quarta-feira, 26 de julho de 2023

FREYRE SOBRE FRANKLIN GIDDINGS E FRANZ BOAS

Alguns dos seus novos professores também lhe pareceram particularmente atraentes, tanto por seu saber como pelos tipos humanos que representavam. O ruivo Franklin Giddings, "conhecida autoridade mundial em Sociologia", dando aula de fraque preto parece a "própria encarnação da inteligência anglo-saxônica nas suas melhores e mais imperiais virtudes", diz Freyre; já o "moreno alatinado" Franz Boas é um "velhote boêmio" que mais parece "um músico que um antropólogo" ilustre (Freyre, 1975, p.61-2).48 Mas, não obstante essas enriquecedoras distrações, a determinação de Freyre em Nova York parece ter se mantido: priorizar seus estudos.

quarta-feira, 19 de julho de 2023

DERRIDA, J. MAL DE ARQUIVO, 2001

Em que se transforma o arquivo quando ele se inscreve diretamente no próprio corpo?

p. 8

Com Freud, sem Freud, às vezes contra Freud, Mal de arquivo evoca sem dúvida um sintoma, um sofrimento, uma paixão: o arquivo do mal; mas também aquilo que arruina, desvia ou destrói o próprio princípio do arquivo, a saber, o mal radical. Levanta-se então infinita, fora de proporção, sempre em curso, "em mal de arquivo", a espera sem horizonte acessível, a impaciência absoluta de um desejo de memória.

p. 9

É bem verdade que o conceito de arquivo abriga em si mesmo esta memória do nome arkhê. Mas também se conserva ao abrigo desta memória que ele abriga: é o mesmo que dizer que a esquece. Nada há de acidental ou surpreendente nisso. Com efeito, ao contrário daquilo que geralmente se imagina, tal conceito não é fácil de arquivar. Temos dificuldade, e por razões essenciais, em estabelecê-lo e interpretá-lo no documento que nos entrega; aqui, no nome que o nomeia, a saber, o "arquivo".

o sentido de "arquivo", seu único sentido, vem para ele do arkheion grego: inicialmente uma casa, um domicílio, um endereço, a residência dos magistrados superiores, os arcontes, aqueles que comandavam. Aos cidadãos que detinham e assim denotavam o poder político reconhecia-se o direito de fazer ou de representar a lei. Levada em conta sua autoridade publicamente reconhecida, era em seu lar, nesse lugar que era a casa deles (casa particular, casa de família ou casa funcional) que se depositavam então os documentos oficiais. Os arcontes foram os seus primeiros guardiões. Não eram responsáveis apenas pela segurança física do depósito e do suporte. Cabiam-lhes tam­bém o direito e a competência hermenêuticos.

p. 12

esta topo-nomologia, a esta discussão arcôntica de domiciliação, a esta função árquica, na verdade patriárquica, sem a qual nenhum arquivo viria à cena nem aparecería como tal.

p. 13

A consignação tende a coordenar um único corpus em um sistema ou uma sincronia na qual todos os elementos articulam a unidade de uma configuração ideal. Num arquivo, não deve haver dissociação absoluta, heterogeneidade ou segredo que viesse a separar (secernere), compartimentar de modo absoluto. O princípio arcôntico do arquivo é também um princípio de consignação, isto é, de reunião.

p. 14

o o signo da aliança na circuncisão, a uma marca íntima diretamente sobre o corpo.

p. 18

Muita tinta e papel para nada, todo um volume tipográfico, em suma um suporte material desproporcional para "contar" (erziihleri) histórias que, no final das contas, todo mundo conhece. Mas o movimento desta retórica leva a outro lugar. Pois Freud tira daí uma outra conseqüência, na lógica retrospectiva de um futuro anterior: ele deveria ter inventado uma proposição original que compensasse este investimento. Dito de outra forma: ele deveria ter encontrado algo de novo na psicanálise: uma mutação ou um corte no interior de sua própria instituição teórica. E deveria não somente anunciá-la, mas também arquivá-la: pô-la de alguma maneira no prelo.

p. 18

Freud sugere, de fato, que este arquivamento não seria vão nem de pura perda, na hipótese de que faria aparecer o que na verdade ele já sabe que vai fazer aparecer e que não é portanto uma hipótese para ele, uma hipótese posta em discussão, mas sim uma tese irresistível, a saber, a possibilidade de uma perversão radical, justamente uma diabólica pulsão de morte, de agressão ou de destruição: portanto, uma pulsão de perda. Na seqüência, o capítulo recordará tudo aquilo que Além do princípio do prazer (1920) já introduziu, dez anos antes: esta pulsão de destruição na economia, ou melhor, na aneconomia psíquica, na parte maldita desta despesa em pura perda.

