sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

UM TÁXI PARA O DESTINO

Não aguentei ficar em casa resolvi sair para beber no centro. Agora estou comendo um joelho e tomando um pouco de cerveja. Pensando que me sinto enclausurado. Viver nas grandes cidades é como viver em uma série de caixas. Na rua, passava um grande caminhão. Tive um tempo muito agradável no trem vindo pra cá. Não viajava de trem há anos. Descobri que agora não existem mais salas de estar neles. Aluguei um quarto para poder instalar minha máquina de escrever e olhar pela janela.

"Vocês acredita em profecias?", perguntei para Nick e ele disse que às vezes. Tirei fotos borradas da paisagens, de tudo que me parecesse um sinal, um indício de alguma coisa. Por mensagem, falava com uma amiga sobre isso, mas ela não deu bola, achava que eu estava drogado, ou que estava inventando tudo isso sabe-se deus o porquê. "Eu também", respondi Nick depois de algum tempo, e passei a falar de meus projetos: "Estou desenvolvendo um método de prever o futuro, ou melhor, de obter indícios, ver as direções que ele pode seguir. Por isso tiro tantas fotos, por isso anoto tudo que me parece um sinal. Tudo está seguindo para algum lugar", eu disse e anotei em seguida na minha máquina. 

A paisagem rural a correr pela janela do trem. Vacas pastorando. Registro tudo com uma série de fotografias. 

"Vacas ruminando a grama", expliquei para Nick. 

Estive pensando em ruminação o dia todo, desde que certa pessoa descreveu meu vício em quetamina como "um hipopótamo ruminando mesmas palavras de sempre". Releio essas palavras que ela me enviou na noite passada, procurando nela os indícios da cena que veio a ocorrer lá fora do trem. Ao percorrer o trecho em que ela me explicava o processo digestivo dos ruminantes ("O alimento é inicialmente mastigado e engolido para o primeiro estômago, de onde retorna à boca para ser mastigado novamente"), obtive uma pequena iluminação que redigi em minha máquina: "cuidado com a infestação de ratos". Do lado de fora, um grande outdoor da empresa norte-americana Able Pest Control. 

Meu primeiro dia trabalhando na Able Pest Control foi, digamos, banal, e isso me convenceu de que trabalhando para eles levaria uma vida também banal, de um sujeito medíocre e qualquer, como eu estava convencido a viver. O chefe era estúpido, mas se achava entendedor de finanças, que tinha talento para o negócio, e até que tinha mesmo, mas para o resto era uma porta. Os funcionários eram tão ou mais estúpidos ainda, e por isso não sentia vontade de falar com ninguém, e na verdade quase não precisava. Depois de um tempo fazendo viagens curtas, me deixaram responsável de dirigir o caminhão para estados diferentes. Trabalhava sozinho, levando o inseticida de um estado ao outro, eu tirava um salário de merda, mas ouvia a música bem alta, jazz japonês principalmente (Átropos tinha me deu essa fita em um aniversário antigo) e também podia viver de noite. Estava com uma insônia severa. A viagem era muito longa, e eu tinha que parar para descansar nos postos, mas a verdade é que não conseguia dormir mais do que duas horas. Passava as madrugadas lendo, ou então cheirando quetamina, ou quando não tinha dinheiro para quetamina (o dinheiro que meu pai me deixou de herança diminui a cada dia, preciso me controlar para ter o suficiente para viver pelo menos mais um ano) usava metanfetamina barata, que deixava meus dentes trincados e que eu comprava de Deusa.

Conheci Deusa em um bar. Ela cheirou uma carreira de cocaína na frente de todo mundo, como quem toma um trago ou acende um cigarro qualquer. Perguntei se podia dar um teco e ela me cobrou dez reais. Paguei, e depois ficamos conversando. Estava meio bêbado, o pó me deixou ligado e elétrico. Ela também estava naquele frenesi que a cocaína causa logo depois de cheirada. Em poucos instantes, passamos de reles desconhecidos a amigos próximos, daqueles que compartilham confidências em público. 

Na verdade, nosso diálogo tratou-se também de um comércio: eu entregava meus segredos, minha vida interior, o dinheiro; ela me entregava o pó e suas análises, pois lhe divertia muito tomar minha vida e submetê-la a uma espécie de estudo, encontrar defeitos e explicar suas falhas. E até mesmo, vez ou outra, Deusa sugeria onde eu podia melhorar.  

Falei do meu término mais recente, dos problemas sexuais que eu e essa ex-namorada estávamos vivendo, e subitamente me calei. "Acho que já estou falando muito de mim", disse, em tom de quem pede desculpas. 

Quer dizer, não que ela estivesse quieta ou se mantivesse em silêncio. Como disse, ela estava somente recolhendo material suficiente para que seu pensamento veloz e aguçado de viciada em pó pudesse analisar friamente quanto ao seu conteúdo. "O pó é frio como a neve", falou vidrada depois de cheirar mais uma carreira de pó. Me passou e enquanto eu cheirava desatou a falar. Não falava contudo sobre ela própria, sobre sua vida particular. Nunca soube nada de sua família, de sua biografia. Tudo que sabia é que era doutora em química, que trabalhava em uma empresa de produtos de limpeza e que de vez em quando usava o laboratório para fabricar pó e fazer algum dinheiro. Colocou a mão no meu ombro, e como quem desse um conselho gentil, passou a explicar de biologia. 

"Muito triste", ela disse com uma carinha de quem sofre, fez beicinho, e continuou, "muito triste que o hábito sexual geralmente acarrete no enfraquecimento do desejo a ponto de introduzir um elemento de desordem em todo sistema social, desarticular relações, famílias...". 

Também nunca soube exatamente como Deusa aprendeu tanto sobre biologia (foi ela também quem me explicou sobre os ruminantes). Ela pegou o celular de volta e guardou na sua bolsinha de pano, e concluiu como quem diz alguma coisa banal: "Esta tendência inata do homem a se cansar de seu parceiro sexual é comum aos macacos superiores". 

