sexta-feira, 29 de novembro de 2024

UMA CIÊNCIA DIANTE DO MAL: CARLO GINZBURG E O LINGUISTIC TURN

Desejava escrever longamente sobre a sabedoria dos inimigos, mas esse gênero de assunto exige prolegômenos que por si só merecem um capítulo. 

Ao leitor talvez já pareça inadequado tratar de um saber assim, de forma imediata e afetiva - explicitando o ódio - ao invés de me juntar ao culto da objetividade que, sob o epíteto de positivismo, tomou conta da ciência história. 

Se a ciência positivista somente poderia vir a ser pelo exame empírica das coisas externas e naturais, é evidente que, para a ciência histórica moderna, edificada sobre os testemunhos escritos do passado, isso haveria de ser um problema, já que o sujeito, para as ciências naturais positivas, era considerado uma instância da fantasia, ou seja, o local em que os dados empíricos, as intuições sensíveis, eram processadas de formas parciais e infiéis ao real. Se Kant introduz o conceito de coisa-em-si e fenômeno, não se deve esquecer que este se caracteriza pela forma com que um sujeito conhece as coisas.

Ao contrário da opinião positivista, que despreza a subjetividade como máquina torcedora da realidade, estamos aqui inclinados ao fato de que a ciência não somente só pode nascer assim, psicologicamente, mas que é essa psicologia que, no curso de sua experiência, dá os meios para que o próprio conhecimento possa vir a ser. 

Precisamos, para um saber objetivo, não de uma ciência anti-subjetiva, mas sim uma ciência da subjetividade. Essa é a conclusão que se avulta em meu espírito, e que me leva a pensar nos saberes inimigos. O que podemos aprender com eles? Ou ainda, como deve ser o saber  capaz de aprender com eles? 

Essas respostas, antes de serem esboçadas, exigem toda uma série de prolegômenos sobre as condições do saber diante do ódio. Ou seja, do que podemos saber quando nos sentimos tomados por esse sentimento suscitado pelo inimigo, pelo vil, pelo mal, pelo baixo, pelo estúpido, etc. 

A ideia me ocorreu ao ler ensaios de Carlos Ginzburg, um primeiro chamado "A representação do inimigo", e um outro, de nome "O inquisidor como antropólogo". Como se vê desde os títulos, neles o historiador italiano estuda a história não do ponto de vista exclusivamente dos acontecimentos, mas sim de que estes foram subjetivamente representados desde uma relação de inimizade.  

Um outro tema reincidente a esse livro de Carlos Ginzburg (O fio e os rastros) é o ceticismo que recaiu sobre a ciência histórica desde o chamado linguistic turn.

Refere-se aqui aquela crítica epistemológica, de matriz norte-americana, é verdade, mas de origens na filosofia francesa, em que, contra a base do antigo positivismo, e seguindo o caminho já aberto desde as ciências espirituais alemães, evidenciou os limites subjetivos do discurso postos por aquela que se reivindicava como a ciência e a verdade. 

Essa crítica, também dirigida para o saber historiográfico, de modo geral, fez com que os historiadores se voltassem, por um lado, para o fato de que todas representações eram redigidas desde uma subjetividade, de modo a representar não a realidade, mas sim a consciência daquele que escreveu. 

Se essa vertente do linguistic turn se caracteriza por esse psicologismo último, uma vertente aparentemente oposta, mas na verdade complementar, desenvolveu-se enquanto uma ciência imanentes da discursividade, de forma a retratar, pelo exame empírico, não mais a "realidade" em que os ingênuos positivistas tinham afã de encontrar nas representações, mas sim princípios formais e retóricos que formalizavam os textos enquanto códigos socialmente compartilhados.

Perceba que essa crítica imanente não obedecia de forma alguma a contradição estrita posta com aquela ciência das subjetividades primeiras, e que os contrastes entre crítica interna e externa obscurecem quando pensamos que um é condição aprioristica do outro - o código discursivo existe na e por meio da vida, e a vida somente existe e se desenvolve por meio de tais códigos -. 

De qualquer maneira, esse novo ramo de crítica textual imanente da historiografia fez com que muitos historiadores se dirigissem para os estudos poéticos, retóricos, conceituais ou filológicos. A história propriamente dita - queremos dizer, como o clássico gênero das res gestae, em que se investigam os atos, os acontecimentos e ações, esta somente poderia ser posta desde a perspectiva de uma pluralidade de vozes: ou seja, a história somente poderia ser representada enquanto uma indecisão entre os relatos de cada sujeito. Cada documento deveria ser lido não como informação ou dado, mas como uma informação ou dado cujo apriori era o desejo, a paixão, os valores e, de forma geral, toda aquela atividade considerada própria da subjetividade, os excedentes que ela introduziria em sua apreensão do real. 

