maneira que o austríaco konrad lorenz escrevia sobre biologia. de cara, admite não compreender a conceitualidade referida por lorenz. 

para esse biólogo da califórnia, a perícia da observação da natureza de lorenz se contrapunha, como o claro e o escuro de um quadro, a esse excedente conceitual que lhe parecia apenas enrolação ou tagarelice. Claro que um tanto espirituosa, mas que certamente poderiam ser abreviadas ou até suprimidas para que o leitor chegasse de uma vez à experiência que toda ciência permite desvendar.

bullock lia impaciente esses trechos palavrosos, sempre ansioso para a chegada do momento que lorenz fizesse aquele excedente conceitual começar a fazer sentido por meio de sua primorosa arte de relatar os acontecimentos. 

claro que bullock, muito educadamente, se rebaixaria à posição de ignorante, para fazer de suas críticas um pouco mais indolores: "estas limitações" - é assim que se refere a essa sua sede que lhe fazia correr dos obscuros trechos conceituais e que chegasse logo à sabedoria clarividente dos exemplos - eram contudo limitações de sua própria pessoa, "um leitor-fisiólogo relativamente dependente de exemplos". 

depois desse breve episódio de humildade, em que apequena sua capacidade de entendimento aos preceitos de sua rude formação de naturalista, passa novamente a deflagrar estocadas contra o autor que, no entanto, mantém o dever do elogio que esperamos haver em prefácios. como todo elogio no entanto também comporta a crítica - na retórica científica da imparcialidade essa ambivalência contribui para a moral do autor como justo ou injusto, mas justo ou injusto até mesmo com os amigos: ninguém está isento dos juízos de seu entendimento -. de qualquer maneira, bullock não esperava, afinal, era apenas um simplório leitor-fisiólogo, que mesmo décadas e décadas de exaustivas sessões de estudo ainda não eram capazes para que se desconcertasse perante de uma obra particularmente estranha. passa então a pontuar essas "estranhezas" que ele, um leitor-fisiólogo, encontrava na prosa de um biólogo austríaco como lorenz: (1) novamente, retoma ao excesso metalinguístico do texto, perdido em devaneios conceituais (diz que não esperava um discurso biológico em que "todo termo familiar" precisasse, no entanto, ser repetidamente "definido"; (2) e ainda,  declara bulloc, "nem esperava que palavras fortes fossem evitadas ("nunca", "nenhum", "demolido")". 

que lorenz tivesse parcimônia em seus juízos demonstra menos que evitava a inimizade (na verdade, é impossível que se evite absolutamente as inimizades), mas sim que escrevia retoricamente

que se escreva retoricamente, para qualquer mente razoável, deveria soar uma tautologia, mas para um sujeito analítico como bullock, a aparição de tal consciência em que mesmo o discurso mais literal da ciência cometia os jogos teatrais dos tribunais, somente poderia resultar em tal estranhamento, e mesmo repulsa, como aquela que fazia-lhe correr dos excessos conceituais típicos das mentes continentais. a experiência da vida ordinária e pragmática, afinal, já não havia se encarregado de demonstrar como a linguagem funcionava perfeitamente? ora, que o mundo pudesse funcionar tão bem a despeito de tamanhos luxos conceituais, por que, afinal, nesse exato mundo ordinário e pragmático, estamos todos brigando continuamente? qual a origem dessa perpétua inimizade que parece dominar a vida humana, mesmo em seu ocorrer mais ordinário e pacato?  

talvez bullock ou qualquer um poderia imaginar que os conceitos (e toda arte que se associa a eles) sejam problemas metafísicos, ou inventados por intelectuais em suas estúpidas picuinhas, que a inimizade entre "analíticos" e "continentais" deveria ser abolida em favor do entendimento universal. ora, não é o idioma da razão universalmente suprido por toda e qualquer experiência? 

Por que estamos afinal brigando? Por que o leitor tem raiva do que escrevo, ou desdém, ou qualquer gênero de repulsa que faz pensar o tempo todo que estou errado, ou que não é exatamente isso que importa, ou que sou estúpido e que estou falando nada com nada? Linguagem eficaz nenhuma parece possível de dar fins a tais antagonismos.