Parado no sinal vermelho, o pé ansioso para apertar o acelerador, os dentes trincados, ruminando memórias distantes. Na rua um homem de cabelo e barba grande, todo sujo e descalço, um headphone enorme na cabeça e um celular moderno na mão.Um mendigo, concluí, deve ter assaltado algum otário no carnaval. Se mexia em um ritmo que me pareceu adequado ao jazz japonês (nunca soube do nome de nenhuma das canções daquela velha fita). Pausei a música. Era um outro indício, eu sabia que era. O meu futuro começou a se desenhar na minha mente: No dia seguinte, pediria demissão da Able Pest Control. Voltaria a viver em Nova Iguaço, moraria com mamãe enquanto faço o curso de programação, largaria as drogas por um tempo, arranjaria um emprego mais saudável. Era isso que eu precisava. Suspirei aliviado. Senti um peso enorme ceder de minhas costas. Tudo era tão simples. Estava tão claro. Era só começar. E quando me dei conta, meu caminhão estava atropelando um homem vestido de fraque e cartola. A bengala de plástico que ele carregava voou para um lado e seu corpo para o outro, o crânio explodiu contra a calçada e o chão ficou coberto de cérebro e sangue.

Uma velha assistia tudo isso da calçada. Paralisada de horror, segurando a sacola do pão. Era a minha única testemunha. Nosso olhar se cruzou, e dei logo a partida para que ela não pudesse ver por mais tempo o meu rosto. Virei a primeira esquina e fugi na direção do posto de gasolina do Nick. 

Já havia cobrido uma outra barra minha no último carnaval. Ficou irritado ao ver o sangue e os miolos presos no para-brisa, disse que eu só aparecia com merda, mas me ajudou a limpar tudo. "Com sorte a polícia não chega até você", disse, irritado, enquanto jogava água com a mangueira. 

Cheguei em casa e me masturbei pensando em Deusa. Não quis gozar. Subi as calças e mandei mensagem perguntando se ela estava acordada. Três minutos depois ela responde que sim. Combinamos de nos encontrar. Desço, tomo um táxi, e vou em direção ao meu destino.

manhã de carnaval

Estava roubando viciados no metrô com um amigo, e sabe, a gente não ia nada mal. Fazíamos em média quinze centavos por noite, começando no fim da tarde e terminando logo ao amanhecer. Logo antes do sol nascer, essa é a melhor hora para assaltar. Não que seja a hora mais rentável. Essas são lá pelas duas, três da manhã, em que os inexperientes estão passando mal de tão bêbados, e que a maior parte das pessoas volta para casa. Roubar ao alvorecer é mais belo, digamos assim, quando você já sente a necessidade de chegar em casa e descansar depois de um longo dia de trabalho.

Estava dando um tempo na heroína porque já estava ficando sem veias. Dormia três ou quatro horas por noite e tomava morfina. Ainda estava escuro. Fui até o balcão para tomar uma xícara de café. "Bar do Joel", li no letreiro. Estava morrendo de cansaço, só queria dormir. Bebo o café requentado da máquina, um guardanapo sob a xícara. Dizem que essa é a marca de alguém que passa muito tempo sentado em cafeterias e lanchonetes. 

"O que podemos fazer?", Nick, vestido marinheiro, me perguntou em um sussurro. 

Me indicou com os olhos aquela garota fantasiada com chifres de demônio, resmungando: "Eles sabem que vamos esperar... Sim, eles sabem que vamos esperar...". Era Deusa, semi-nua em vestes de carnaval, repetindo sobre algum assunto que eu já nem sabia mais qual era. 

Na verdade, estava distraída. Havia um garoto logo mais adiante no balcão, uma criança de rosto magro, olhos completamente dilatados. Sem camisa, aquele tumor nojento exposto em seu abdômen nu. 

Seu rosto era familiar. eus olhos piscaram na minha direção.. Certeza que já tinha visto antes. Talvez do salão de bilhar em que comprava chá durante uma época. Ou nas redondezas de alguma estação de metrô, de alguma cafeteria noturna, ou até das pensões sujas em que eu dormia. Naquela época, contudo, vivia entre a casa de alguns amigos, toda a minha roupa precisando caber em uma mala de viagem. Naquela noite, dormiria na casa de Deusa. Não poderia abrigar o menininho. Eu acenei e fui para uma mesa. Ele sentou-se em frente a mim, as mãozinhas segurando uma caixa de bala. 

Vontade de dormir. Troca a música da cafeteria: Version, do Fugazi. Lá fora já era completamente dia, a luz atravessava pela porta do bar quente e minúsculo, deixando seus móveis metálicos e clientes às claras. Podia ver o rosto de cada um, estudar com calma seu tipo e fisionomia, mas como quebrei meus óculos escuros, tive medo de ser pega. Melhor não olhar muito para ninguém. 

Olho a televisão ligada. Jogo de futebol, o funcionário estava assistindo. Eu estava sem relógio. O tempo voou desde as quatro, a última vez que perguntei as horas.

"São que horas, Deusa", perguntei.

"O cara está três horas atrasado", respondeu. 

"Você me compra um pão?", pediu a criança.

"Só tenho vinte e cinto centavos", disse timidamente para o menininho aleijado, e lhe entreguei a quantia referida.

"Nada menos que um níquel!", ele resmungou, e fez que ia embora, o respondão. Era bonitão. 

"Diga, garoto", eu lhe disse, "conheço uma velha tia, uma médica que pode cuidar de você...". 

Ele não entendeu. "Pegue o telefone", eu disse, oferecendo meu aparelho. 

Ele me entregou a caixinha de balas e pegou todo hesitante o celular, como se não soubesse bem lidar com um. "Vamos", tentei encorajá-lo. "É só apertar o botão verde para fazer a ligação, e vamos encontrá-la agora mesmo'". 

Por volta desta época, em Lexington, conheci um alfaiate italiano que também era traficante. Ele me fez uma boa oferta de cocaína. A qualidade da sua droga era boa no início,  mas com o tempo foi ficando pior. Estava sempre com um mesmo calção, a marca Tony bem visível sobre o joelho esquerdo. Era conhecido por todos como "Short Tony". 