Foi nessa perspectiva que surgem os chamados cultural studies, que situam as discursividades desde o fato da indeterminabilidade última das verdades, e que não raro se desenvolvem em uma crítica da verdade enquanto imposição despótica de um poder. 

Essa ampla reflexão sobre as subjetividades nos documentos históricos, afinada com a reflexão sobre o poder e o saber no geral, dirige-se ainda pela aparentemente velha dicotomia que fundou a crítica kantiana: a distinção entre coisa-em-si e fenômeno. De modo que essa defasagem introduzida por Kant, que para ela era o ponto de partida para uma filosofia, é agora muitas vezes tomado como seu ponto de chegada

Não  que isso seja exatamente uma novidade. Os dois grandes nomes da metafísica positivista do século XIX, Comte e Spencer, saudaram a reflexão kantiana - a distinção irredutível entre o todo do ser e a parte do sujeito - como o primeiro princípio em que se desenvolveriam suas filosofias primeiras. Tal qual essa vertente historiográfica e cética associada ao linguistic turn, esses velhos positivistas, que acreditavam edificar o mais rigoroso saber empírico, tomavam a distinção entre uma verdade ontológica perpetuamente inapreensível, e um conhecimento parcial dos sujeitos, sempre limitados pela localidade de sua experiência, atrelado aos seus afetos, sentimentos, crenças, opiniões, etc. A distinção entre positivistas e esses que podemos chamar de subjetivistas é mais de posição do que de epistemologia, (pelo menos a partir desse ponto de vista).

Muitas vezes nos parece que o linguistic turn é simplesmente uma vanguarda; sem que o deixe de ser, seu estudo das textualidades e códigos imanentes, muitas vezes, dá vazão a um empirismo caracteristicamente positivista, que impõe ao historiador a necessidade de se ater a essa realidade imediata, que é a textualidade, como a dimensão única do que se pode conhecer. Só que ao invés do dado do fato, o texto passa a entregar somente o código em que este estaria representado.

Todo saber pelos meios do chamado linguistic turn parece se dirigir a um gênero de semiótica. Isso, contudo, não deve ser considerado como um problema em si mesmo. Pelo menos não era para Carlo Ginzburg, para quem o fato da subjetividade e da aprioridade do código, ao invés de problema a ser contornado por uma ciência superior, deve ser tomado como dado necessário para ele. 

O fato é que Ginzburg toma a sua semiótica não das afluentes francesas ou norte-americanas, mas sim da linguística marxista de Mikhail Bakhtin. Lembremos que contra o idealismo da linguística estrutural, esse russo insistentemente remetia a linguagem enquanto um acontecimento, e que por isso deveria ser tomado como uma produção dialógica, e não uma estrutura ou sistema. Inspirado nesse gênero de semiótica material que infelizmente será impossível caracterizar nesse curto espaço de papel, Carlo Ginzburg insiste que as discursividades analisadas, seja pelas semióticas estritamente objetivas, quando seja por aquela crítica das parcialidades de todos os saberes, que esses discursos nascem e operam na vida, para a vida, em resposta aos seus diversos estímulos, e que sua necessidade última só pode estar nessa vida em que surge. 

Talvez isso que aluda com o conceito de vida, no parágrafo acima, esteja demasiado obscuro ao leitor. Essa explicação necessitaria de todo um novo capítulo, e enquanto isso, sequer começamos a explicar sobre as diferentes relações que podemos manter com o discurso odioso. Devemos encerrar logo esse daqui, e nos apressar a escrever um novo, este dedicado estritamente ao discurso odioso. Não podemos deixar de dizer, no entanto, porque seria leviandade com o leitor, que a representação da vida e a representação do texto, e enfim, que o saber histórico num geral, saiba atender as necessidades postas na e pela vida. Por isso a politicidade urgente de seus eruditos panfletos, por isso o furor combativo, por isso a genealogia das ideologias, e tantas formas mais de historiografia que evidenciam o fato do saber existir sobre uma verdadeira guerra, e que esse saber deve tomar parte dela.

