terça-feira, 6 de agosto de 2024

cena de seriado

ela despertou em um comodo pequeno e apertado. a única mobília era uma mesa de metal de boteco. numa extremidade, a porta escura, de metal, trancava-a para dentro. confusa, foi tateando pelas paredes de carpete azul-marinho com desenho geometricos cor de verde musgo até suas mãos pálidas, sem sangue, sentirem o metálico da maçaneta. constatou estar trancada a maçaneta e virou-se. foi então e percebeu haver um aparelho de rádio, sua tomada ligada na única tomada da parede, em cima da mesa. 

seus sentidos estavam ainda fracos quando ela chegou no aparelho de rádio. será que estou drogada?, perguntou-se. a luz estava forte, principalmente o verde e o escuro. as coisas eram definidas ora com extrema clareza, ora de uma forma opaca, cuja indeterminação da forma fazia parecer ser mil coisas distintas. nessas silhuetas frágeis formadas em sua visão, ela encontrava, com clareza, as mais variadas criaturas. assim que, por um instante, acreditou ver na mesa a forma de uma embarcação. estava com a proa apontada para o lado, o casco visto em sentido horizontal, como se a barca passasse diante de sua vista. pensou por um instante que estava diante do mar, mas no instante seguinte já havia percebido tratar-se de somente uma mesa de metal com estampa de cerveja. 

devagar, sua mão avançou na direção do aparelho de rádio: haviam quatro botões em formato de setas, um para ajustar o volume e outro para mudar a frequência de rádio. depois de procurar o inexistente botão de ligar, teve a ideia de aumentar o volume. lentamente, cresceu a voz de um locutor. ele falava de modo galante e divertido:

- você finalmente acordou! olá, estranho. como vai?

ela não fez nada, só piscou.

- olá? está aí?

- estou, finalmente respondeu.

- olá, estranho, como vai?

- vou bem... e você?

- eu vou muito bem. meu dia está maravilhoso. 

- fico feliz. 

- mas e você?

- não sei bem como cheguei até aqui, pra falar a verdade.

- como se chama? 

- me chamo... 

ela constatou não saber como se chamar. 

- não lembro. 

- não lembra?, disse a voz, tentando parecer simpática.

- não lembro.

- se quiser, posso te ajudar.

- quem está falando?, e ela começou a revirar o rádio procurando algum microfone, mas não encontrou nada.

- posso te ajudar se quiser, disse novamente a voz do locutor. ela procurava nas paredes da sala, mas não encontrava câmeras escondidas. será que era o rádio que falava?

- me chamo marcos, sou o secretário da advogados mandrake & hernane, e caso desejar, posso iniciar o serviço de cadastro do senhor. 

- advogados...? 

- advogados mandrake & hernane, dois dos melhores advogados desse distrito, trabalhando à preços sociais. 

- pode me dizer onde estou?

- somente se a senhora fizer nosso cadastro.

ela deu um pulo para trás e começou a revirar os cantos da sala, mas fora a porta, não havia nada. olhou então as próprias mãos, e depois para os seios, esfregou entre as virilhas e constatou haver uma vagina. 

- como sabem que sou mulher? por onde estão me vendo?

- não quis parecer rude, percebi pelo tom de voz mais agudo. 

- me diga onde estou.

- que impaciência! você precisa tanto assim de saber o lugar onde está para viver? por que não vive sem essa necessidade de determinação geográfica? toda a natureza é habitável. o ser humano antes da civilização pode viver bem em qualquer ambiente. por que insiste em saber onde vive, se poderia ser feliz sem saber? 

- que eu não soubesse sequer por onde ando? se eu não me preocupasse minimamente com minha vida?como poderia andar sem saber aonde ando? as ruas não são seguras. o mundo não é bom. como não me introduzirei nas necessidades da civilização se já vivo em uma civilização? que a civilização não é um estado de espírito que se aprende porque foi condicionado a aprender, mas é a própria realidade em que vivemos. 

- não lhe parece que poderia ser mais feliz se não soubesse onde está?

- me diga onde estou. 

- somente depois do cadastro, senhora. 

por um segundo ela pensou em arrancar o rádio da tomada, mas se freio. 

- me diga o que fazer.

- muito bom, senhora. tenho certeza que não se arrependerá de ter contratado o serviço da advogados mandrake & hernane. 