p. 20

******

Ela [a pulsão de morte, pulsão de agressão, pulsão de destruição: muda, em silêncio,] destrói seu próprio arquivo antecipadamente, como se ali estivesse, na verdade, a motivação mesma de seu movimento mais característico. Ela trabalha para destruir o arquivo: com a condição de apagar mas também com vistas a apagar seus "próprios" traços - que já não podem desde então serem chamados "próprios". Ela devora seu arquivo, antes mesmo de tê-lo produzido externamente. Esta pulsão, portanto, parece não apenas anárquica, anarcôntica (não nos esqueçamos que a pulsão de morte, por mais originária que seja, não é um princípio, como o são o princípio do prazer e o princípio de realidade): a pulsão de morte é, acima de tudo, anarquívica, poderiamos dizer, arquiviolítica. Sempre foi, por vocação, silenciosa, destruidora do arquivo. [...] a menos, diz Freud, que ela se disfarce; a menos que ela se tinja, se maquie ou se pinte (gefãrbt ist) de alguma cor erótica. Esta impressão de cor erógena desenha uma máscara sobre a própria pele. Dito de outra maneira, a pulsão arquiviolítica não está nunca pessoalmente presen­te nela mesma nem em seus efeitos. Ela não deixa nenhum monumento, não deixa como legado nenhum documento que lhe seja próprio. Não deixa como herança senão seu simulacro erótico, seu pseudônimo em pintura, seus ídolos sexuais, suas máscaras de sedução: belas impressões. Estas impressões são talvez a origem mesma daquilo que tão obscuramente chamamos a beleza do belo. Como memórias da morte. [...] ela [pulsão de morte, destruição, agressão] leva não somente ao esquecimento, à amnésia, à aniquilação da memória como mneme ou anamnesis, mas comanda também o apagamento radical, na verdade a erradicação daquilo que não se reduz jamais à mneme ou à anamnesis; a saber, o arquivo, a consignação, o dispositivo documental ou monumental como hupomnema, suplemento ou representante mnemotécnico, auxiliar ou memento. Pois o arquivo, se esta palavra ou esta figura se estabiliza em alguma significação, não será jamais a memória nem a anamnese em sua experiência espontânea, viva e interior. Bem ao contrário: o arquivo tem lugar em lugar da falta originária e estrutural da chamada memória. [...] 

p. 21 - 22.

se não há arquivo sem consignação em algum lugar exterior que assegure a possibilidade da memorização, da repetição, da reprodução ou da reimpressão, então lembremo-nos também que a própria repetição, a lógica da repetição, e até mesmo a compulsão à repetição, é, segundo Freud, indissociável da pulsão de morte. Portanto, da destruição. Conseqüência: diretamente naquilo que permite e condiciona o arquivamento só encontraremos aquilo que expõe à destruição e, na verdade, ameaça de destruição, introduzindo a priori o esquecimento e a arquiviolítica no coração do monumento. No próprio "saber de cor". O arquivo trabalha sempre a priori contra si mesmo.

p. 23

A pulsão de morte tende assim a destruir o arquivo hipomnésico, quando não a disfarçá-lo, maquiá-lo, pintá-lo, imprimi-lo, representá-lo no ídolo de sua verdade em pintura. Uma outra economia está assim trabalhando: a transação entre esta pulsão de morte e o princípio do prazer, entre Thanatos e Bros; mas também entre a pulsão de morte e esta aparente oposição dual dos princípios, dos arkhai, por exemplo, o princípio de realidade e o princípio do prazer. A pulsão de morte não é um princípio. Ela ameaça de fato todo principado, todo primado arcôntico, todo desejo de arquivo. E a isto que mais tarde chamaremos de mal de arquivo.

p. 23

******

Uma circuncisão, por exemplo, é uma marca exterior? É um arquivo?

p. 24

o judeu pode desempenhar o papel análogo de alívio ou de deslastre econômico {die selbe õkonomisch entlastende Rolle} que lhe reserva o mundo do ideal ariano. Dito de outra maneira, a destruição radical pode ainda ser reinvestida numa outra lógica, no inesgotável recurso economístico de um arquivo que capitaliza tudo, incluindo aquilo que o arruina ou contesta radicalmente seu poder: o mal radical pode ainda servir, a infinita destruição pode ser reinvestida numa teodicéia, o Diabo pode também justificar - e esse seria o destino do judeu no ideal ariano.

p. 24

Tentei delimitar o que este texto [O mal-estar na civilização, de Freud] dá a pensar, apesar das certezas metafísicas nas quais, me parece, fica aprisionado,

p. 25

o arquivo, como impressão, escritura, prótese ou técnica hipomnésica em geral, não é somente o local de estocagem e de conservação de um conteúdo arquivável passado, que existiría de qualquer jeito e de tal maneira que, sem o arquivo, acreditaríamos ainda que aquilo aconteceu ou teria acontecido. Não, a estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro. O arquivamento tanto produz quanto registra o evento. É também nossa experiência política dos meios chamados de informação.