 

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

O FIM DO MUNDO COMO FIM DO CAPITAL

hoje aqui em casa a sensação térmica anunciada é de 43º. o calor degradante em que vivemos no subúrbio do rio de janeiro me obriga a pensar nos indícios de que a natureza, pelo menos como conhecemos, irá acabar dentro dos próximos séculos.

a história se dirige a um último termo catastrófico, no estrito sentido de "catástrofe" que possuem os grandes acontecimentos naturais que, ao alterarem significativamente as condições de vida na terra, instalam o início e fim de eras geológicas. atentos a essas descontinuidades, os cientistas introduziram a clássica periodização da história da terra em pré-cambriana, paleozoica, mesozoica e cenozoica. hoje, no entanto, alguns cientistas já passaram a se referir a um antropoceno, tendo em vista essa aceleração entrópica da catástrofe natural, tão engenhosamente colocada em curso por meio da organização do trabalho humano.

alliez e lazaratto, no entanto, ironizam o conceito de antropoceno, e passam a falar de um capitaloceno, como forma de distinguir entre a atual cultura produtiva capitalista, e as demais formas de organização do trabalho ao longo da história. dizem os autores que a aceleração da catástrofe geológica é, exclusivamente, um projeto da moderna civilização, e que mais uma vez confunde-se a natureza sob a atual organização do trabalho e modo de vida com a natureza universal da humanidade:

O capital é um modo de produção na exata medida em que é um modo de destruição. A infinita acumulação que desloca continuamente seus limites para criá-los novamente promove uma destruição ampliada e irrestrita. Os ganhos de produtividade progridem em paralelo com os de destruição. Manifestam-se numa guerra generalizada, a que os cientistas preferem chamar de Antropoceno em lugar de Capitaloceno, por mais que as evidências mostrem que a destruição dos meios nos quais e pelos quais vivemos começa não com o “homem” e suas crescentes carências, mas com o Capital. A dita “crise ecológica” não é resultado de uma modernidade ou de uma humanidade cegas para os efeitos negativos do desenvolvimento tecnológico, mas o “fruto da vontade” de certos homens de exercer uma dominação absoluta sobre outros, a partir de uma estratégia geopolítica mundial de exploração ilimitada de todos os recursos, humanos e não humanos.

enquanto isso, os milionários da big-tech idealizam fantasias de fuga para outros planetas. o saber tecnicista e neoliberal ainda acredita miraculosamente em uma administração da crise por meio da tecnologia, quando na verdade a tecnologia é também fundamento para a dominação e exploração generalizada que mantém o atual modelo produtivo, cuja teleologia não é outra fora o fim do mundo.

sim, está calor pra um caralho. capitalistas malditos, espero que morram de forma dolorosa.


sexta-feira, 22 de novembro de 2024

HUSSERL CONTRA A PSICOLOGIA NATURALISTA

A crítica de Husserl aos psicólogos naturalistas exorta o saber a trabalhar não sobre os "dados primeiros”, i.e., as coisas-em-si anteriores às experiências, aquelas exterioridades que certamente existiam, independente de qualquer sujeito que a experienciasse. 

Não me parece que Husserl queira negar a existência dessas empiricidades de onde provém os dados da experiência. A fenomenologia de Husserl somente deseja rebaixar a qualidade de seu conhecimento perante aquelas formulados pelas ciências da experiência, i.e., aquelas que conhecem não tais dados que seriam dados aos sentidos, existência independente do mundo humano, mas sim que atendesse às necessidades suscitadas pela existência nessa experiência. [nos inclinamos a pensar que já husserl já era um existencialista, pelo menos nos seus "textos de crise", que abandona a posição dogmática e se coloca na altura de um saber circunscrito por uma experiência concreta].

Diante da miséria humana, Husserl exorta aos acadêmicos que pensem não no mundo objetivo e físico, mas sim no mundo conforme experenciado pelos sujeitos. Os relatos sobre a crise da cultura europeia exigem uma sabedoria da vida, uma ciência moral capaz de responder sobre as necessidades dadas na e pela experiência, e para isso, aqueles discursos infindáveis sobre o que seria “dado aos sentidos” independente de qualquer experiência seriam fundamentalmente inúteis, pelo menos se não pressupusessem essa intencionalidade de toda consciência. Husserl impõe a necessidade de pensar-se o sentido do saber desde a experiência humana, dentro de seus valores e contingências temporais e espaciais: 