- nada, pode me dizer agora o que preciso para o cadastro?

- me diga primeiro seu nome.

- me chamo..., e ela percebeu não saber como se chamava. 

- seu nome, senhora. 

- eu... não me lembro? 

- a senhora diz que não lembra de seu nome?

- talvez..., mas ela não conseguia lembrar de nada.

- posso cadastrá-la como "anônima"? 

- pode... pode... 

- a partir de agora irei chamá-la de anônima. caso deseje modificar seu nome de cadastro, precisará nos enviar uma solicitação. poderia agora nos informar onde a senhora nasceu?

mas, novamente, ela não sabia a resposta. 

- eu não sei onde nasci..., ela disse, mais para si mesma do que para o secretário. 

- perfeitamente, cadastraremos como "desconhecido". agora, mais uma pergunta: pode nomear o nome da sua mãe ou de qualquer cidade que já tenha vivido?

- eu não sei onde vivi e... não sei o nome de minha mãe. 

- irei cadastrar "desconhecido" nos dois campos, portanto. agora, última pergunta: "deseja contratar os serviços de representação da advogados mandrake e hernane a partir das condições de facilidade social, em que a senhora recebe um empréstimo do banco big money inc. para arcar com os custos iniciais e só começa a pagar a primeira parcela daqui a três meses, ou deseja pagar imediatamente?

- eu... não acho que tenha algum dinheiro comigo.

- excelente, disse o secretário. 

- pode agora me dizer onde estou?

- ainda não estou autorizado, anônimo. retornarei em breve, quando pudermos iniciar a prestação de serviço. muito obrigado. 

o rádio ficou mudo. ela tentou aumentar o volume, procurou outra estação, mas não encontrou mais nada naquele aparelho. 


 

sábado, 3 de agosto de 2024

17. a iniciação de lola baruch

o fracasso condena, mas liberta, disseram a greta gothe, uma putinha austríaca de cabelos escuros que veio para buenos aires com um marido velho e violento. 

o marido morreu de pneumonia logo depois de ter chegado, o que foi bom: greta gothe era espancada repetidamente pelo marido bêbado fedido de vinho. como tinha boa educação, ela passou a dar aulas para a alta sociedade de buenos aires: de alemão e de piano. não esperava, no entanto, que com a grande guerra viessem para buenos aires tantos professores muito mais aptos, fosse no ofício musical, fosse na arte do alemão. apesar de uma moça bem-educada, ela não era exatamente profissional em nada: ensinava para aqueles latino-americanos, impressionados com qualquer coisa de europeu, apenas os rudimentos que a educação mundana havia lhe ensinado para viver em uma boa família. 

as mulheres nesse tempo eram modeladas para serem esposas e donas de casa: para parir e alegrar o ambiente doméstico. digo para parir porque o sexo, para elas, deveria ser estritamente biológico. as artistas do sexo eram mesmo as putas, que os maridos, na calada da noite, se engraçavam. greta gothe primeiro não sabia foder: tudo que era era uma austríaca de trinta e dois anos, viúva de mamas caídas de cadela prenha depois de ter dado a luz ao primeiro filho. se sentia velha e indesejada no mercado matrimonial. vivia com os últimos recursos deixado pelo marido, e já pressentia a profunda carestia. 

vir para país miserável desse para passar fome, pensava no seu íntimo, enquanto dava de mamar para o pequenino hans, que devorava o leite espesso de seu seio como se pressentisse se tratar da última ceia. em breve, seu peito secaria e nem ao filho teria o que dar de comer. já não era humilhante ela própria ter que dar leite para o próprio filho? céus, não esperava vir para um país com essa moeda miserável para não poder nem mesmo pagar uma índia pra amamentar meu filho, ela pensava em seu alemão. seu pensar em alemão era seu elo restante com sua terra natal: pela boca, falava somente com seu espanhol desajeitado. pelas mãos, não escrevia mais para o velho continente, porque tinha vergonha de contar de sua situação. os parentes estavam mortos, e não tinha coragem de pedir auxílio para mais ninguém desde que fora humilhada pela família do marido, que nunca aceitou o casamento dos dois - todos imaginavam que greta gothe era uma vigarista pequeno-burguesa em busca de herança, e quem diria, depois de ter aceitado ir para esse fim de mundo, o marido deixou-lhe menos de dois mil pesos e uma barriga emprenhada com seus genes de judeu avarento -. 