Short Tony gostava, digamos, de cuidar de meninos. Certa vez, um garoto de quatorze anos amanheceu doente na East St., Louis e ele cuidou dele. A história do que se passou no apartamento de Short Tony com o aleijado é a seguinte: A criança se jogou sobre a pia, pressionando o tumor cortado ao meio contra a porcelana fria. Short Tony se jogou sobre o corpo da criança, rindo. Os excrementos começaram a escorrer para fora dos shorts, e a memória da cena termina dissolvida pelo cheiro de muco retal e sabão carbólico, pois havíamos acabado de dar um banho no moleque. Olhei pela janelinha do banheiro e vi o cheiro do amanhecer de verão vindo de um terreno vago.

"Vou esperar aqui... Não quero que Tony repare em mim...", eu disse mais cedo, ao deixar uma criança doente no endereço de Short Tony. Eles dois fizeram aquilo cinco vezes debaixo do chuveiro. Short Tony me leu os versos de Lautréamont traduzidos por ele mesmo: "olhas ensaboadas de ovo, entranhas tremores sísmicos divididos por rajadas de porra". E riu. Eu disse que estava com sono e fui embora.

Cheguei na rua, tudo nítido e claro como depois de dias de chuva. Numa cabine lendo um jornal, Nick, seu rosto amarelado como marfim sob a luz do sol. Eu entreguei dois níqueis a ele por baixo da mesa. Fazendo minha parte para manter seu vício. Ele me ofereceu o pó cinza, e eu recusei. Disse que precisava ir. 

Colado do adesivo de um carro, li: INVADIR. DESTRUIR. OCUPAR. Lembrei de uns versos : "Os rostos jovens em chamas alcoólicas azuis". De um escritor que não lembro o nome. Pego o metrô. Enfim em casa. Deusa vai imediatamente dormir. Nick também estava dormindo com a gente. Contamos o lucro da noite, três celulares, além de quatro notas de cinquenta reais que peguei da carteira de um gringo. Ele vai dormir no sofá da sala e eu abro o computador. Mensagem enorme de mamãe, tem mais de dois minutos. Coloco para tocar pela metade, a voz acelerada em 2x:

"...E álcool, vocês, porra, não podem esperar Pen-Indef", disse, "bando de junkies famintos você trouxe aqui em casa queimou uma colher. É tudo o que preciso pra entregar vocês. Uma colher queimada e a polícia vai estar na sua cola de".

Paro a mensagem, já era o suficiente. Respondo com um áudio apressado: "O discurso da doente e viciada... Olha, eu estou morta de cansaço, mãe. Não quero brigar, vou dormir, bom dia". E fui dormir.



OS NOVOS ESCRITORES

Se fosse dizer que leio pouco seria simplesmente uma mentira, pois se perguntarmos para qualquer sujeito a quantidade de palavras que ele consume em um dia, em uma semana, em um mês, é estatisticamente muito provável que eu consuma muito mais, já que sou um acadêmico e também porque escrevo, e quem escreve costuma ler. Contudo, dizer que leio pouco também de certa forma é verdade, se mantermos em vista a dieta com que os antigos escritores e acadêmicos foram formados: se levarmos em conta os diários de Ricardo Piglia, um escritor que até pouco tempo estava vivo, parece que ele tinha a capacidade de devorar uma novela ou quase uma novela por dia, dependendo da dificuldade de sua leitura, eu imagino - para ler muito é também preciso ler livros fáceis, livros corridos, porcarias ou semi-porcarias, produtos com a linguagem já-digerida, junk literature, ler não só a trabalho, mas a descanso - e ler um livro por dia, pelo que me parece, é uma cifra capaz de impressionar a qualquer aspirante a escritor ou acadêmico.

E estamos falando de Ricardo Piglia, um escritor já formado em meio a uma sociedade industrial em que a imagem do cinema e da fotografia já devastava a tipografia, a letra impressa; se lermos os livros de Piglia não por acaso flagramos nele recorrentemente uma ânsia em fazer a prosa ganhar velocidade, como se as letras pudessem acompanhar a imagem-movimento do cinema (talvez possam) (em Alvo Noturno, se não me engano o último romance de Piglia, como o vanguardista que experimentou demais as linguagens literárias do século XX, que cansou-se e que foi tomado por certa nostalgia, o gênero policial, sua especializada, é amalgamada - a execução é perfeita - com a linguagem mais ou menos típica da novela do dezenove, narração lenta, descrição dos tipos de uma cidadezinha de província, etc).

Se confiarmos nos diários de Piglia, ele começou a ler quando adolescente, para impressionar uma menina da escola. Voltemos no tempo mais ainda e pensemos em Borges, educado desde menininho a ler novelas, a escrever teatro, a traduzir poesia. Temos o ser humano em forma ultra-especializada de leitor-escritor, uma criancinha que desde sua mais tenra lembrança foi enfiada entre as páginas de um livro. Não impressionaria ninguém que esse ciborgue perfeito, nos momentos que funcionava adequadamente, é claro, lesse até mais que um livro por dia. Só se espanta com a nostalgia que Borges sentia pela aventura, pela guerra, pelos selvagens, pelos gaúchos, aqueles que não conhecem a sua obra e veem na figura de Borges o avatar da erudição feliz e bem-realizada. Mas não: mesmo esse perfeito ciborgue literário ressentiu-se, ou melhor, sentiu-se perdido entre os tantos livros, sentiu ter perdido tempo demais lendo, quando poderia estar fazendo outra coisa? (que coisa?, pergunta-se, e vagamente responde-se: vivendo - trauma tão século XIX esse, opor vida e literatura...)

