acordei tarde. a ansiedade com o horário - examino o relógio o tempo inteiro -, a insatisfação com a perda diária, infinitesimal, de produtividade - sou meu próprio chefe - certamente predispôs meus nervos a tristeza. não deu outra: abri o celular, o olho sujo de remela ainda, e uma coisa qualquer, banal e incapaz de perturbar ninguém, foi suficiente para me deixar melancólico. resolvi comer café da manhã na rua, é coisa que faço para tentar acrescentar alguma dignidade ao meu dia. lembro de que assim faziam os escritores no século XX, que imito por fantasia, já que há muito escrevi do sonho de escrever. enquanto caminho até a padaria, faço as contas: quatro e cinquenta o pão com ovo, mais quatro o café, e com certeza vou pedir outro, então doze e cinquenta. não sei porque animo essas contas fora a pretexto de me torturar, já que não controlo meu dinheiro para além de pagar minhas contas todo mês, mas faço mesmo assim. cumprimentei a garçonete, que me conhece pelo nome, pedi a comida, que estava até saborosa. conversei com um outro cliente, primeiro sobre os acontecimentos da política internacional, depois sobre os nacionais, e por fim ele me contou uma história de sua vida. era advogado, e certa vez foi preso. a história é boa, mas não quero escrever por preguiça. voltei então para casa (tudo isso durou menos de trinta minutos) e voltei aos meus afazeres de todos os dias, desde o primeiro minuto contando as quatro horas que demorariam para que pudesse fazer a pausa para almoçar os restos do jantar de ontem.
sábado, 15 de junho de 2024
foucault sobre o escatológico e o positivista, a promessa e a redução
interessados na discussão sobre dialética, abram a página 439 do "as palavras e as coisas de foucault", a seção "o empírico e o transcendental", em que foucault caracterizará o discurso positivista e escatológico, comte e marx, como de uma "ingenuidade pré-crítica" (p. 442).
o positivismo é um conhecimento da redução: um discurso que busca o ser discursivo anterior a qualquer discurso, capaz de falar o objeto em sua pureza pré-linguística, e por que não?, pré-humana, para-humano, meta-humano, etc.
a escatologia, por sua vez, é o discurso da promessa: o objeto será conhecido em sua pureza e nudez somente depois do discurso; será revelado por meio das críticas sucessivas ao discurso pretérito, sempre capazes de refazer e elevar sua relação com o objeto apreendido. é um discurso pós-linguístico, que por meio da linguagem, não obstante, ultrapassará os seus inconvenientes, para enfim conhecer aquilo que anteriormente era prometido conhecer.
no término da leitura de "as palavras e as coisas"
com as últimas notas, que crescem em retumbante operística, ainda a ressoar em meus ouvidos, termino enfim "as palavras as coisas". da densa história das ciências humanas, foucault conclui por sua brevidade: nascido velho, o homem encontrará desfecho tão logo aconteça o prometido desfecho.
se por um lado sua obra é de análise meticulosa, de scholar, pesquisador profissional, por outro ela segue o caminho indicado por sua estrela-guia, nietzsche: confecção de saber que antes de tudo é mapa e bússola, forma de orientação no tempo e espaço do pensamento. estamos no limiar da humanidade, conclui foucault no apêndice profético feito à meticulosa história que escreveu: formado o homem na dispersão da linguagem, quando, no século XX, os indícios indicam seu re-congresso - a literatura, a linguística, o estruturalismo, a psicanálise - por que não concluir então por um desaparecimento desse mesmo homem cujo saber está delimitado por sua natureza finita, no reduplicar empírico-transcendental que lhe põe e lhe pensa no mundo o mundo (e vice-versa), que enxerga no seu pensamento a extensão do impensável a ser coberto pela razão, busca por uma origem ausente e prometida? desculpem se não falo em termos claros, somente tento formular a questão obscura do humano nas palavras que, pelo progresso lento, reiterativo e metódico do livro, foucault faz surgir de maneira clara em nosso espírito. é um livro, portanto, de paciência, cujo saber nasce por um progresso análogo a de uma viagem: não por expedientes conceituais que esclarecem de imediato um ao outro, em economia precisa de significação, mas em experiência em que a paisagem se desenha somente na extensão, nunca na brevidade do instante. por isso a lembrança tão francesa do ensaio cartesiano, que embora não recuse a ordem e o rigor da composição, seus termos estão em seu lugar em relação a uma extensão, uma escritura que ganha sentido na longa duração da espera, da leitura, da meditação, da paciência. um livro, portanto, para se demorar.