olhava o pequeno hans sugar as energias de seu seio e não sabia se devia amá-lo por ser fruto da sua carne, sua única família, ou se devia odiá-lo por ser mais peso preso ao já insustentável peso do seu ser. outro dia leu no jornal sobre um bebê encontrado morto em uma lata de lixo e ocorreram em sua cabeças pensamentos criminosos. matar aquela criança, seria delicioso... mas olhava os olhinhos de seu hans e sabia que seria incapaz, não seria? sim, seria incapaz de matar seu próprio filho, mas alguma coisa era preciso ser feita, algum limite precisava ser ultrapassado. não podia mais trabalhar como professora, tentou o emprego de secretária, mas não conseguiu encontrar nenhum. o desemprego, naquela buenos aires cheia de imigrantes italianos, estava enorme. greta gothe odiava o cheiro daqueles italianos chegando das fábricas para dormir na pensão claustrofóbica em que vivia desde que perdera o emprego na casa dos ocampo. a família de aristocratas parasitas, herdeiros de cargos públicos e instancias conquistadas à sangue dos índios, havia preferido contratar uma certa madame carrouges, uma francesa velha e com uma verruga na ponta do nariz, para instruir as crianças. a senhora ocampo não gostava de ter uma mulher jovem e bonita, mãe solteira e viúva, dentro de uma casa de família.

demitiram greta gothe com a desculpa de não desejarem ser confundidos com germanófilos: que os tempos de guerra implicavam em uma politização da vida cotidiana. lamento, ela disse, dissimulando uma carinha de tristeza, mas nesse tempos duros de guerra, precisamos nós, bons argentinos, reafirmar nossa ligação com nosso sangue, com nossa raça, com nossa herança latina. não podemos compactuar com um povo inassimilável em nossas terras, com a boa raça, reconheço, dos germânicos. aqui não é lugar para vocês, terminou por dizer e desde então nunca mais pisou na mansão dos ocampos. 

greta gothe portanto estaria arruinada se não aceitasse ir até onde sua moral não permitia: não matou seu filho, mas vendeu seu corpo. uma italiana de nome helena piglia, que morava na pensão e trabalhava de puta, disse que aquela fisionomia teutônica de greta gothe seria um espécime bem-vindo no bordel de madame rousseau. ela explicou que madame rousseau prezava sobretudo por um cardápio humano variado: se orgulhava de oferecer, em seus prostíbulos refinados, a maior variedade de raças e sub-raças. essa fisionomia austríaca de greta gothe seria certamente um artigo raro, ela insistia, toda vez que se reuniam. demorou certo tempo, é claro: as ideias morais precisam ser gradualmente dissolvidas, precisam ser submetidas a banhos de ácido constantes, até que se desfaça o plástico artificial que a civilização impôs sobre os órgãos animais, de instintos puros, irrestritos. 

greta gothe, quando chegou às mãos de madame rousseau, era uma mulher assustada, mas de constituição vulnerável, capaz de, por conta de sua precária situação material e psicológica, desfazer-se de todas razões morais cultivadas ao longo de sua formação, e se tornar aquilo que precisava se tornar para sobreviver na selva de velhas casinhas baixas sob o entardecer e de prédios em construção por operários italo-hispânicos que caracterizavam a vida urbana de buenos aires. a primeira vez que fez e recebeu o dinheiro por ter feito, se sentiu horrível, uma criminosa, mas madame rousseau, dotada nos ardis e nas palavras mais doces, tranquilizou-a como uma pantera velha amansa um filhote assustado diante da adrenalina de capturar a primeira presa. madame rousseau era uma professora talentosa, sabia disciplinar daquela forma que faz o pupilo acreditar que o condicionamento era na verdade libertação: e não era, afinal, a liberdade aquilo que greta gothe conquistava, ao libertar seu corpo do destino inerte de dona de casa? aprendeu aquilo que todo homem desejava: com sua língua, treinada nos segredos do amor físico, fazia os maridos esqueceram suas esposas. com o jeito que se movia, com a forma elegante e vagabunda com que falava, seduzia. era justo pagar essa nova liberdade com uma nova escravidão, concluiu certa vez, para tranquilizar a nova lola baruch. e repetiu à jovem , como se fosse de sua autoria: o fracasso condena, mas liberta, minha querida. essas palavras não pareceram ter repercussão no espírito de lola baruch, que silente se dirigiu à alcova. tirou a roupa extravagante com que fora vestida, e ficou somente de conjunto. tentava não pensar em nada, e até conseguia. então ouviu o barulho da porta. à meia-luz, não viu muito do que acontecia, e também fez questão de fechar os olhos. pena que não podia fechar o nariz e não sentir o cheiro de álcool barato, fechar os ouvidos e não sentir a voz baixa e indecente, fechar a pele e não sentir a baba escorrendo em seu pescoço, a barba mal-feita espetando seu queixo, o toque bruto machucando a pele sobre suas costela.