Na infância tive contato e retirei muita felicidade de leituras esporádicas - gibis, livros de fantasia e terror -, mas só comecei a ler mesmo quando adulto, quando ingressei na graduação. Fui civilizado como leitor pela universidade, e isso deve explicar o como a teoria se envolve com minha prática literária: aprendi a ler literatura desde o lugar do profissional, do crítico literário, do filósofo, do historiador, e o gozo que retiro da leitura é também um gozo de trabalho - muitas vezes, por isso mesmo, um gozo difícil de extrair, pois um gozo dispendioso, exaustivo, e que me faz idealizar uma leitura inocente, despreocupada, como as que eu fazia na infância (Borges também idealizou a leitura infantil como uma meta a ser alcançada depois de velho, ou melhor, depois de ter se formalizado como um profissional da literatura, um crítico, um estudioso).

Se leio pouco, é porque meu corpo é incapaz de sustentar um ritmo e volume de leitura similar aos desses antepassados em que me espelho e me mesuro. Faça o que você puder, mas você muito dificilmente, talvez às custas de dura disciplina seja possível, mas provavelmente alguém no século XXI nunca lerá tanto quanto leu-se no XIX e XX. Não que eu queira simplesmente ler por ler: quero ler pois quero conhecer, quero aprender, quero me tornar mais inteligente, escrever melhor, todos esses sonhos de aperfeiçoamento corporativo que nós, funcionários do espírito, condensamos em nossas fantasias de se alcançar a genialidade (fantasia fútil, mas incontornável: melhor mergulhar no princípio de realidade e se tornar um operário da escrita, é claro, mas ai, como deve ser gostoso atingir esse zen da genialidade...)

É preciso, portanto, inventar novos métodos de escrita, e até métodos de pensamento, capazes de funcionar em máquinas anacrônicas como as nossas: queremos ler, ler até o corpo desmontar, pois é essa a dieta espiritual que nos foi ensinada. Ler cada vez mais e assim até o infinito: e mesmo assim nunca leremos o suficiente, pelo menos não eu, um garotinho de terceiro mundo criado em uma dieta de desenho animado e vídeos de youtube, um sujeito formado em um mundo que bane a cada dia a palavra escrita, ou que lhe redimensiona para outras configurações cada vez mais distante do papel impresso, do livro, do jornal... As formas materiais foram transformadas: inútil querermos manter diante delas o mesmo espírito do século passado...

E ainda assim, a arte quer continuar a ser feita. Somos herdeiros de uma maldição: fazer arte que o passado nos entregou, mas fazê-la contrafeito de corpo, inadaptados, degenerados. Todos nós, aleijados tentando esculpir a forma angelical dos santos.

A primeira conclusão é óbvia: a arte aleijada será feita, basta movermos nossos membros e colocarmos as palavras no papel. A imperfeição romântica será o espaço onde ocorrerá a invenção, e quanto a isso não temos escolha, pelo menos enquanto não alcançarmos a sapiência de quem sabe realizar as formas prontas, entregues pelos mestres dos passados, e saibamos a arte da novela, do fluxo de consciência, etc.

A segunda conclusão, no entanto, talvez seja mais importante: que essas novas descobertas precisaram ser cifradas em palavras, ou pelo menos transmitidas de alguma forma. Que precisaremos formar novas escolas para formar novos escritores de um novo tempo. E se a conclusão é óbvia, simples, sua execução, contudo, ainda está praticamente a ser feita por inteiro. Algumas exceções: Burroughs, Gysin, Aira.

sábado, 18 de fevereiro de 2023

ENTREVISTA COM WILLIAM BURROUGHS

BURROUGHS: Eu não sei para onde a ficção se direciona normalmente, mas deliberadamente me dirijo para a área a que chamamos de sonhos. O que é exatamente um sonho? Uma certa justaposição de palavras e imagens. Recentemente, fiz muitos experimentos com álbuns de recortes. Leio algo no jornal que me lembra ou tem relação com algo que escrevi. Recorto a imagem ou o artigo e colo-o em um álbum ao lado de palavras do meu livro. Ou estou caminhando pela rua e, de repente, vejo uma cena do meu livro, tiro uma fotografia e coloco-a no álbum. Descobri que, ao preparar uma página, quase sempre sonho naquela noite algo relacionado a essa justaposição de palavras e imagens. Em outras palavras, tenho me interessado precisamente em como as palavras e imagens circulam em linhas de associação muito, muito complexas. Faço muitos exercícios no que chamo de viagem no tempo, ao tomar coordenadas, como o que fotografei no trem, o que estava pensando na época, o que estava lendo e o que escrevi; tudo isso para ver o quão completamente posso projetar-me de volta para aquele ponto no tempo.

ENTREVISTADOR: Em Nova Express você indica que o silêncio é um estado desejável.

BURROUGHS: O estado mais desejável. Em certo sentido, o uso especial de palavras e imagens pode conduzir ao silêncio. Os álbuns de recortes e viagens no tempo são exercícios para expandir a consciência, ensinar-me a pensar em blocos de associação em vez de palavras. Recentemente, tenho dedicado um pouco de tempo ao estudo de sistemas hieroglíficos, tanto o egípcio quanto o maia. Um bloco inteiro de associações - boom! - assim mesmo! As palavras - pelo menos da forma como as usamos - podem atrapalhar o que eu chamo de experiência não-corporal. É hora de pensarmos em deixar o corpo para trás.

ENTREVISTADOR: Marshall McLuhan disse que você acreditava que a heroína era necessária para transformar o corpo humano em um ambiente que inclua o universo. Mas pelo que você me disse, você não tem interesse em transformar o corpo em um ambiente.

BURROUGHS: NÃO, a droga estreita a consciência. O único benefício para mim como escritor (além de me colocar em contato com o mundo carnavalesco) veio depois que eu parei. O que eu quero fazer é aprender a ver mais do que está lá fora, olhar para fora, alcançar o máximo possível de consciência completa dos arredores. Beckett quer ir para dentro. Primeiro ele estava em uma garrafa, e agora está na lama. Eu estou apontando para outra direção: para fora.

ENTREVISTADOR: Você tem sido capaz de pensar por um tempo em imagens, com a voz interior silenciosa?

BURROUGHS: Estou me tornando mais proficiente nisso, em parte através do meu trabalho com os álbuns de recortes, traduzindo as conexões entre palavras e imagens. Experimente isso: memorize cuidadosamente o significado de uma passagem, então leia; você descobrirá que pode realmente lê-la sem as palavras fazerem qualquer som na mente. É uma experiência extraordinária, e que se manifestará em sonhos. Quando você começar a pensar em imagens, sem palavras, está no caminho certo.

