Desejava escrever longamente sobre a sabedoria dos inimigos, mas esse gênero de assunto exige prolegômenos que por si só merecem um capítulo.
Ao leitor talvez já pareça inadequado tratar de um saber assim, de forma imediata e afetiva - explicitando o ódio - ao invés de me juntar ao culto da objetividade que, sob o epíteto de positivismo, tomou conta da ciência história.
Se a ciência positivista somente poderia vir a ser pelo exame empírica das coisas externas e naturais, é evidente que, para a ciência histórica moderna, edificada sobre os testemunhos escritos do passado, isso haveria de ser um problema, já que o sujeito, para as ciências naturais positivas, era considerado uma instância da fantasia, ou seja, o local em que os dados empíricos, as intuições sensíveis, eram processadas de formas parciais e infiéis ao real. Se Kant introduz o conceito de coisa-em-si e fenômeno, não se deve esquecer que este se caracteriza pela forma com que um sujeito conhece as coisas.
Ao contrário da opinião positivista, que despreza a subjetividade como máquina torcedora da realidade, estamos aqui inclinados ao fato de que a ciência não somente só pode nascer assim, psicologicamente, mas que é essa psicologia que, no curso de sua experiência, dá os meios para que o próprio conhecimento possa vir a ser.
Precisamos, para um saber objetivo, não de uma ciência anti-subjetiva, mas sim uma ciência da subjetividade. Essa é a conclusão que se avulta em meu espírito, e que me leva a pensar nos saberes inimigos. O que podemos aprender com eles? Ou ainda, como deve ser o saber capaz de aprender com eles?
Essas respostas, antes de serem esboçadas, exigem toda uma série de prolegômenos sobre as condições do saber diante do ódio. Ou seja, do que podemos saber quando nos sentimos tomados por esse sentimento suscitado pelo inimigo, pelo vil, pelo mal, pelo baixo, pelo estúpido, etc.
A ideia me ocorreu ao ler ensaios de Carlos Ginzburg, um primeiro chamado "A representação do inimigo", e um outro, de nome "O inquisidor como antropólogo". Como se vê desde os títulos, neles o historiador italiano estuda a história não do ponto de vista exclusivamente dos acontecimentos, mas sim de que estes foram subjetivamente representados desde uma relação de inimizade.
Um outro tema reincidente a esse livro de Carlos Ginzburg (O fio e os rastros) é o ceticismo que recaiu sobre a ciência histórica desde o chamado linguistic turn.
Refere-se aqui aquela crítica epistemológica, de matriz norte-americana, é verdade, mas de origens na filosofia francesa, em que, contra a base do antigo positivismo, e seguindo o caminho já aberto desde as ciências espirituais alemães, evidenciou os limites subjetivos do discurso postos por aquela que se reivindicava como a ciência e a verdade.
Essa crítica, também dirigida para o saber historiográfico, de modo geral, fez com que os historiadores se voltassem, por um lado, para o fato de que todas representações eram redigidas desde uma subjetividade, de modo a representar não a realidade, mas sim a consciência daquele que escreveu.
Se essa vertente do linguistic turn se caracteriza por esse psicologismo último, uma vertente aparentemente oposta, mas na verdade complementar, desenvolveu-se enquanto uma ciência imanentes da discursividade, de forma a retratar, pelo exame empírico, não mais a "realidade" em que os ingênuos positivistas tinham afã de encontrar nas representações, mas sim princípios formais e retóricos que formalizavam os textos enquanto códigos socialmente compartilhados.
Perceba que essa crítica imanente não obedecia de forma alguma a contradição estrita posta com aquela ciência das subjetividades primeiras, e que os contrastes entre crítica interna e externa obscurecem quando pensamos que um é condição aprioristica do outro - o código discursivo existe na e por meio da vida, e a vida somente existe e se desenvolve por meio de tais códigos -.
De qualquer maneira, esse novo ramo de crítica textual imanente da historiografia fez com que muitos historiadores se dirigissem para os estudos poéticos, retóricos, conceituais ou filológicos. A história propriamente dita - queremos dizer, como o clássico gênero das res gestae, em que se investigam os atos, os acontecimentos e ações, esta somente poderia ser posta desde a perspectiva de uma pluralidade de vozes: ou seja, a história somente poderia ser representada enquanto uma indecisão entre os relatos de cada sujeito. Cada documento deveria ser lido não como informação ou dado, mas como uma informação ou dado cujo apriori era o desejo, a paixão, os valores e, de forma geral, toda aquela atividade considerada própria da subjetividade, os excedentes que ela introduziria em sua apreensão do real.