“Só quando o espirito deixar a ingênua orientação para o exterior e retornar a si mesmo e permanecer consigo mesmo e puramente consigo mesmo, poderá bastar-se a si. Como se chegou a um começo de uma tal reflexão sobre si? Tal começo era impossível enquanto dominava o sensualismo, ou melhor dito, o psicologismo dos dados, a psicologia da tabula rasa. Só quando Brentano postulou uma psicologia como ciência das vivencias intencionais deu-se um impulso que poderá levar adiante, embora o próprio Brentano ainda não tenha superado o objetivismo, nem o naturalismo psicológico. A elaboração de um método efetivo para compreender a essência fundamental do espirito em sua intencionalidade, e, a partir dai, construir uma teoria analitica do espirito que se desenvolve de modo coerente ao infinito, conduziu a fenomenologia transcendental. Esta supera o objetivismo naturalista e todo objetivismo em geral da única maneira possível: o sujeito filosofante parte do seu eu”. HUSSERL, p. 86. 

Compreende-se assim que a fenomenologia supera a psicologia naturalista por voltar-se às ciências do espírito, isso é, da existência como intencionalidade de um sujeito.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

A DEPENDÊNCIA FAMILIAR E A MAIS-VALIA LIBIDINAL

Sempre nos ensinam que os nossos pais são guerreiros, e tal qual os exércitos morrem pelo direito do povo, realizam verdadeiros sacrifícios em nosso benefício. Mais que nossos pais, somente Deus, ao entregar o corpo de seu filho à justiça, conheceu tamanha abnegação. Nossos pais, é o que nos dizem o tempo todo, nos amam mais do que tudo. 

Quando iremos passar a falar da verdadeira mais-valia libidinal que essas mitologias amorosas jamais mencionam? Os pais proíbem o prazer dos filhos como forma de manter o equilíbrio libidinal que lhe é favorável. Alienam os filhos de seus próprios desejos para desacelerar a entropia daquele modo de vida e assegurar o o ecossistema favorável ao seu próprio desejo. 

O poder imperial do adulto contra a criança, a violência amorosa que dedica-se à prole, é no entanto apenas uma das técnicas para a extração dessa mais-valia. A repressão da sexualidade infantil é somente um ponto de todo um vasto circuito por onde se organiza o gozo cósmico. Espero voltar ao assunto da economia sexual em um próximo post para esclarecer como a sociedade é um verdadeiro corpo, uma extensão sensível que integra fisicamente a vida.

domingo, 10 de novembro de 2024

DECLÍNIO DO IMPÉRIO EUROPEU E O DISCURSO POSITIVISTA: sobre as dificuldades de interromper o processo revolucionário

a angústia positivista diante de deter o processo revolucionário desencadeado pelo menos desde a revolução francesa revela um estado de espírito - ou ainda, uma disposição para a filosofia - muito diverso da de hoje, em que a manutenção da ordem e a incapacidade de reinstalar o desejo revolucionário caracterizam a crise de nosso pensamento. 

O discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo de Augusto Comte é do ano de 1848. Nele, o filósofo afirma que, por meio da ciência positiva, surgirá uma novíssima moralidade: será um poder e governo superior, assentado em princípios racionais, capazes de intervir na vida social com maior eficácia e felicidade; o intuito de Comte era uma teoria da governabilidade, capaz de apaziguar os ânimos políticos, sair do estágio de discórdia revolucionária, aberto desde a Revolução Francesa, para se adentrar um novo consenso, que reunisse e alinhasse toda a nação em torno de uma lei análoga ao que teria sido a religião no antigo Império Romano ou sob os auspícios do Cristianismo. 

Apesar dessa tarefa do pensamento estar assentada sobre uma classe dirigente, uma aristocracia do espírito, formada não por privilégios nobres e direito de nascença, mas pela educação e mérito de seu saber, Comte não deixa de situar a necessidade dessa nova moralidade também sobre as classes dominadas, e mais particularmente, ao proletário a à mulher. Segundo Comte, estes seriam os grandes interessados na concórdia das classes dirigentes, já que, como dominados, isso concorreria também para seu próprio bem. A instalação de uma nova soberania conciliadora, capaz de reorganizar o corpo social, seria então um bem-comum, capaz de beneficiar toda a nação por meio da produção de um estado de bem-estar geral: a paz e prosperidade. 