16. o destino de lola baruch

fazia frio. lola baruch se envolvia com o único lençol que havia encontrado na casa. em sua cabeça, pensava nas palavras que nina rodrigues havia dito. mas não parecia nina rodrigues: parecia uma gêmea maligna, com penteado diferente e usando maquiagem. chegou de vestido, e de braço dado com telles. a voz, no entanto era a mesma. cumprimentou lola baruch, e perguntou por novidades. lola baruch estacou, olhando ora para nina rodrigues, incrédula com aquele jeito de se portar, ora para telles, de feição séria, levado por ela como um cachorrinho bem-alinhado, com cabelos repartidos, barba feita e um terno engomado. 

lola baruch havia passado alguns dias fora da cidade e, sem aviso, tudo mudou. chegou e descobriu que azevedo diniz estava foragido, acusado de ter violado a irmã cleópatra. não quis acreditar, mas o silêncio de thomas plínio, a quem procurou no seminário, fez que pensasse o pior. 

- venha, disse thomas plinio por fim, venha rezar pela alma de nosso amigo. e beatamente se ajoelho no genuflexório e fechou os olhos.

ola baruch não viu remédio fora fazer uma prece. depois de ditar algumas palavras improvisadas a jesus, abriu o canto do olho e viu que thomas plínio ainda rezava. esperou quase cinco minutos até que ele abrisse os olhos, se levantou e viu que eram observados por um rapaz de pele sebosa e cabelos longos. pelas vestes, era seminarista também. 

- olá, thomas.

- olá, kelvin dibiase, respondeu o outro. os dois passaram a conversar sobre o que havia acontecido a uma freira, lucrécia, que lola baruch não conhecia e cuja história não interessava. depois de alguns instantes se escapuliu. nada no entanto foi mais chocante do que a carta que encontrou ao chegar em casa. um moleque entregou e ela pagou com uma moeda. era de rené descartes, o velho cadeirante, ex-senador, que escrevia a seu pai solicitando sua assistência na conspiração contra o presidente. lola baruch tremeu. tentou fechar a carta, mas o lacre já estava violado. não havia como fingir que não abrira, então atirou a carta no fogo. 

por causa desse ato involuntário, quando o novo presidente foi eleito pela junta provisoriamente que havia tomado o poder, um vizinho que trabalhava no ministério da guerra avisou que a família estava na lista de suspeitos apoiadores do antigo governo. muito provavelmente, explicou, iriam mandar uma patrulha para capturar e torturar o pai de lola baruch. a família então precisou se esconder no campo, pelo menos durante algum tempo. ficaram numa velha cabana, até que um homem entregou passaportes falsos por baixo da porta. viajaram para a argentina. o inverno era rigoroso, a casa não tinha lareira, e seu pai trabalhava como pedreiro. a mãe queria costurar roupas para fora, mas o pai proibiu, porque seria indigno a uma esposa sua que trabalhasse. 

foi então que lola baruch se tornou prostituta, depois que, em certa noite, enquanto caminhava pelo distrito comercial, lugar de noitadas, fez amizade com uma puta de nome beatriz. não sabia se era nome de guerra ou real, mas lola baruch achou poético conhecer beatriz, aquela menina nova, de pele ainda bem cuidada, a voz de menina angelical,  um submundo infernal e portenho, entre marinheiros fedendo a suor e dandies esquisitões que colocavam drogas nas bebidas das mulheres que queriam levar para cama. quando reencontrou beatriz, ela estava acompanhada de condessa rousseau, uma suíça de uns cinquenta e poucos anos de idade que fingia ser uma francesa de quarenta e dois. a maquiagem pesada ajudava no disfarce, pelo menos na meia luz que banhava o submundo de buenos aires. sob a luz clara, a maquiagem de condessa rousseau se tornava uma expeça massa argilosa cor de pele, como uma fina porcelana repleta de sulcos que se moviam junto de seu rosto. condessa rousseau acho lila baruch bonita, bem formada de corpo. depois de dobrar o salário inicial, a menina enfim cedeu. 