Foi nessa perspectiva que surgem os chamados cultural studies, que situam as discursividades desde o fato da indeterminabilidade última das verdades, e que não raro se desenvolvem em uma crítica da verdade enquanto imposição despótica de um poder.
Essa ampla reflexão sobre as subjetividades nos documentos históricos, afinada com a reflexão sobre o poder e o saber no geral, dirige-se ainda pela aparentemente velha dicotomia que fundou a crítica kantiana: a distinção entre coisa-em-si e fenômeno. De modo que essa defasagem introduzida por Kant, que para ela era o ponto de partida para uma filosofia, é agora muitas vezes tomado como seu ponto de chegada.
Não que isso seja exatamente uma novidade. Os dois grandes nomes da metafísica positivista do século XIX, Comte e Spencer, saudaram a reflexão kantiana - a distinção irredutível entre o todo do ser e a parte do sujeito - como o primeiro princípio em que se desenvolveriam suas filosofias primeiras. Tal qual essa vertente historiográfica e cética associada ao linguistic turn, esses velhos positivistas, que acreditavam edificar o mais rigoroso saber empírico, tomavam a distinção entre uma verdade ontológica perpetuamente inapreensível, e um conhecimento parcial dos sujeitos, sempre limitados pela localidade de sua experiência, atrelado aos seus afetos, sentimentos, crenças, opiniões, etc. A distinção entre positivistas e esses que podemos chamar de subjetivistas é mais de posição do que de epistemologia, (pelo menos a partir desse ponto de vista).
Muitas vezes nos parece que o linguistic turn é simplesmente uma vanguarda; sem que o deixe de ser, seu estudo das textualidades e códigos imanentes, muitas vezes, dá vazão a um empirismo caracteristicamente positivista, que impõe ao historiador a necessidade de se ater a essa realidade imediata, que é a textualidade, como a dimensão única do que se pode conhecer. Só que ao invés do dado do fato, o texto passa a entregar somente o código em que este estaria representado.
Todo saber pelos meios do chamado linguistic turn parece se dirigir a um gênero de semiótica. Isso, contudo, não deve ser considerado como um problema em si mesmo. Pelo menos não era para Carlo Ginzburg, para quem o fato da subjetividade e da aprioridade do código, ao invés de problema a ser contornado por uma ciência superior, deve ser tomado como dado necessário para ele.
O fato é que Ginzburg toma a sua semiótica não das afluentes francesas ou norte-americanas, mas sim da linguística marxista de Mikhail Bakhtin. Lembremos que contra o idealismo da linguística estrutural, esse russo insistentemente remetia a linguagem enquanto um acontecimento, e que por isso deveria ser tomado como uma produção dialógica, e não uma estrutura ou sistema. Inspirado nesse gênero de semiótica material que infelizmente será impossível caracterizar nesse curto espaço de papel, Carlo Ginzburg insiste que as discursividades analisadas, seja pelas semióticas estritamente objetivas, quando seja por aquela crítica das parcialidades de todos os saberes, que esses discursos nascem e operam na vida, para a vida, em resposta aos seus diversos estímulos, e que sua necessidade última só pode estar nessa vida em que surge.
Talvez isso que aluda com o conceito de vida, no parágrafo acima, esteja demasiado obscuro ao leitor. Essa explicação necessitaria de todo um novo capítulo, e enquanto isso, sequer começamos a explicar sobre as diferentes relações que podemos manter com o discurso odioso. Devemos encerrar logo esse daqui, e nos apressar a escrever um novo, este dedicado estritamente ao discurso odioso. Não podemos deixar de dizer, no entanto, porque seria leviandade com o leitor, que a representação da vida e a representação do texto, e enfim, que o saber histórico num geral, saiba atender as necessidades postas na e pela vida. Por isso a politicidade urgente de seus eruditos panfletos, por isso o furor combativo, por isso a genealogia das ideologias, e tantas formas mais de historiografia que evidenciam o fato do saber existir sobre uma verdadeira guerra, e que esse saber deve tomar parte dela.