De qualquer forma, que Lorenz buscasse continuamente a definição dos termos que empregava para sua ciência, um autor californiano como Bullock a considerava como uma extravagância. Ora, e a experiência não comprova tão bem que as palavras funcionam sem esse estúpido jogo de explicações? Por que não passamos logo ao relato da experiência, ao exame da realidade empírica - esse é o fim da ciência, não? - e nos esqueçamos dessa tagarelice abstrata de uma vez? 

De minha parte, me ocorreu uma censura a esse leitor-fisiólogo. Certamente, redigindo seu saber universal desde a cosmo-pólis californiana, haveria de estar perfeitamente convencido de que sua experiência havia lhe habilitado a entender a natureza. Para que tantas definições se eu já aprendi a me comunicar de maneira tão eficiente por meio de minha educação universal de cientista americano? Ora, passemos logo aos objetos da ciência, não compreende que já estou em posse dos conceitos adequados para compreender tudo e qualquer coisa? Ora, basta que me entregue a matéria empírica, e se eu tiver tempo suficiente, certamente irei entendê-la. 

A ordem desse comportamento não é outra fora desse egocentrismo que funda sua própria experiência como suficiente para a compreensão de toda e qualquer experiência. Ora, muita coisa sobre saber consiste precisamente na capacidade de criticar a própria experiência, a própria moral, a própria existência, e por isso não me parece improvável que a filosofia seja mais o discurso dos enfermos do que dos perfeitamente sãos. A filosofia envolve essa experiência de destruição das categorias basilares da própria experiência. O que, certamente, não implica em uma simples desordem comportamental, embora essas não sejam impossíveis ou mesmo desrrecomendadas. 

Deve existir no saber, imagino eu, uma dimensão experiencial que busque condições para essa grandiosa experiência da (auto-)crítica, da (auto-)dialética, do (auto-)entendimento, ou qualquer outra forma de iluminação com que os sujeitos filósofos narram as suas histórias de conversão à sapiência. 

Toda ciência, mesmo aquela mais empiricamente experiencial e objetiva, afinal, cedo ou tarde atinge esse estágio de discurso do método. Mesmo os mais restritos, como um Bullock, sentem que chegou o momento das confissões, e passam a relatar sobre como eles próprios afinal obtiveram algum entendimento. E esse Bullock, ao invés de discutir a realidade empírica do fisiólogo, passa a relatar seu "caminho para o entendimento". 

Um deles foi facilitado por  Lorenz: com o estrangeiro, Bullock aprendeu a a importância de representar, no seu discurso científico, não somente a "visão correta", mas também a "visão dos adversários", de maneira a abrir o próprio sistema a esse outro capaz de desafiá-lo. 

nessa querela que antagoniza os "analíticos" e "continentais", certamente, temos muito o que aprender uns com os outros. é muito bela a humildade e todo o fair play intelectual que os intelectuais norte-americano cultivam por gente de todo mundo. qualquer um que conheça um historiador brazilianist sabe o como são gratos ao que se produz por aqui (e suas universidades são tão gratas pela nossa gente que fazem a gentileza de tomar algum jovem cientista da terra para ir produzir lá o discurso universal). é sempre muito nobre pensar que podemos aprender com tudo e todos, e que mesmo o pior dos inimigos pode se tornar fonte de sapiência. como irei descordar, se para a sapiência, até mesmo os tweets mais lixos são meios? por que então o sistema da verdade não está realizado, se todos podemos tão bondosamente aprender com os inimigos e com tudo e qualquer coisa? ora, me furto a respostas mais longas, porque seria entrar em polêmicas, e já estou por aqui de escrever na internet. por enquanto, termino escrevendo sobre a importância absoluta de ter inimigos: não de defende-los como quem está a armar uma arapuca contra os limites da própria razão, - o que é boa ideia da parte de Bullock - mas porque não somente de laços de amizade nasce o pensamento. 

aforismos sobre o prazer

 1. se o princípio do prazer já foi considerado o guardião da vida, a experiência da dependência química demonstra sem dar margem para dúvid...