- excelente. começamos na próxima noite, disse a condessa, com um sorriso amplo que revelava todas as rachaduras de seu rosto.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

crônica sobre meus vícios de leitura

 tenho um defeito que gosto: estou lendo a história da filosofia de dilthey ("essência da filosofia") e, depois de alguns comentários breves sobre hume, concluo que é imprescindível ler o filósofo inglês para compreender melhor esse não-sei-o-quê que estou compreendendo. essa aparente virtude da curiosidade contudo se torna um vício quando estou frequentemente aumentando o escopo de minhas leituras para além de um centro comum; especialmente porque tenho uma tendência de rejeitar as bibliografias secundárias, as histórias e comentários em geral - não por desconsiderar sua sapiência: é mais um método de trabalho, um gosto epistemológico impressionista, como se quisesse apanhar as palavras em seu momento de ação, no golpe discursivo inteiro, no instante empírico do acontecimento - e perder, consequentemente, muito tempo procurando fios e sentidos comuns. o resultado é uma confusão constante, um eterno adiamento das conclusões, e o pior, da escrita, que atrapalha a prática profissional, mas, pelo menos me divirto.

definição da razão sob o iluminismo: reflexão sobre as condições de experiência

dilthey formulou, sob o nome de "experiência da vida" ("essência da filosofia", p. 76),  um conceito de esclarecimento progressivo do desejo ao longo do tempo: uma razão crítica que, na capacidade de objetivar o mundo - e a própria vida - no curso de sua duração, é capaz assim de atingir uma plenitude e satisfação superior ao da mente inocente, que simplesmente vive, sem reflexão do como, porque e para quê. 

a poesia e a história se tornam suplementos para a experiência, formulações capazes de auxiliar a tomada de consciência do valor universalmente válido, ainda que validado universalmente dentro da perspectiva do valor particular em que se dá a vivência. 

existe uma adequação da sabedoria transcendental ao fluxo imanente da vida, e também uma separação entre aquilo que seria a sensação, a (in)consciência em estado irrefletido, pragmático e mundano, e uma consciência superior, contemplativa, característica da etapa racional verdadeira: aquela capaz de julgar reflexivamente sobre a própria experiência ainda durante o curso desta. 

nesse esquema teleológico de esclarecimento do desejo, em que o progresso do tempo representa o progresso do julgamento e compreensão, e assim, da felicidade e saciedade, da sabedoria do desejo, de caracteriza uma filosofia oposta a de freud. talvez seja essa uma diferença significativa entre a hermenêutica posta pela psicanálise e uma como a de dilthey: porque a psicanálise de freud propõe o inconsciente como uma espécie de aparelho que sempre desviaria os progressos do esclarecimento. se em dilthey há um desenvolvimento da razão sobre o desejo, um domínio crítico da consciência sobre o curso errático da experiência, freud irá inverter os termos: o desejo irá permanentemente errar a razão, e o curso da experiência irá repetidamente contrariar a crítica que supostamente se proclama dirigente desse processo. 

a conclusão mais importante dessa breve comparação é uma descrição clara do que afinal significa "razão" para um iluminista como dilthey: um saber universalmente válido capaz de julgar e refletir - desde um ponto de vista transcendental - as experiências históricas e particulares da vida. se por um lado dilthey formula a multiplicidade de experiências, sua hermenêutica se descreve pela razão - a própria filosofia - capaz de avaliá-las desde esse ponto de vista da universalidade. 

isso quer dizer que a verdade em dilthey é menos metafísica do que antropológica: diz sobre a vida, está dado no nível dos valores de cada tempo e indivíduo, legisla sobre a felicidade e seu bem-viver, e enfim: é uma verdade que poderíamos chamar de ética. 