[para escrever ao modo de koselleck, a transformação do meio de registro, ao transformar nossa expectativa de seu futuro e do horizonte do passado, transforma também o que nele, no medium, se registra. por exemplo, se enuncia em voz alta ou baixa muitas vezes aquilo que se recusa a enunciar por escrito, em carta endereçada a alguém. a que enunciados serve o registro da escrita, sua durabilidade? o que a duração de seu registro nos impede dizer? "pegue essas cartas e queime depois de ler", alguém poderia escrever...].

p. 28 - 29.

o limite entre o privado, o segredo (privado ou público) e o público ou o fenomenal.

p. 30.

Esta técnica de arquivamento comanda aquilo que no próprio passado instituía e construía o que quer que fosse como antecipação do futuro. E como garantia. O arquivo sempre foi um penhor e, como todo penhor, um penhor do futuro. Mais trivialmente: não se vive mais da mesma maneira aquilo que não se arquiva da mesma maneira. O sentido arquivável se deixa também, e de antemão, co-determinar pela estrutura arquivante. Ele começa no imprimente.

p. 31.

[psicanálise:] a idéia de um arquivo psíquico distinto da memória espontânea, de uma hupomnesis distinta da mneme e da anamnesis: a instituição em suma de uma prótese do dentro.

p. 31.

******

incorpora também o que parecia contradizer, sob a forma de uma pulsão de destruição, a pulsão mesma de conservação que poderiamos chamar também pulsão de arquivo. É o que chamamos ainda há pouco, levando em conta esta contradição interna, a mal de arquivo. Não havería certamente desejo de arquivo sem a finitude radical, sem a possibilidade de um esquecimento que não se limita ao recalcamento. Sobretudo, e eis aí o mais grave, além ou aquém deste simples limite que chamam finitude, não havería mal de arquivo sem a ameaça desta pulsão de morte, de agressão ou de destruição. Ora, esta ameaça é in-finita: ela varre a lógica da finitude e os simples limites factuais, a estética transcendental, ou seja, as condições espaço-temporais da conservação. Digamos melhor: ela abusa. Um tal abuso abre a dimensão ético-política do problema. Não há um mal de arquivo, um limite ou um sofrimento da memória entre vários outros: implicando o in-finito, o mal de arquivo toca o mal radical.

p. 32

******

uma "Casa de Freud", o arkheion do qual nós somos os anfitriões, no qual falamos, a partir do qual falamos. Ao qual, ousaria dizer também, falamos: endereçamo-nos a ele.

p. 33

Como se faz em geral a prova de uma ausência de arquivo senão fiando-se nas normas clássicas (presença/ausência de referência literal e explícita a isso ou aquilo, a um isso e um aquilo que supomos idênticos a eles mesmos e simplesmente ausentes, atualmente ausentes, se não estão simplesmente presentes, atualmente presentes; como e por que não levar em conta arquivos inconscientes, mais geralmente, virtuais)? Ora, Yerushalmi sabe muito bem que a proposta de Freud é analisar, através da aparente ausência de memória e de arquivo, todos os tipos de sintomas, sinais, figuras, metáforas e metonímias que atestam, ao menos virtualmente, uma documentação arquivística onde o "historiador comum" não identifica nada. Concordemos ou não com sua demonstração, o fato é que Freud pretendeu que o assassinato de Moisés tenha efetivamente deixado arquivos, documentos, sintomas, na memória judaica e mesmo na memória da humanidade. Ocorre simplesmente que os textos deste arquivo não são legíveis segundo as normas da "história comum", e aí reside todo o interesse da psicanálise, se ela tem algum.

p. 84

o inconsciente pode ter preservado a memória e o arquivo - mesmo se houve recalque; pois um recalque arquiva também aquilo cujo arquivo ele dissimula ou encripta.

p. 86

a interpretação do arquivo (aqui, por exemplo, o livro de Yerushalmi) não pode esclarecer, ler, interpretar, estabelecer seu objeto, isto é, uma herança dada, senão inscrevendo-se nele, isto é, abrindo-o e enriquecendo-o bastante para então aí ocupar um lugar de pleno direito. Não há meta-arquivo. [...] o arquivo aumenta, cresce, ganha em auctoritas. Mas perde, no mesmo golpe, a autoridade absoluta e metatextual que poderia almejar. Jamais se poderá objetivá-lo sem um resto. O arquivista produz arquivo, e é por isso que o arquivo não se fecha jamais. Abre-se a partir do futuro.