Para compreender a que estímulos esse pensamento respondia, não é forçoso lembrar que esse mesmo ano de 1848 em que se publicou o Discurso foi o mesmo da chamada "primavera dos povos", período reformista e mesmo revolucionário em que se viram consequências políticas da crítica sistemática e ampla que desde muito se fazia ao Antigo Regime e pder monárquico. Na França, a monarquia seria abolida para que se iniciasse a Segunda República. Se o leitor imaginou que a instalação da república e a proclamação do liberalismo eram sinais de que se inaugurou um período de paz e harmonia entre o corpo social, muito engana-se. Apesar daquela breve concórdia, o otimismo de belle epoque, basta nos referirmos aos eventos da Guerra Franco-Prussiana, e ainda, à Comuna de Paris de 1871, para se evidenciar como que os ânimos seguiam elevados, fosse em ambiente nacional ou internacional. E se tivermos em vista a história militar do continente, esta irá desembocar nas guerras mundiais; poderíamos dizer que a esperada moralidade positivista, uma religião fundada na ciência e na razão, não foi muito além de um sonho e um fracasso. E de modo geral, se a expectativa da paz perpétua estava entreaberta desde filósofos pregressos, podemos dizer que foi uma profecia e desejo repetidamente descumpridos pela história, até que, pelo que parece, tenhamos chegado em um paradigma de absoluta descrença no progresso. Claro que me refiro ao que se chama de "realismo capitalista" a que se refere parte da esquerda, mas que os liberais já aviam tratado desde que um fukuyama tratou do fim da história.

sábado, 9 de novembro de 2024

O NACIONAL DESENVOLVIMENTISMO DE TRUMP

trump diz que irá tarifar as importações e deportar os imigrantes ilegais: ou seja, trata-se de, ao mesmo tempo que estimula a indústria nacional por meio do custo das mercadorias importadas, retirá-las um dos seus capitais basilares: a mão-de-obra barata do imigrante. deixo aos analistas de economia política a extração das consequências dessas medidas. como historiador me limito a apontar a retomada do saber econômico-político que, sob os auspícios da ciência eugênica, no início do século XX, passou a manipular a entrada e saída de imigrantes, com o objetivo de otimizar a produção. 

foucault se refere a uma bio-política: é disso, precisamente, que se trata. não obstantes a mística ao redor do ser humano, para a produção, as populações, manejadas por meio das ciências capitalistas (salário por tempo-trabalho, exército de reserva, mais-valia, etc),  são somente outra, e como qualquer outra, parte do capital produtivo. diferem dos materiais, das terras e das máquinas pelo seu valor e posição na cadeia econômica, mas são igualmente reificados enquanto necessidade para a produção. 

ainda me chama atenção, no discurso trumpista, como se reativa o discurso do inimigo invasor: o estado-nação, ora, trabalhará pelo seu povo, e contra os invasores. 

nada de novo no fronte, é claro, embora as circunstâncias estranhas.


VAMPIROS MENSTRUAM?

talvez o vampiro seja um neurótico com uma fobia alimentícia muito grave. e talvez essa fobia seja produzida por um parasita transmitido pela saliva/sangue. é o mecanismo viral perfeito: parasitar a forma cerebral com uma ideia de exclusivismo alimentar que facilita a transmissão. 

como é a reprodução sexual dos vampiros? as fêmeas seguem ovulando, ou ainda, menstruam? e se menstruam, sangram ao menstruar? ou os vampiros somente se reproduzem por meio de mordidas, i.e., transmissão da carga viral via fluídos corporais, como o sangue e a saliva (isso também nos dirige a uma pergunta vital: o vampirismo é também sexualmente transmissível? posso deixar conde drácula gozar dentro?)

segundo os manuais médicos, o vampirismo é um gênero de infecção parasitária capaz de se apropriar do corpo humano para os fins reprodutivos de outra espécie. isso não impediria per si a reprodução do suporte humano, inclusive do seu material germinativo. talvez a fisiologia sexual, nas moças vampirizadas, siga funcionando perfeitamente: os óvulos sigam sendo produzidos, e por isso, esperando ou serem fecundados ou descartados em banho de sangue. (se os vampiros bebem sangue porque seu corpo são deles carentes, não me parece anti-natural conceber uma menstruação sem sangue). 

encerro essa breve investigação com uma nova pergunta: o vampirismo se transmite para a geração seguinte? ou ele somente se transmite pelo contato com a saliva (a famosa e infecciosa mordida na jugular)?

terça-feira, 5 de novembro de 2024

sobre uma psico-episteme em FLORESTAN FERNANDES: o saber universal do burguês ascendente