a razão universal diz sobre a capacidade do homem julgar cada experiência particular dentro de sua particularidade, e desde esse poder cognitivo, sua força absoluta, se elevar acima da sensação, atingir o nível do entendimento, reflexão - fazer a crítica de si na duração do em-si -; enfim, se tornar ser filosófico, racional.

narcisismo e paranoia na civilização

adorno louva o sistema burguês trabalhista de hegel por formular, na perfeição bem-acabada do conceito, o mundo unificado por meio das relações de troca, da mercadoria. seria, por parte de hegel, uma espécie de intuição do espírito do tempo: a empreitada do alemão teria "inferido a partir do conceito, esse caráter sistemático da sociedade, muito antes que ele pudesse impor-se no campo acessível à experiência de hegel". 

adorno se refere à sistematização hegeliana da integração das partes com a totalidade como expressão do espírito capitalista, de um modo que a fenomenologia e o projeto filosófico de hegel poderia ser um espelho de cristal para as relações constituídas sob o signo da mercadoria, em que tudo somente pode ser em relação a um outro: "essa capacidade da produção esquecer a si mesma, o princípio de expansão insaciável e destrutivo da sociedade de troca, espelha-se na metafísica hegeliana". não queremos sugerir que conceitos não possuem tal poder de clarividência; de certo, a obra hegeliana permitiu, deu forma, as aspirações teóricas de adorno em relação ao capitalismo do século XX, assim como o mito de édipo serviu a freud para inteligir com tamanha clareza suas próprias ideias. a mitologia, essa espécie de laço espiritual, série de histórias e imagens partilhadas, funda essa possibilidade de entendimento, e mesmo comunicação. poderemos, contudo, pensar na extensão e duração dessa mitologia das partes pelo todo, uma ontologia sinedótica em que o singular somente consegue existir pelo e no olhar do outro. 

trata-se de procurar o chão histórico em que se desenvolveu o narcisismo, é claro, já que este consiste na auto-consciência doentia de si, ou ainda, uma percepção de auto-percepção persecutória, que não permite esquecer de si mesmo em nenhum momento: seu corpo, sua fala, seus movimentos, tudo e mais ainda se torna objeto de consciência para o narcisista, como se, em sua fantasia, recriasse em si e para si o olhar e julgamento do outro: só é capaz de se conceber mediante ele. se a civilização é um desenvolvimento da coesão social pela integração e alienação progressiva do trabalho, então a civilização também caracteriza um caso progressivo de narcisismo, em que o eu, na proximidade crescente com o outro, somente pode conceber a si mesmo desde seu olhar. não por acaso que, na intensificação da modernidade, a sinceridade e autenticidade surgem como questões centrais para a vida reflexiva: como ser para si mesmo? como escapar do fluxo repressivo e modelador, a violência imposta pela proximidade do outro, pela manifestação tão clara do leviatã social? 

a relação de força entre o outro e o sujeito é tema central na tragédia íntima de rousseau, cujo corpo parece fracassar, como se fosse um ser extemporâneo, incapaz de se adequar a sua própria e tão clara intuição do panótico social, cada vez mais objetivado na indústria cultural, na perseguição levado a cabo pelos instrumentos do jornalismo, na criação dessa fantasia aterrorizadora e deliciosa de ser celebridade. rousseau se deleitava, mas, também, sofria: termina sua vida entregue às reflexões intimas, cerrado em seu desejo recorrente de distanciamento e solidão, cuidando de sua mórbida velhice em uma casa de campo, longe da vida citadina e da conspiração do público. é um homem cuja obra e biografia representam, tanto ou mais que a conceituação de hegel, a tensão da vida capitalista enquanto uma ontologia do valor de troca, em que somente conseguimos nos conceber a partir da consciência de sermos consciência de um outro. o sujeito cartesiano, marco mitológico da filosofia moderna, funda-se antes de mais nada na subjetividade de si para si: e descartes precisa se isolar em um chalé taciturno para silenciar o ruído externo e ficar a sós consigo mesmo. 