associarmos o arquivo à repetição e a repetição ao passado. Mas aqui trata-se do futuro e do arquivo como experiência irredutível do futuro.

p. 88

[as três portas do futuro]

[1.] Lugar marcante e necessário, lugar decisivo ali mesmo onde nada se decide. [...] Promessa. A promessa de um segredo guardado.

p. 90

[2.] Trata-se deste performative por vir cujo arquivo não tem mais nenhuma relação com o registro do que é, da presença do que é ou terá estado atualmente presente. Chamo a isto o messiânico e o distingo radicalmente de todo e qualquer messianismo.

p. 93

[3.] a judeidade que não espera o futuro é justamente a espera do futuro, a abertura da relação com o futuro, a experiência do futuro. Aí estaria a peculiaridade do "judeu", algo unicamente seu: não somente a esperança, não apenas uma "esperança no futuro (hope for the future)", mas ainda "a antecipação de uma esperança específica no futuro (the antecipation of a specific hope for the future)."

p. 93

De fato, todos os profetas colocam uma resolução última, se assim podemos dizer, do conflito edipiano entre Israel e Deus; Malaquias coloca-a igualmente num plano puramente humano: 'Ve-heshiv lev avot 'al banim ve-lev banim ‘al avotam' (Ele reconciliará o coração dos pais com [os de] seus filhos e o coração dos filhos com [os de] seus pais)

p. 94

Yerushalmi registra um silêncio de Freud que ele vai contudo fazer falar, virtualmente

p. 95

A necessidade de afirmar a afirmação, a afirmação da afirmação, deve ser ao mesmo tempo tautológica e heterológica. Yerushalmi está pronto a ceder tudo, inclusive a existência de Deus e o futuro da religião, tudo menos este traço que liga a judeidade e a abertura ao futuro. E, mais radicalmente ainda, a unicidade absoluta deste traço. A unicidade do traço é primeiramente o traço-de-união inapagável entre judeidade e futuro. O ser-judeu e o ser-aberto-ao-futuro seria a mesma coisa, a mesma única coisa, a mesma coisa como unicidade - e não poderíamos dissociar uma da outra. Ser aberto ao futuro seria ser judeu. Reciprocamente. Exemplarmente. Seria não apenas ter um futuro, ser capaz de antecipação, etc., aptidão partilhada cuja universalidade poderia parecer indiscutível, mas também referenciar-se ao futuro como tal e não tomar sua identidade, refleti-la, declará-la, anunciá-la senão a partir do que vem do futuro. Seria este o traço, a unicidade exemplar do traço-de-união

p. 95 - 96

Como se Deus só houvesse inscrito uma coisa na memória de um só povo e de um povo inteiro: no futuro, lembre-se de se lembrar do futuro.

p. 98

Uma vez que há o Um, há o assassinato, a ferida, o traumatismo. O Um se resguarda do outro. Protege-se contra o outro, mas no movimento desta violência ciumenta comporta em si mesmo, guardando-a, a alteridade ou a diferença de si (a diferença para consigo) que o faz Um. O "Um que difere de si mesmo". O Um como o centro. Ao mesmo tempo, mas num mesmo tempo disjunto, o Um esquece de se lembrar a si mesmo, ele guarda e apaga o arquivo desta injustiça que ele é. Desta violência que ele faz. O Um se faz violência. Viola-se e violenta-se mas se institui também em violência. Transforma-se no que é, a própria violência - que se faz a si mesmo. Autodeterminação como violência. O Um se guarda do outro para se fazer violência (porque se faz violência e com vistas a se fazer violência).

p. 100

Esta seria talvez a razão pela qual Freud não teria aceitado, sob esta forma, a alternativa entre o futuro e o passado de Édipo, nem entre a "esperança" e a "desesperança" (“hope" e "hopelessness"), o judeu e o não-judeu, o futuro e a repetição. Um se torna, feliz ou infelizmente, a condição do outro. [...] é da estrutura do por-vir o não poder se colocar senão acolhendo a repetição tanto no respeito à fidelidade - ao outro e a si mesmo - como na re-posição violenta do Um.

p. 101

*****

Em todos os casos, não haveria porvir sem repetição. E daí, talvez, diria Freud (essa seria portanto sua tese), não haveria porvir sem o fantasma da violência edipiana que inscreve a sobre-repressão na instituição arcôntica do arquivo, na posição, a autoposição com a heteroposição do Um e do Único na arkhê monológica. E a pulsão de morte.

p. 102

*****



terça-feira, 18 de julho de 2023

SOBRADOS & MUCAMBOS, 269 - 270: sacrifício econômico do comerciante e o dispêndio boêmio de seus filhos aristocráticos