mais uma revisita ao brasil de gilberto freyre
depois de muito tempo voltei a ler gilberto freyre. "sobrados e mucambos". havia me esquecido como é estranha sua sociologia: no desarranjo que faz com a teoria social, nos cortes e ligações entre conceitos antigos, criação de outros, cria a impressão não só de uma individualidade de estilo ou teoria, mas também de uma individualidade de brasil. a impressão que me causou, depois de um bom tempo sem visitar seus livros, é de que a paisagem traçada produz um efeito etnográfico, de enviar o leitor a uma região estrangeira, diversa daquelas construídas pela sociologia corrente, europeia. a aproximação da sociologia com o gênero etnográfico me parece se relacionar com a liberdade ao mesmo tempo formal e teórica dos etnógrafos: submissos menos às convenções (formais e teóricas) do gabinete científico do que aos impulsos orientados pelas impressões do campo. é claro que, para uma história do brasil patriarcal, falar em "campo" é um pouco impróprio, mas, a partir da teoria proustiana, meditativa, que atravessa a história de gilberto freyre, o campo poderia ser entendido em sentido duplo: tanto aquele que prolonga romanticamente o passado no presente vivido, e o arcaico seria reencontrado, em seus restos e ruinas, no presente moderno, mas também no próprio corpo do pesquisador, gilberto freyre, que seria parte dessa história sentimental brasileira, dessa sucessão de afetos e desejos regionalmente contidos, fisicamente postos a circular, socialmente orientados, que constituem os sujeitos moventes pelos espaços do território-nação. o corpo seria então uma espécie de campo: o fato de servir-se de si como documento, dos sentimentos, memórias de menino, medos, traumas, desejos eróticos, enfim, as experiências brutas do sujeito, não seria impedimento de ciência, mas forma legítima de formulá-la dentro desse nível etnográfico, da particularidade cultural, que escapa às sociologias generalistas de matriz europeias. o resultado desse e outros procedimentos, como disse de início, será uma sociologia estranha por não ser estrangeira: estranheza que, não obstante, de alguma maneira serve ao reconhecimento do nacional, do subjetivo, das experiências vividas trans-historicamente por brasileiros. ou, pelo menos, diante da disseminação da obra gilbertiana no imaginário de tantas outras, poderiamos dizer que ela atingiu sua eficácia de criar um mundo potencialmente brasileiro, capaz de preencher as fantasias, ao menos, das classes relacionadas nostalgicamente com o patriarcado.
um materialismo libidinal
pouco tempo vi cá no site discussões sobre o conceito de materialismo libidinal, que me pareceu indefinido, enquanto em gilberto freyre - sem que receba essa nome - surge de forma tão clara.
quando se fala no ímpeto de que as "caboclas recém-civilizadas" se penteavam "como as damas portuguesas", a figura termina de ser composta por seu par antitético, as "negras e mesmo mulatas de cabelo mais encarapinhado", que não podiam pentear cocós tais quais as senhoras elegantes. diz gilberto freyre que, no lugar dos penteados, disfarçavam "essa incapacidade" - essa vergonha - "usando vistosos turbantes que se tornaram insígnias ao mesmo tempo de raça e de classe servis ou ancilares". (p. 362)
relativizado os valores assumidos pelos penteados e turbantes ao longo da história - o próprio gilberto, creio que depois de suas viagens, irá rastrear o uso do turbante como forma ancestral, oriunda da áfrica e transmitida para o brasil por meio dos escravizados - o que importa demonstrar é a cadeia articulada pela série "negra de turbante - cabocla recém-civilizada - dama portuguesa": em sua estrutura de classe e raça não se define somente o sentido do acúmulo econômico (na direção da casa-grande), mas também esse indescritível acúmulo libidinal, em que o desejo se funda, desde suas formas mais baixas - a vergonha, a inveja - até as elevadas - o orgulho, o amor-próprio -. a escrava, envergonhada de si, dos cabelos, esconde-os com turbantes, que vem a ser insígnia de inferioridade social; a cabocla, recém-civilizada, ascendente, copia o penteado da casa-grande, importado dos cabelos europeus. essa lógica da inveja, que no sistema libidinal global tradicionalmente, pelo menos a partir do século XIX, terminará na frança, no típico complexo parisiense que assola as classes aristocráticas brasileiras, constitui de maneira clara o que pode ser chamada de economia libidinal: uma repartição do desejo dentro da repartição de classes/raças. marcado pelo "desejo de ser outrem", ou ainda, de imitação, essa espécie da ontologia da falta fundaria subjetividades negativamente definidas, ou ainda, subjetividades definidas enquanto signos de outra. fanon era bem claro quanto a isso: “o negro antilhano será tanto mais branco, isto é, se aproximará do homem verdadeiro, na medida em que adotar a língua francesa”. (p. 33) podemos então tratar de uma metafórica mais-valia das paixões, em que para extrair-se o amor-próprio, a vaidade, o luxo, é preciso mitigar o alheio, em uma violência que transforma o outro em inferior; ou melhor: funda o outro, pela força do sistema libidinal em operação, como inferior.