ENTREVISTADOR: Por que o estado sem palavras é tão desejável?
BURROUGHS: Acho que é a tendência evolutiva. Acho que as palavras são um meio de se fazer as coisas, mas um meio um pouco arcaico e desajeitado, que será deixado de lado eventualmente, provavelmente mais cedo do que pensamos. Isso é algo que acontecerá na era espacial. A maioria dos escritores sérios se recusa a se disponibilizar às coisas que a tecnologia está fazendo. Nunca fui capaz de entender esse tipo de medo. Muitos deles têm medo de gravadores e a ideia de usar qualquer meio mecânico para fins literários parece-lhes algum tipo de sacrilégio. Essa é uma objeção aos cut-ups. Tem havido muito disso, uma espécie de reverência supersticiosa pela palavra. Meu Deus, eles dizem, você não pode cortar essas palavras. Por que não posso? Acho muito mais fácil despertar o interesse nos cut-ups das pessoas que não são escritoras - médicos, advogados ou engenheiros, qualquer pessoa aberta de mente e razoavelmente inteligente - do que nas que são.

ENTREVISTADOR: Como você se interessou pela técnica de cut-up?
BURROUGHS: Um amigo, Brion Gysin, um poeta e pintor americano que vive na Europa há trinta anos, foi, pelo que eu saiba, o primeiro a criar cut-ups. Seu poema "Minutes to Go" foi transmitido pela BBC e posteriormente publicado em um panfleto. Eu estava em Paris no verão de 1960; isso foi após a publicação lá de Naked Lunch. Fiquei interessado nas possibilidades dessa técnica e comecei a experimentar por mim mesmo. É claro que, quando você pensa nisso, "The Waste Land" foi a primeira grande colagem de cut-up, e Tristan Tzara havia feito algo parecido. Dos Passos usou a mesma ideia nas sequências de "The Camera Eye" em U.S.A. Eu senti que estava trabalhando na direção do mesmo objetivo; assim, foi uma grande revelação para mim quando vi isso sendo feito.

ENTREVISTADOR: O que os cut-ups oferecem ao leitor que a narrativa convencional não oferece?

BURROUGHS: Qualquer passagem narrativa ou passagem com imagens poéticas está sujeita a qualquer número de variações, todas as quais podem ser interessantes e válidas por si só. Uma página de Rimbaud cortada e rearranjada lhe dará imagens completamente novas. Imagens de Rimbaud - imagens reais de Rimbaud - mas novas.
ENTREVISTADOR: Você lamenta o acúmulo de imagens e, ao mesmo tempo, parece estar procurando novas.
BURROUGHS: Sim, faz parte do paradoxo de qualquer um que trabalhe com palavras e imagens, e afinal, é isso que um escritor ainda está fazendo. Um pintor também. Os cortes estabelecem novas conexões entre imagens, e a amplitude da visão consequentemente se expande.
ENTREVISTADOR: Em vez de se dar ao trabalho de trabalhar com tesouras e todos aqueles pedaços de papel, você não poderia obter o mesmo efeito simplesmente associando livremente na máquina de escrever?
BURROUGHS: A mente não pode operar dessa forma. Agora, por exemplo, se eu quisesse fazer um cut-up nisso aqui [pegando uma cópia da Nation], há muitas maneiras de fazê-lo. Eu poderia ler atravessando as colunas [cross-column]; eu poderia dizer: "Os nervos dos homens de hoje nos cercam. Cada extensão tecnológica que se foi para fora é elétrica e envolve um ato de ambiente coletivo. O próprio sistema de ambiente nervoso humano pode ser reprogramado com todos os seus valores privados e sociais pois ele é conteúdo. Ele programa logicamente tão prontamente quanto qualquer rede de rádio é devorada pelo novo ambiente. A ordem sensorial". Você descobre que muitas vezes faz tanto sentido quanto o original. Você aprende a deixar de fora palavras e a fazer conexões. [Gesticulando] Suponha que eu deveria cortar isso no meio aqui, e colocar isso aqui em cima. Sua mente simplesmente não poderia gerenciá-lo. É como tentar manter muitas jogadas de xadrez na mente, você simplesmente não poderia fazê-lo. Os mecanismos mentais de repressão e seleção também estão agindo contra você.

ENTREVISTADOR: Você acredita que uma audiência eventualmente pode ser treinada para responder aos cut-ups?

BURROUGHS: Claro, porque os cut-ups tornam explícito um processo psico-sensorial que de qualquer maneira está sempre acontecendo. Alguém está lendo um jornal e seus olhos seguem a coluna de maneira aristotélica, uma ideia e uma frase de cada vez. Mas subliminarmente ele está lendo as colunas ao lado e está ciente da pessoa sentada ao lado dele. Isso é um cut-up. Eu estava sentado em uma lanchonete em Nova York comendo meus donuts e café. Pensando que se sente um pouco enclausurado em Nova York, é como viver em uma série de caixas. Olhei para fora da janela e havia um grande caminhão de Yale. Isso é cut-up - uma justaposição do que está acontecendo lá fora e do que você está pensando. Faço isso como prática enquanto ando na rua. Vou dizer, quando cheguei aqui vi aquele sinal, eu estava pensando justamente nisso, e quando voltar para casa, digitarei tudo isso. Parte desse material eu uso e parte não. Eu tenho literalmente milhares de páginas de notas aqui, cruas, e também mantenho um diário. Em certo sentido, é viajar no tempo.