Que viessem portugueses ou estrangeiros para trabalhar nos campos. Que viessem portuguesas "de dose a vinte annos de idade na qualidade de amas substituirem as africanas que tão prejudiciaes nos são na educação das nossas famílias". Mas não portugueses que continuassem a se apossar do comércio de retalhos e cabotagem, reduzindo os brasileiros "á condição de escravos". Não portugueses que, a título de adotivos, viessem participar da nossa política, alguns "dando dinheiro, para se guerrear, aos brasileiros, nas eleições" e "todos agradando os homens do poder contanto que os deixem desfrutar esse manancial de grandeza..." De modo que a 12 de julho de 1850 a linguagem de redatores de jornais como O Conciliador continuava, com relação aos estrangeiros, quase a mesma dos panfletário dos dias, ainda quentes de saNgue, da Revolta Praieira. A mesma linguagem daqueles outros nativistas que, no Rio de Janeiro, pelo O Homem do Povo Fluminense (24 de dezembro de 1840) chamavam aoa portugueses "esta raça de judeus" [...]

Um dos pontos destacados pelo jornal A Revolução de Novembro, em seu editorial de 29 de setembro de 1850, foi precisamente este: a "classe dos agricultores" estava reduzindo-se a uma classe de "pessoas arruinadas pelas dívidas immensas que contrahem com os portugueses..." [...] "os filhos de portugueses" eram pelos pais considerados seus inimigos e "substituidos em suas casas, em seus logares, em suas riquesas, por outros portuguezes, por meio de casamentos com suas filhas..." Os filhos de brasileiros ou mestiços tornavam-sr "os miseráveis da sociedade" isto é, das sociedades comerciais organizadas pelos pais lusitanos que, por uma perversão, econômica e sociologicamente explicável, do sentido - para não dizer "instinto" ao modo de Veblen - de continuidade patriarcal de poder, favoreciam as filhas nas pessoas dos genros vindos de Portugal como caixeiros. Caixeiros quase impossibilitados, pela sua condição de indivíduos nascidos em Portugal, de dispersarem a "fortuna da casa" tornando-se romanticamente poetas, políticos, advogados, doutores, bacharéis, intelectuais brasileiros.

Amigos das mestiças ou mulatas, os portugueses temiam nos mestiços ou mulatos - mesmo quando seus filhos - o romantismo boêmio de brasileiros que, desdenhosos da mercancia e empolgados pelas profissões liberais, pelas belas-letras, pelas belas atrizes, pelo bel-canto, comprometessem a continuidade da riqueza feia e forte conseguida e acumulada com esforço às vezes heróico, embora prosaico e desacompanhado de qualquer música: violão era para brasileiro. Modinha também.

Também banho, sabonete, perfume. O caixeiro português enriquecia com sacrifício do próprio asseio do corpo, no qual às vezes se exagerava o brasileiro. Como se exagerava na boêmia às vezes turbulenta. Temiam os portugueses do Reino na plebe de gente de cor o ódio de miseráveis e, principalmente, de malandros ou vadios - os capoeiras do Rio de Janeiro, de Salvador e do Recife, por exemplo - contra eles, portugueses, mercadores ou ainda caixeiros de sobrados e de loja, enriquecendo penosamente no comércio de charque, de bacalhau, de azeite, de vinho, e não apenas no de escravos.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

atrofiando

não desejo proliferar nem a morte e nem a doença, mas por minhas deficiências congênitas deserdado pelos meus pais, a única família que me resta é a das criaturas virulentas. patinho feio, mas da estirpe dos verdadeiros amaldiçoados: chocaram o ovo errado, e a pomba branca nasceu serpente. nada posso fazer, concluo sem muito pesar, é de minha monstruosa natureza. tudo que sei é morder e matar, meu coração são presas, e os parceiros que atraio por amor ponho para dormir com o intuito inconsciente de matar. assim fui fadado a amar. "vampiro miserável que não merece nada além do que uma estaca no coração das trevas", me descreveu atentamente uma psicanalista, e recomendou para sua cliente, com sinceridade, com preocupação, como quem aconselha uma filha ou irmã, a quem deseja livrar de um mau presságio: "afasta-se do amor doentio, epidêmico, desse monstro vampírico". e eu que amo ela, corro para longe da luz, me fecho nas trevas de meu caixão, me entupo de benzodiazepínicos, cheiro cocaína, escrevo versos peçonhentos, suicidas, ridículos em sua sinceridade de imagens óbvias, de quem reconhece por natureza o mal. a boa companhia que me destina não deve ser orgânica, mas como o pó que logo hei de me fundir; e tudo que quero é a calma silenciosa de uma pedra, e tudo que ambiciono é a poesia topográfica de euclides da cunha. e pelo amor do pó e das reações químicas, tratar de terminar a alquimia do ser ao não-ser; e de um momento para o outro, simplesmente cessar, como o rio que seca, como a chama que apaga.