a sociedade, leviatã já idealizado por hobbes em que esse todo imaginário subjuga todas as partes, é uma entidade persecutória, cujo olhar é quase impossível de se abstrair. por último, retomando ao comentário sobre a antecipação divinatória de hegel, sobre a forma com que seu sistema formaliza a vida histórica dos séculos seguintes, vale fazer uma breve hipótese de carácter histórico. a aristocracia do século XVIII francesa, como demonstra o exemplo de rousseau, já vivia sob essa condição narcísica, de se saber inconsciente ou conscientemente cindido entre um eu e uma imagem do eu ao outro, incapaz de definir o originário, e atormentado por essa impossibilidade. 

sobre isso, o exemplo de rousseau (que em certa obra, na divisão que faz de si mesmo em vários, na própria representação como terceira pessoa, encorpora tão bem) é eloquente, mas ainda podemos pensar em como, desde o século XVI, a experiência de corte na inglaterra, estimulou a thomas morus a escrita de sua utopia. ali, a  tensão entre a vida pública, a necessitada de deleitar e de cultivar um ethos particular, entra em choque com a inconveniência característica da verdade. a adequação da retórica e a extemporaneidade da filosofia se confrontam, mais uma vez, sendo esta valorizada pelo seu poder de se livrar do domínio do outro sobre si. essa, talvez, fosse a paixão que animasse ainda a filosofia de rousseau: o desejo de se libertar do outro e se ver transparente, de si para si, e não de si para o outro para si. 

em hegel, contudo, e essa talvez seja sua radicalidade em relação a seu predecessor francês, esse desejo parece caducar diante da consciência de que o sujeito é, na verdade, sujeito-objeto; de que sua apercepção - em continuidade a kant - é sempre fenomênica, uma imagem projetada dentro da projeção social, que não é outra coisa fora a história do espírito.

o infinito e o universal como liberdade

o positivismo é fascinado pelo fato e pelo dado: sua razão fria e calculista é máscara. por baixo da máscara está um fetichista cujas pupilas se dilatam, extasiadas, diante da forma-fato, da forma-dado. essa é a dimensão mais obscura da retórica da clareza. por trás das formas mais transparentes é onde melhor se ocultam segredos. (é a lição da carta roubada de edgar allan poe). e sob a forma acabada da facticidade, sob o domínio tranquilo da positividade, estão cifrados instintos terríveis, morais ancestrais, metafísicas esquecidas, que retomam, no presente nosso, a realidade reificada pelas forças invisíveis da história.

nesse sentido, o conceito de totalidade investe contra a finitude e determinação perversa própria da historicidade. diante da objetividade, da imediatez e da auto-evidência, a totalidade abre a história para o outro, para o incondicionado, para as figuras do infinito capaz de desfazer a identidade despótica do particular e do positivo no espaço em branco, a ser criado, do negativo. vingança do presente contra o passado pelas armas do futuro: no insignificante aberto pela negação pode-se recuperar, esperamos, alguma autonomia, alguma liberdade. 

essa caracterização iluminista do infinito, que luta contra a determinação da historicidade, do tempo e do espaço, contra tudo que nos condicione por fora da reflexão ativa, não obstante seja hoje avaliada como parte de um movimento universalista, capaz de supra-sumir toda forma de não identidade na identidade total, aos iluministas ou pós-iluministas (penso em hegel, husserl, dilthey) surge, ao contrário, como possibilidade de se libertar do irracional, das forças que nos dirigem sem que nos saibamos dirigidos, da identidade inconsciente, na direção do outro, do novo, da diferença; enfim, o infinito, em tensão com o imediato da história, do aqui-agora, é força capaz de romper a potência estacionária do passado, a opressão daquilo que está pensado e esquecido como pensado, e iniciar a possibilidade de crítica e progresso.

"em hegel a totalidade não pode ser vista como negação simples do particular, como subsunção completa das situações particulares a uma determinação estrutural genérica. ela será a consequência necessária da compreensão do particular ser sempre mais do que si mesmo, de ele nunca estar completamente realizado. na verdade, ela aparecerá como condição para que a força que transcende a identidade estática dos particulares não seja simplesmente perdida, mas possa produzir relações". (glosa de safatle à "três estudos de hegel", p. 26 - 27).

sociedades frias e quentes: sobre as bases materiais da história

1. o que a teoria marxista-comunista deseja? pelo exame do desenvolvimento histórico, empreender uma crítica teórica das ciências, e formul...