A maioria das pessoas não vê o que está acontecendo ao seu redor. Essa é a minha mensagem principal para escritores: Pelo amor de Deus, mantenha os olhos abertos. Observe o que está acontecendo ao seu redor. Quero dizer, eu ando na rua com amigos. Eu pergunto: "Você viu ele, aquela pessoa que acabou de passar?" Não, eles não lhe notaram. Eu tive um tempo muito agradável no trem vindo pra cá. Eu não viajava de trem há anos. Descobri que não havia salas de estar. Eu peguei um quarto para poder instalar minha máquina de escrever e olhar pela janela. Eu também estava tirando fotos. Também anotei todos os indícios, e o que mais estivesse pensando na época, sabe. E tive algumas justaposições extraordinárias. Por exemplo, um amigo meu tem um loft em Nova York. Ele disse: "Toda vez que saímos de casa e voltamos, se deixarmos a porta do banheiro aberta, há um rato na casa." Eu olho para fora da janela, há a Able Pest Control [uma empresa de controle de pragas].
ENTREVISTADOR: A única falha no argumento dos cut-ups parece estar na base linguística em que operamos, a simples frase declarativa. Vai levar muito para mudar isso. BURROUGHS: Sim, infelizmente é um dos grandes erros do pensamento ocidental, toda a proposição de ser ou não ser. Você se lembra de Korzybski e sua ideia de lógica não-aristotélica. O pensamento de ser ou não ser simplesmente não é um pensamento preciso. As coisas não ocorrem dessa forma e sinto que a construção aristotélica é uma das grandes amarras da civilização ocidental. Os cut-ups são um movimento contra isso. Eu imagino que seria muito mais fácil encontrar aceitação dos cut-ups, possivelmente, pelos chineses, porque já existem muitas maneiras de ler qualquer ideograma dado. Já é um cut-up.

ENTREVISTADOR: O que acontecerá com o enredo linear na ficção?
BURROUGHS: O enredo sempre teve a função definida de direção de palco, de levar os personagens daqui para lá, e isso continuará, mas as novas técnicas, como o cut-up, envolverão muito mais da capacidade total do observador. Isso enriquece toda a experiência estética, estende-a.
ENTREVISTADOR: Nova Express é um cut-up de muitos escritores?
BURROUGHS: Joyce está lá. Shakespeare, Rimbaud, alguns escritores que as pessoas não ouviram falar, alguém chamado Jack Stern. Tem Kerouac. Eu não sei, quando você começa a fazer essas sobreposições e cut-ups, você perde o controle. Genet, é claro, é alguém que admiro muito. Mas o que ele está fazendo é prosa francesa clássica. Ele não é um inovador verbal. Também Kafka, Eliot e um dos meus favoritos é Joseph Conrad. Minha história "They Just Fade Away" é uma sobreposição (em vez de cortar, você dobra) de Lord Jim. Na verdade, é quase uma recontagem da história de Lord Jim. Meu Stein é o mesmo Stein que em Lord Jim. Richard Hughes é outro favorito meu. E Graham Greene. Como exercício, quando faço uma viagem, como de Tânger para Gibraltar, registro isso em três colunas em um caderno que sempre levo comigo. Uma coluna conterá simplesmente um relato da viagem, o que aconteceu: cheguei ao terminal aéreo, o que foi dito pelos funcionários, o que ouvi no avião, em que hotel fiz o check-in. A próxima coluna apresenta minhas memórias: ou seja, o que eu estava pensando na época, as memórias que foram ativadas pelos meus encontros. E a terceira coluna, que chamo de coluna de leitura, dá citações de qualquer livro que eu leve comigo. Tenho praticamente um romance inteiro sozinho em minhas viagens a Gibraltar. Além de Graham Greene, usei outros livros. Eu usei The Wonderful Country, de Tom Lea, em uma viagem. Vamos ver... e o The Cocktail Party de Eliot. In Hazard, de Richard Hughes.

Por exemplo, estou lendo "The Wonderful Country" e o herói está cruzando a fronteira para o México. Bem, exatamente nesse ponto eu chego à fronteira espanhola, então anoto isso na margem. Ou estou em um barco ou trem e estou lendo "The Quiet American"; eu olho ao redor e vejo se há um americano tranquilo a bordo. Com certeza, há um jovem americano tranquilo com um corte de cabelo da tripulação, bebendo uma garrafa de cerveja. É extraordinário, se você realmente mantém os olhos abertos. Eu estava lendo Raymond Chandler, e um de seus personagens era um pistoleiro albino. Meu Deus, se não havia um albino na sala. Ele não era um pistoleiro.

Quem mais? Espere um minuto, vou verificar meus livros de coordenadas para ver se há alguém que esqueci - Conrad, Richard Hughes, ficção científica, bastante ficção científica. Eric Frank Russell escreveu alguns livros muito interessantes. Aqui está um, The Star Virus; duvido que você tenha ouvido falar. Ele desenvolve aqui um conceito do que ele chama de Deadliners, que têm esse estranho aspecto maltrapilho. Li isso quando estava em Gibraltar, e comecei a encontrar Deadliners por toda parte. A história de um lago de peixes nela e um jardim de flores bastante grande. Meu pai sempre teve muito interesse em jardinagem.

ENTREVISTADOR: Diante de tudo isso, o que acontecerá com a ficção nos próximos vinte e cinco anos?

BURROUGHS: Em primeiro lugar, acho que cada vez mais haverá fusão entre arte e ciência. Os cientistas já estão estudando o processo criativo, e acho que toda a linha entre arte e ciência irá desmoronar, e que cientistas, espero, se tornarão mais criativos, e escritores mais científicos. E não vejo razão pela qual o mundo artístico não possa se fundir completamente com a Madison Avenue. A arte pop é um movimento nessa direção. Por que não podemos ter anúncios com palavras e imagens bonitas? Já notei que algumas das fotografias coloridas muito bonitas aparecem em anúncios de uísque. A ciência também descobrirá para nós como os blocos de associação se formam.

ENTREVISTADOR: Você acha que isso destruirá a magia?

BURROUGHS: De jeito nenhum. Eu diria que isso o tornaria ainda mais fascinante.

ENTREVISTADOR: Você já fez algo com computadores?

BURROUGHS: Eu não fiz nada, mas já vi alguns poemas de computador. Eu posso pegar um desses poemas e tentar encontrar correlações com ele - isto é, imagens para acompanhá-lo; é bem possível.