Um alienista criminalista, Maandon de Montyel, em 1892

A população das cadeias e dos presidios, para um analysta profundo da sociedade, não parece mais antisocial que uma boa parte da população livre. Um alienista criminalista, Maandon de Montyel, escreveu: << Cada um de nós trás no cerebro um criminoso que dormita e cujo despertar depende em parte da sua lethargia, em parte do grau do excitante, de sorte que o delinquente de amanhã, conforme as circumstancias, será talvez o leitor, serei talvez eu >> [Archives d'anthropologie criminelle, 1892.] Marandon dá ao termo criminoso a significação que, mais exactamente, se applica ao monstro do crime. Quanto mais verdadeiro é então o seu pensamento, dando-se á palavra criminoso a significação do autor de acto antisocial! Pode-se mesmo dizer nesse caso que o criminoso não dormita no cerebro, mas está muito bem acordado.

<< D'esta exposição summaria resulta que as conclusões anthropologicas ou sociaes que os criminalistas tiraram dos seus estudos das estatisticas judiciarias e penitenciarias, das medições da população das prisões, véem feridas de impotencia. Assentam sobre excepções e não sobre a generalidade dos autores de actos antisociaes. Não quero dizer que todas essas conclusões sejjam falsas: podem conter uma parte de verdade, sobretudo no que é concernente ao estudo dos factores: meio social e meio cosmico. Com effeito o criminoso legal pode nesse caso ser justamente considerado como um specimen de antisocial, sobre que actuam os meio social e cosmico nas mesmas condições que sobre a generalidade dos antisociaes occultos. Ao contrario, no que é concernente ao factor individual, as conclusões deduzidas pelos criminalistas são viciadas por falta de termo de comparação segura: d'onde resulta que não se pode generalizar e estabelecer um typo criminoso; quando muito podem estabelecer-se alguns typos criminosos.

<< Na opinião de todos os criminalistas contemporaneos, o crime tem como causas geradoras tres factores: meio individual, meio social e meio cosmico. Por meio individual intendem a conformação craniana, cerebral, o temperamento, a conformação do corpo, numa palavra a maneira de ser de todo o organismo physico. Por meio social intendem a educação, a instrucção, os usos e costumes da collectividade ambiente, as condições da vida economica, intellectual e moral. Por meio cosmico intendem a temperatura, o estado hygrometrico, electrico, da atmosphera physica do solo onde vive o autor do acto antisocial. >>


HAMON, A. Determinismo e responsabilidade. tradução Bel-Adam. Lisboa: Antiga Casa Bertrand - José Bastos & Cia, 1910, p. 12 - 13.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

sobre PAIXÕES, de DERRIDA

"Tanto na amizade quanto na cortesia, não haveria um duplo dever: não seria exatamente evitar, a qualquer preço, a linguagem do rito e a linguagem do dever? [...] Um gesto "de amizade" ou "de cortesia" não seria nem amigável nem cortês se obedecesse pura e simplesmente a uma regra ritual. Mas esse dever de fugir à regra da conveniência ritualizada pede também um comportamento além da própria linguagem do dever. Não se pode ser amigo ou cortês por dever".

p. 13

contra Kant:

"Haveria, pois, um dever de não agir segundo o dever em conformidade: nem com o dever, diria Kant (pflichtmassig), nem mesmo por dever (aus Pflicht)? Como um tal dever, um contra-dever, nos endividaria? Com relação a quê? Com relação a quem?

p. 13 -14

"seria grosseiro parecer fazer um gesto, por exemplo, responder a um convite, por simples dever. Tampouco seria amistoso responder a um amigo por dever [ou] em conformidade com o dever.".

"jogar com a aparência onde ali se faz com a intenção".

p. 14.

"quanto ao "é preciso" da amizade, assim como ao da cortesia, não basta dizer que ele não deve ser da ordem do dever". Ele nem mesmo deve assumir a forma de uma regra, menos ainda de uma regra ritual. A partir de um momento em que se submetesse à necessidade de aplicar a um caso a generalidade de um preceito, o gesto de amizade ou de cortesia destruir-se-ia de uma vez só. Seria vencido, abatido e destruído pela rigidez regular da regra, em outras palavras, da norma. Axioma do qual não se deve deduzir que somente se chega à amizade ou à cortesia [...] transgredindo todas as regras ou indo contra todos os deveres. A contra-regra também é uma regra".

p. 14 - 15.

"A contradição interna do conceito de CORTESIA [...] é que implica a regra e a invenção sem regra. Sua invenção é que se conheça a regra, sem nunca se ater a ela. É falta de cortesia ser apenas cortês, ser cortês por cortesia".

p. 15

"dever".