deixo uma citação sobre a carnavalização resultante dos cruzamentos entre o baixo e o alto, como se existisse uma inércia no movimento, uma resistência que impedisse que a libido simplesmente corresse de baixo para cima, uma transformação inerente ao movimento:
"O referido príncipe Maximiliano notou, no Brasil serem os portugueses bons cavaleiros, amantes de um andar 'passeiro' de cavalo, para o que atavam às patas dos animais pedaços de madeira. Mais: usavam enormes esporas, no que os imitavam, quanto possível, caboclos e mulatos mais sacudidos como o que Maximiliano conheceu em São Bento: espada de lado e esporas atadas aos pés descalços. Ostentação de insígnias de classe dominante por homens agrestes demais em sua cultura para renunciarem ao gosto da gente de sua raça pelo hábito de andar descalça, mesmo quando revestida de adornos mais solenes". (p.363)
podemos dizer, sinteticamente, que a imitação, tal qual a teoria mimética do luiz costa lima, sempre comporta alguma diferença. socialmente, essa diferença funda a cultura autenticamente brasileira que gilberto freyre busca.
domingo, 2 de junho de 2024
a indiferença de machado de assis
sábado, 1 de junho de 2024
A INTRODUÇÃO DO SABER
1.
Escrever sobre um livro, ou melhor, simplesmente lê-lo, pensá-lo, se entregar distraidamente a qualquer uma destas atividade banais cuja aparente ausência de movimento sugere antes o estado de repouso e de lazer do que o ávido trabalho, é e talvez seguirá a ser, para toda uma nova geração destinada pelos aparelhos acadêmicos ao trabalho de escrever, ler e pensar, um hábito estranho, muitas vezes exercido à contragosto. É estranho para uma criança de classe média, descendentes talvez de escravos ou de imigrantes pobres, ou fruto de uma linhagem de trabalhadores liberais, saber manejar um livro. Sua atenção foi condicionada por desenhos animados, fóruns na internet, filmes hollywoodianos, relacionamentos amorosos, vídeo games e, em níveis convencionalmente intelectuais, provas, aulas, vestibulares, exercícios que talvez lhe tornem adequado aos problemas da engenharia e da computação rudimentar, do exercício de escritório, mas que, diante deste artefato estranho, o livro, sempre reconhece certa estranheza.
2.
Mais cedo, uma amiga que conheço faz pouco tempo, e por quem rapidamente cultivei um perigoso erotismo, disse que sua busca por conhecimento é como a tentativa de reencontrar o falo para sempre ausente.
O erotismo se torna perigoso e verdadeiro quando me sinto assim, aberto, em carne viva aos pensamentos e línguas estrangeiros, que não fazem parte de mim. Por meio de uma pessoa que conheço a alguns dias passo já a pensar minha própria vida, de suas palavras faço cadinho para meu pensamento.
3.
Para mim os livros, os saberes, nada disso me parece natural, e mesmo depois de quase dez anos de estudo, não me sinto introduzido a esse mundo, pelo menos não da forma que um herdeiro legítimo pelo seu pai foi introduzido.
sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história
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50. RONDA NOTURNA A parte mais noctâmbula da sociedade saía das óperas e comédias que enchiam os teatros do centro e se dirigia,...
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A intransitividade do amor parece sugerir o fulgor do desejo, que se conecta em detrimento das raças . Amar, verbo intransitivo , é um roman...