Caracterizemos brevemente os traços psico-epistêmicos de um Florestan Fernandes. Tal empreendimento não é ocioso, já que, ao invés de nos referirmos a idiossincrasias subjetivas, como que fantasias ou ideologemas que, no ato do conhecimento, seriam o resíduo da produção objetiva, estamos aqui a determinar a psicologia como uma condição para o próprio conhecimento formulado. Esse tratamento psicológico dado ao estudo do conhecimento, ao invés de interditar a possibilidade da verdade objetiva e universal, oferecendo a impossibilidade do conhecimento - necessariamente subjetivo e parcial -, procura sobretudo entender como essas espécies de condicionantes psicológicas se articulam diretamente com a matéria ou conteúdo do saber. Ou seja, como que o saber, ao invés de ser comprometido ou deteriorado pelas disposição subjetivas - suas paixões e afetos -, são, na verdade, possíveis somente neles e por meio deles.

O exame do caso de Florestan Fernandes, portanto, nos serve como ocasião para testarmos essa perspectiva que chamamos de psico-epistêmica, deixando ao leitor a avaliação de sua pertinência para uma história da teoria e das práticas intelectuais, que, à despeito do realce monográfico ou personalista que aqui parecemos impor, deve articular, sobretudo, uma teoria histórica ou social de tais práticas teóricas. Isso implica que as subjetividades, e assim, esse campo de investigação que chamamos de psico-epistêmico, não deve ser tomado como meramente biográfico ou individual, muito embora aqui tomemos uma biografia como ponto de partida. O que pretendemos sugerir é que, ao invés de uma irredutibilidade ao caso concreto e particular, as subjetividades devem ser avaliadas desde a perspectiva de sua interação, de forma que, em nível metodológico e pragmático, a biografia de um sujeito como que evidencia as lacunas e recalques manifestos na escrita de um outro. Essa perspectiva, assim, nos leva em direção a um conceito antes de escritura (cf. Roland Barthes, O grau zero da escritura), em que a subjetividade se vê imposta, desde esse sistema de relações que chamamos de escritura, a tomar posições, ao invés de criar-se a si, autonomamente. Por isso que estamos sobretudo a tomar as subjetividades não como referentes a uma mente individual, mas pertinente a um sujeito transcendental e histórico, cuja totalidade ultrapassa os dados biográficos, de forma a insinuar essa totalidade escriturária em que tal biografia seria somente expressão de uma determinada posição.

Essa longa digressão teórica visa, sobretudo, a introduzir essa nota sobre o caso de Florestan Fernandes. Segundo nossa impressão, tomado de seus textos teóricos sobre sociologia, mas também dos relatos autobiográficos do próprio, encontramos uma convergência entre a mitologia liberal da ascensão social - chamemos isso de mito da democracia social, em que as classes baixas tem possibilidade de ascender econômica e socialmente -, e uma epistemologia que, fundada sobre o conceito de ciência empírica e objetiva, procura instalar o saber sobre um ponto de vista universal e cosmopolita, feito à despeito das subjetividades e, mesmo, contra as suas vaidades e preconceitos.

Explique-se brevemente que a trajetória de Florestan Fernandes, não obstante a origem proletária ou serviçal - enfim, sua origem plebeia -, se inscreve perfeitamente nessa mitologia burguesa que, por meio do trabalho duro, vence todas as barreiras e ascende social e culturalmente.

Ao contrário do que me parece sugerir as mitologias de alguns cientistas sociais das gerações anteriores, associadas ao bacharelismo da primeira república e aos laços senhoriais e aristocráticos, o saber de Florestan Fernandes se formula não como uma produção do sujeito - coisa que, nesse ponto específico, igualaria a produção da verdade cientifica com a criação da obra artística enquanto expressão romântica da subjetividade singular -; mas em Florestan Fernandes a ciência se constitui não sobre as possibilidades de um gênio dotado de aristocrático talento natural, mas sim do árduo trabalho crítico e analítico do profissional sobre os materiais empíricos. Oferecidos universalmente enquanto dado, porção que, à despeito das dispersões representadas pelo tempo e espaço - são eles os fundadores da subjetividade -, são os mesmos para qualquer homem de qualquer origem ou condição. 

A ciência e seus padrões epistêmicos, nesse sentido, estão atravessados por uma espécie de subjetividade burguesa, democrática e liberal: a universalidade exegética, possível à razão mais comum, se formula como oposta ao esoterismo aristocrático que animavam os antigos salões.

aforismos sobre o prazer

 1. se o princípio do prazer já foi considerado o guardião da vida, a experiência da dependência química demonstra sem dar margem para dúvid...