"retórica da responsabilidade", o "discurso responsável sobre a responsabilidade".

"Ao falar de discurso responsável sobre a responsabilidade, já implicamos que o próprio discurso deve se submeter às normas e à lei da qual fala. Essa implicação parece inelutável, mas desconcertante: qual poderia ser a responsabilidade, a qualidade ou a virtude da responsabilidade, de um discurso consequente que pretendesse demonstrar que uma responsabilidade nunca poderia ser assumida sem equívoco ou contradição? que a autojustificativa de uma decisão é impossível e não poderia, a priori e por razões estruturais, de maneira alguma responder por si própria?"

p. 16

há "alguma coisa determinada por um saber, [...] aquilo que se encontra em frente dos olhos, da boca, das mãos; como um objeto pro-posto ou pré-posto, uma questão a ser tratada, um sujeito proposto, portanto, da mesma forma, [...] tratar-se-ia também de um ob-sujeito adiantado, como um quebra-mar ou como o promontório de um cabo, uma armadura ou uma vestimenta de proteção".

p. 17.

como abordar de frente a um problema, de maneira não-oblíqua, sem dissimulação, sem artimanha, sem cálculo?

problema.

late 14c., probleme, "a difficult question proposed for discussion or solution; a riddle; a scientific topic for investigation," from Old French problème (14c.) and directly from Latin problema, from Greek problēma "a task, that which is proposed, a question;" also "anything projecting, headland, promontory; fence, barrier;" also "a problem in geometry," literally "thing put forward," from proballein "propose," from pro "forward" (from PIE root *per- (1) "forward") + ballein "to throw" (from PIE root *gwele- "to throw, reach").

The meaning "a difficulty" is mid-15c. Mathematical sense of "proposition requiring some operation to be performed" is from 1560s in English. Problem child, one in which problems of a personal or social character are manifested, is recorded by 1916. Phrase _______ problem in reference to a persistent and seemingly insoluble difficulty is attested from at least 1882, in Jewish problem. Response no problem "that is acceptable; that can be done without difficulty" is recorded from 1968.

also from late 14c.

Etymology

From Proto-Hellenic *prógʷlāmə. Equivalent to προβάλλω (probállōI throw before) +‎ -μᾰ (-ma).

Pronunciation


 
  • IPA(key)/pró.blɛː.ma/ → /ˈpro.βli.ma/ → /ˈpro.vli.ma/

Noun[edit]

πρόβλημᾰ  (próblēman (genitive προβλήμᾰτος); third declension


  1. anything thrown forward or projecting quotations ▲
    1. hindranceobstacle quotations ▲
  2. anything put before one as a defense, bulwarkbarrierscreenshieldwall quotations ▼
    1. (with genitive) a defense against a thing quotations ▲
  3. anything put forward as an excuse or screen quotations ▲
  4. that which is proposed as a taskbusiness quotations ▲
    1. (geometry) problem quotations ▲
    2. (Logic of Aristotle) a question as to whether a statement is so or not quotations ▼
    3. problemdifficulty quotations ▲


"Problema pode vir a designar aquele que, como se diz em francês, dá cobertura, endossando a responsabilidade de um outro ou se fazendo passar pelo outro, falando em nome de outro, aquele que se coloca à frente ou atrás de quem alguém se dissimula. Estamos pensando aqui na paixão de Filoctetes, em Ulisses, o oblíquo, - e na terceira pessoa (terstis), ao mesmo tempo testemunha (testis) inocente; ator - participante, mas também ator ao qual se faz desempenhar um papel, instrumento e delegado, agindo por representação, a saber, a criança problemática, Neoptólemo. Desse ponto de vista, a responsabilidade seria problemática, à medida suplementar que poderia ser às vezes, talvez mesmo sempre, aquela que se assumi não por si, em seu próprio nome e em frente ao outro (a mais clássica definição metafísica de responsabilidade), mas aquela que se deve assumir por um outro, no lugar, em nome do outro ou em seu nome como outro, frente a um outro, e um outro do outro, a saber, o inegável mesmo da ética".
p. 17 - 18

À MEDIDA SUPLEMENTAR - o outro termo

"à medida suplementar, dizíamos, mas devemos ir mais longe: à medida que a responsabilidade não apenas não diminui, mas, pelo contrário, surge numa estrutura que também é suplementar. Ela é sempre exercida em meu nome como em nome do outro [...]".
p. 18.