ENTREVISTADOR: O fato de vir de uma máquina diminui o valor para você?

BURROUGHS: De jeito nenhum. Eu diria que isso lhe aprimoraria. ENTREVISTADOR: Você já fez algo com computadores? BURROUGHS: Eu não fiz nada, mas já vi alguns poemas de computador. Eu posso pegar um desses poemas e tentar encontrar correlações com ele - isto é, imagens para acompanhá-lo; é bem possível. ENTREVISTADOR: O fato de vir de uma máquina diminui o valor para você?

BURROUGHS: Acho que qualquer produto artístico deve se sustentar pelo que ele é.

ENTREVISTADOR: Portanto, você não fica chateado pelo fato de um chimpanzé poder fazer uma pintura abstrata?

BURROUGHS: Se ele fizer uma boa pintura, não. As pessoas dizem para mim, "oh, isso tudo é muito bom, mas você conseguiu por meio do cut-up" Eu respondo que não importa como eu consegui isso. O que é qualquer escrito se não um cut-up? Alguém precisa programar a máquina; alguém precisa operar com os cut-ups. Lembro quando primeiro fiz as seleções; De uma centena de sentenças possíveis que eu devo ter usado, escolho uma única.


(Extraído de uma entrevista realizada em 1966 por Conrad Knickerbocker para o Paris Review).





quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

dia 2/dia 3 de sobriedade.

os dias estão longos e duram mais do que 24h. suas fronteiras começam a perder sentido quando você passa a madrugada em claro, tem uma crise de choro às 6 da manhã pensando que ela te abandonou, e terei que interromper a narração cronológica para dizer que entre as 6 e as 7 me lembrei daquele filme orfeu negro e escutei a felicidade olhando a manhã. isso fez que meu corpo maquinasse o desejo de morte de alguma forma que ainda não compreendi. me levantei, baixei uma playlist aleatória (meu celular está sem internet desde que atirei ele ao chão durante minha crise psicótica ) e corri mais de 4km em 20m na esteira da academia. correr até me extenuar, apagar toda aquela energia suicida que me manteve desperto ao longo da madrugada. mesmo assim, quando chego em casa, ainda demoro duas horas para dormir.


acordo e como o resto do macarrão feito no dia primeiro. macarrão com espinafre e creme de leite. o gosto me lembra ela. às 16 havia marcado com trindade dele vir aqui em casa para tocarmos e conversarmos. ele se desculpa e diz que chegará só pelas oito. fico tocando guitarra sozinho por algum tempo, brincando em fazer dela instrumento percussivo. em algum momento cansado pego o celular e vejo que minha bolsa de doutorado irá aumentar em quase mil reais e sinto uma felicidade que mistira alívio com certo descaso: sei que mil reais a mais por mês é excelente mas que minha neurose não se condensa numa cifra, num problema de quantidade, mas de qualidade. 


trindade chega e lhe proponho uma traição: sair para beber duas unidades de cerveja. cerveja é droga?, despisto a mim mesmo e digo que não. as duas unidades de cerveja sofreram do mesmo problema dos pães de jesus e se multiplicaram: na conta ficou anotado que tomamos seis. 


de início trindade me tratou como psicanalista e pacientemente ouvi suas mazelas. ânsia sadomasoquista de destilá-la em palavras (mais uma vez, imagino). tudo bem, escuto com paciência, sou tão neurótico quanto ele. depois passamos da pulsões sadomasoquistas para as discussões fantasiosas acerca de música e arte, e aqui o tom se torna de diálogo, mais animado e alegre, como se reencontrassemos alguma vida dentro de corpos necrobiologicos. reforçamos o desejo de voltarmos a fazer música juntos, como já fizemos no passado. mantenho grande parte das minhas suspeitas sobre essa possibilidade em silêncio, revelando meu ceticismo na exigência de encontrarmos um procedimento ou metodologia que faça o trabalho funcionar.


em casa, passo a madrugada meio bêbado conversando com abortinho. marcamos de nos conhecer no dia seguinte. o dia quatro. agora, enquanto escrevo, o metrô corre na direção da cinelândia, para o mam, onde irei encontrar ela, ele.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

SETE DIAS DE SOBRIEDADE - DIA PRIMEIRO

Hoje faz mais de duas semanas desde que voltei da viagem à Paraty; é também o primeiro dia que passei sóbrio. 

Poderia atribuir o desregramento das últimas semanas aos danos nevrológicos ocasionados durante a confortável estadia na casa dos amáveis pais de minha ex-namorada. Nunca compreendi uma família feliz; para mim toda mesa de jantar é uma cena flaubertiana em que algum personagem secretamente quer matar-se com a faca de cortar pão. E na luxuosa casa alugada pelos meus ex-sogros, além de ser necessário jantar todos os dias em família, sorrir e conversar, a conversa muitas vezes era atravessada pelo inglês, já que meu ex-sogro é originário da Irlanda.

Claro, todos eram muito amáveis, e delicadamente falavam quase sempre em português quando em minha presença. Meu superego era quem me condenava por não saber articular corretamente os fonemas dessa língua dos infernos, e cada palavra que eu pensava em dizer eu me obrigava a pensar de novo e calá-la, pois me parecia sempre uma grande descortesia não exprimir meu pensamento dentro dos limites do inglês.

Não que eu tivesse muita coisa a dizer. Na verdade, na grande parte do tempo preferia ficar calado. E isso incomodava minha namorada. 

Quer dizer, ex-namorada. Depois de mais uma briga (brigamos quase todos os dias durante a estadia em Paraty), dessa vez em uma lanchonete de bairro, levantei-me, engoli o choro na hora de pagar a conta e saí correndo pelas ruas da Tijuca. Estava com ódio de mim mesmo. As lágrimas queimavam meus olhos. Eu só queria morrer, e lembrei que na minha carteira havia alguns quadrados de LSD que eu não havia vendido na festa que fui no dia anterior.

Havia ido para uma festa de Techno na madrugada anterior por dois motivos. Primeiro pois me pareceu um tratamento adequado, extravasar toda a tensão da viagem com música, dança e drogas sintéticas. Segundo pois poderia recuperar parte do dinheiro gasto na viagem vendendo droga à custo hiper-faturado. 

Nesse dia tomei um quadrado de LSD, cheirei um pouquinho de quetamina e uns comprimidos de clonazepam. Depois de dormir umas quatro horas, achei que seria bom escrever. Peguei a pouca maconha que me restava e preparei com leite. Era tão pouco que quase não me fez efeito. Então resolvi tomar quatro comprimidos de clonazepam para ver como batia. 

No dia seguinte, depois de 14 horas de sono, levantei feito um zumbi. Eram quase quatro da tarde, e eu havia perdido um compromisso com Clara (várias mensagens dela no meu celular, reclamando). Como um zumbi, fiz algo para comer, provavelmente ovo frito, e deitei novamente, provavelmente para assistir youtube. 

Não via Helena desde que retornamos de Paraty. Havíamos combinados um tempo, dar espaço um ao outro, depois de tantas brigas, repensar a relação. E depois de quase uma semana sem vê-la, eu já estava morrendo de saudade. Fomos então nos encontrar na lanchonete e, por conta da noite anterior, da maconha e dos tranquilizantes, bom, eu estava como um zumbi. Ela me disse que não queria namorar um zumbi. Que estava chegando cansada do trabalho e queria alguém que lhe animasse, que lhe desse vida, e não um zumbi. E eu era um zumbi, mas um zumbi sentimental, desses que sentem cada palavra como se fosse uma faca contra a pele. Deu-se então a cena já descrita: saí correndo da lanchonete, chorando, lembrei-me do LSD em minha carteira (havia quatro ou cinco quadrados), e me pareceu que seria uma boa ideia tomá-los todos antes de me matar. E assim o fiz.

Já em casa, executei algumas sessões de enforcamento até quase desmaiar, desferi murros e arranhões em minha cara e pernas. O mundo inteiro já estava desfigurado pelo ácido, mas não tanto quanto meu pensamento. Diante do espelho passei a falar com minha própria imagem, mas quem falava não era eu, e sim o demônio que volta e meia me possui, e que por isso mantenho uma imagem de São Judas Tadeu para vigiar-me aqui no quarto. O demônio então me disse que se eu já iria morrer, não precisava morrer assim, um patético suicida. Que poderia ir para as ruas, que poderia beber e procurar festas em plena segunda-feira, que não havia mais qualquer medo, que eu poderia terminar a noite lambendo a lama no centro, ou então com a cara estourada no alto da Mangueira, nada havia a ser temido, pois como morto, quem diria, eu recebera pela primeira vez a vida em sua forma mais livre e soberana. 

Fui para o boteco do bairro e bebi uns três copos de cachaça em meia hora. Já era quase meia noite e tudo estava fechando, perguntei ao taxista onde a noite continuaria, ele disse Pedra do Sal. Mas eu não lembro mais de nada direito. Devo ter mandado mensagem para alguém, para meu irmão ou para Helena, porque os dois apareceram, me enfiaram no carro do meu irmão e, sob gritos e esperneios, me levaram para um hospital. Lá tomei soro, bradei contra o poder médico de simplesmente interditar meu corpo e meu desejo, meu irmão mandou eu calar a boca, fomos para casa, lá gritei com Helena e falei que eu não aguentava mais ser quem ela queria que eu fosse, que ela não me amava, que ela amava a fantasia que queria me transformar, e em certo momento, inconsciente ou não, fiz a paródia de uma cena dostoievskiana e atirei-me aos seus pés, e de forma cínica, debochada, tentei beijar e lamber a sola de seus pés, jurando submissão eterna. Ela recuou, assustada. Eu me encolhi em posição fetal e, como um bebê, comecei a chorar e pedir permissão a ela para que eu me matasse, pois não aguentava mais viver.

Ela ainda dormiu uma última noite ao meu lado antes de terminar de vez comigo. 

A vida segue, e a gente segue com ela. Conheci em seguida Beatriz, viciada em cocaína e outros fármacos. Passei alguns dias com ela, cheirando pó e quetamina. Para me distrair da dor, sentava-me diante do computador, cheirava algumas carreiras de ritalina e escrevia como um louco minha tese sobre Gilberto Freyre (progresso considerável: em uns três dias alcancei a impressionante cifra de 38 páginas completas).

Desde o incidente com o LSD, contudo, passaram a me acusar de toxicômano. Com esperanças de ter Helena de volta, concordei com meu sintoma, mas nada adiantou. 

Hoje, durante a aula de bio-dança que faço com Clara, a professora passou a falar da vida. Das bactérias, fungos, árvores, pássaros, de como tudo está infestado de vitalidade. Falou palavras bonitas, ordinárias, sim, mas que para mim, que só pensava em morte, me fizeram chorar. E em algum momento, quando falou de cultivar seu jardim, me lembrou o desfecho de Cândido... Que precisarei aqui transcrever.

Pangloss dizia às vezes a Cândido: “Todos os acontecimentos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois, afinal, se não tivésseis sido expulso de um lindo castelo a grandes pontapés no traseiro pelo amor da senhorita Cunegunda, se não tivésseis sido submetido à Inquisição, se não tivésseis percorrido a América a pé, se não tivésseis dado um bom golpe de espada no barão, se não tivésseis perdido todos os vossos carneiros do bom país de Eldorado, não comeríeis aqui cidras recheadas de pistaches”. “Isso está bem falado”, respondeu Cândido, “mas é preciso cultivar o nosso jardim”.

Hoje é meu primeiro dia de sobriedade. O primeiro de sete dias longos. O primeiro de uma demorada contagem regressiva para o carnaval. No carnaval, me darei permissão de morrer mais uma vez. Sei que não será a última. Mas morrerei com a esperança de que as próximas vidas sejam mais saudáveis que a atual. 

O primeiro dia de sete.

ai, minha fama de maldito, 2

O after na casa de Pedro Fernandes estava uma bosta. Gente fumando maconha pelos cantos e fazendo aquela média com todo mundo. Artifício emo...