NARCISISMO

"Perfilam-se aqui os paradoxos infinitos daquilo que se chama com tanta tranquilidade de narcisismo: supõe que X, alguma coisa ou alguém (um rastro, uma obra, uma instituição, uma criança), use o teu nome, isto é, o teu título. Tradução ingênua ou fantasma comum: deste [você deu] teu nome a X, portanto tudo aquilo que retorna a X, de modo direto ou indireto, em linha reta ou oblíqua, retorna a ti, como um benefício para o teu narcisismo. Mas como não és teu nome nem teu título e que, como o nome e ou o título, X passa muito bem sem ti, e sem tua vida, a saber, sem o local para onde alguma coisa pudesse retornar, como aí estão a definição e a própria possibilidade de qualquer rastro, de qualquer nome e de qualquer título, teu narcisismo fica frustrado a priori quanto aquilo de que se beneficia ou espera se beneficiar".

"Inversamente, supõe que X recuse teu nome ou teu título; supõe que, por uma razão qualquer, X se livre dele e escolha para si um outro nome, fazendo uma espécie de desmame do desmame original; então, teu narcisismo, duplamente ferido, ficará por isso mesmo ainda mais enriquecido: aquele que usa, usou, ou terá usado teu nome parece bastante livre, poderoso, criador ou autônomo para viver só e radicalmente passar bem sem ti e sem teu nome. Retorna a teu nome, no mais secreto do teu nome, poder desaparecer em teu nome. E portanto, não voltar a si, o que é a condição do dom (por exemplo, do nome), como também de toda expansão de si, de toda elevação de si, de toda auctoritas".

"Nos dois casos dessa mesma paixão dividida, é impossível dissociar o maior benefício e a maior privação. Consequentemente, é impossível construir um conceito não-contraditório ou coerente de narcisismo, e, portanto, dar um sentido unívoco ao eu e, segundo a expressão de Baudelaire, "sem cerimônia" É o segredo do arco ou da corda instrumental (neura) conforme Filoctetes, conforme a paixão segundo Filoctetes: a criança é o problema, sempre, eis a verdade".
p. 22-23.

problema: "Filoctetes faz portanto uso suplementar da palavra problema: o substituto, o suplente, a prótese, aquilo ou aquele que se coloca à frente para se proteger dissimulando-se, aquilo (aquele) que vem no lugar ou no nome do outro, a responsabilidade delegada ou desviada".

p. 57

"confissão ou autocrítica: dever-se-ia sorrir à hipótese da mais hiperbólica hybris, a saber, a hipótese de que esse "leitor crítico" (critical reader) seria, em suma, um "leitor autocrítico" (critica de si, mas crítica de quem, ao certo? A quem o refletido remeteria aqui?), um leitor que se porta e se transporta por si mesmo, sobretudo já não precisando de "mim" para isso, de um eu que, ele próprio, já não precisaria de ninguém para fazer todas as perguntas ou todas objeções críticas que se queira".

p. 23

"a re-moralização da desconstrução [...] um novo sono dogmático".

p. 26 - 27.

"excessos"

p. 27

"isto não é uma ceia [...] a amizade irônica que nos reúne".

p. 32

"há uma arte da não-resposta ou da resposta diferida que é uma retórica da guerra, uma artimanha polêmica. O silêncio polido pode se tornar a arma mais insolente e a ironia mais mordaz".

p. 36

defeito, pretensão...: "tornar-se obra de arte (performance ou performativo literário, ficção, obra), jogo estetizante de um discurso do qual se esperava uma resposta séria, pensante ou filosófica".

p. 33

"a tentativa de se fazer ouvir"

p. 39

"que o próprio leitor crítico esteja exposto a priori e sem fim a alguma leitura crítica".

p. 41

"o estar-aí do segredo não concerne mais ao privado do que ao público. Não é uma interioridade privada, que seria preciso desvendar, confessar, declarar, isto é, pelo qual seria preciso responder e prestar contas e tematizar às claras. Quem alguma vez avaliaria o grau exato de uma tematização para julgá-la, enfim, suficiente? E há violência pior do que aquela que consiste em requerer resposta, em exigir que se preste contas de tudo e, além disso, de preferência tematicamente?"

p. 42 - 43

o segredo não é místico.

p. 44.

"Há segredo. Mas ele não se dissimula. Heterogêneo em relação ao escondido, ao obscuro, ao noturno, ao invisível, ao dissimulável, até mesmo ao não-manifesto em geral, ele não é desvendável. Permanece inviolável até quando se acredita tê-lo revelado......

p. 44

literatura: o direito de dizer tudo.

p. 47

ficção, literatura, dever, responsabilidade, verdade, sujeito, testemunho

p. 48

a solidão absoluta de uma paixão sem martírios.

ai, minha fama de maldito, 2

O after na casa de Pedro Fernandes estava uma bosta. Gente fumando maconha pelos cantos e fazendo aquela média com todo mundo. Artifício emo...