domingo, 30 de abril de 2023

A VIDA VERDADEIRA DE RENÉ DESCARTES, V.

O pobrezinho do René Descarte ajeitou discretamente o cinto e o fecho da calça, espiando se alguém ao lado estava prestando atenção em seus movimentos. Aparentemente, todos olhavam para a frente da classe, para o padre Xavier, que dizia, com sua voz arrastada:

- São Tomás de Aquino, diz o seguinte: A origem da alma é qual, fora divina?; a origem da memória é qual, fora a alma?; e se a origem da alma é divina, e a memória é propriedade da alma, logo a memória também é divina. 

Padre Xavier, apesar de vagaroso, encadeava seu raciocínio com firmeza, sem hesitar nas palavras empregadas, e repetia de tempo em tempo trechos em latim da Summa Theologiae ou de outras obras que René imaginava que deveria prestar reverência. 

Os demais ouviam com atenção. Só deveria existir, para eles, Padre Xavier e seus ensinamentos, e se fosse possível, o próprio corpo do padre desapareceria e seus alunos veriam diante da vista, como escritos, as palavras que ele repetia de cor, e que os alunos também deveriam repetir em sua mente, reproduzir no pensar cada sílaba que o padre tratava de anunciar.

René Descartes nunca conseguia acompanhar o exercício. Sempre se distraía em outro pensamento. 

Em particular, confessou certa vez ao padre Chouet, que ensinava física e matemática e com quem tinha certa intimidade, às vezes não conseguia prestar atenção nas aulas, pois lhe ocorriam outros pensamentos. O padre respondeu que as palavra deveriam ser conhecidas de cor porque eram enunciação e interpretação autorizada da verdade divina, e olhou René com um sorrisinho que lhe fez parecer um bobo, um selvagem a se questionar o porquê das pessoas dizerem boa tarde ou boa noite.

 René fez um gesto afirmativo com a cabeça, mas na verdade não entendia o que o padre quis dizer. 

Saiu da conversa ainda mais confuso do que antes. Na verdade, o pequeno Descartes sentiu-se estúpido, pois muitas vezes as palavras dos filósofos para ele nada significavam. Pensando consigo mesmo, chegou a cogitar que era absurdo as palavras por si fossem capaz de ensinar alguma coisa. 

Ao invés de teologia e metafísica, lhe interessava portanto a matemática, a física. Gostava especialmente de poder refazer por si só o seu caminho.

Na disciplina de teologia, o padre Xavier explicava que as palavra deveriam ser conhecida de cor, porque eram mesmo averdade divina, não pensada por ele, pobre alma pecadora, mas por toda a história de pensadores, No seu rosto, havia também um sorrisinho. 

Fazoa um gesto com a cabeça, afirmativo, que tinha se tornado um hábito, para representar que tinha entendido alguma coisa, mas novamente não havia entendido nada.

 Nas aulas seguintes, continuou pensando em outras coisas que não as palavras que o padre repetia, em alto e bom som, para toda a classe ouvir e entender com clareza o que dizia.

Narro a seguir um pensamento não só intrusivo, mas uma lembrança recorrente, que lhe ocorria enquanto o padre dava sua lição de teologia:

Minha madrasta Françoise deu um tapinha forte, mas talvez carinhoso, na minha cara.

- Foi você que comeu os figos cristalizados, não foi?

Baixei a cabeça, porque sabia ser o autor do delito.

- Se disser que não,, vou ter que usar a palmatória. René...

Quando viu que fiz cara de assustado, a fisionomia deFrançoais mudou por completo. Antes era agressiva, parecia uma bruxa malvada das histórias que Jean contava para me assustar. Depois, virou uma fada  passou a mão em meus lábios e disse, com a voz mais doce do que o açúcar delicioso do figo que imoralmente eu havia devorado:

- Ei, Ei, René... Está tudo bem, e me abraçou junto dela.

Depois que mamãe morreu de pneumonia, papai casou-se com Françoise. Alguns dias antes do aniversário do Jean que papai apresentou ela como sua esposa. 

Vi sua fisionomia com os olhos que as crianças veem as coisas. Não me cobre tantos detalhes. Lembro que era mais alta que mamãe. Seus quadris eram largos, e os espartilhos apertados fazia com que parecesse uma ampulheta. Teve certa vez, que desprovida dos adornos, vi Françoais nua.... Era assombroso vê-la nua, a ampulheta obrigada a regredir ao formato de carne e osso, e compreendi então, cheio de horror, o quanto o espartilho apertado deformava seu corpo até que se parecesse outra coisa, desumana, inumana, não sei descrever, irei chamar novamente de ampulheta.... 

Os relato de viajantes contam de tribos selvagens, costumes bárbaros terríveis, que deformavam das mais grotesca o corpo feminino... Em certa tribo eram obrigadas a estendero pescoço até a altura de um florim, e o narrador comparava as mulheres desta tribo às estranhas girafas, que diziam habitar o sul da África, e que eu contudo só havia visto por meio de ilustrações... Poderia existir um ser humano tão grotesco quanto uma fera? Li o relato com ceticismo, embora, confesso, fiquei impressionado com a mera possibilidade de se modificar o corpo de um ser humano ao ponto de aparentá-lo a uma besta...

Estava contudo distraído, não pensava em nada, quando entrei na saleta e vi Françoais desamarrar a última fita de seu espartilho. A criada atrás, de auxiliar, entediada, fazia tudo parecer um ritual ordinário. Quantas vezes deve ter visto o espetáculo de um corpo nu, bem assim, diante de seus olhos?Eu, contudo, um menino, sem iniciação apropriada, não pude acreditar, e quando Françoais soltou o espartilho e caiu o último pano que vestia, primeiro ocorreu em mim um choque, um frenesi, cuja origem hoje compreendo, mas que na idade de menino me pareceu simplesmente um castigo dos céus por assistir aquilo, que eu não deveria assistir, com meus olhos de carne que a terra irá ainda comer... Assisti a forma assombrosa daquele corpo, e se no momento estava enfeitiçado pelos torpores do sentido, hoje compreendo que doeu em mim ver um corpo assim, não o feminino, que já conhecia pela visão de minha irmãzinha Jeanne nua, mas por admirar uma mulher adulta, o quanto a cinta, o abusodos costumes, causaram em sua vida, em seu corpo de criatura... 

Aquela cintura não sabia se queria ou se repelia, para dizer a verdade. O que houve foi que rapidamente me ocultei, com a esperança de que ninguém soubesse de que vira minha madrasta nua. 

Estou me comprometendo, é melhor explicar que nada disso foi voluntário. Tudo, afinal, foi acidente. Eu regressava de férias, de meu colegial. Tinha meus quatorze anos, estava me encaminhando para o fim dos estudos com os jesuítas. E pela convivência com os rapazes mais velhos, repletos de vícios, havia aprendido o prazer sensorial de me embriagar. Passei, de vez em quando, a tomar vinho, uísques, ou o que mais tivesse disponível, pelo simples prazer de meus sentidos enganar.

De Françoais, confesso, gostava de beber seu conhaque, que mantinha cuidadosamente escondido dos demas. Ela sempre tinha uma garrafa de conhaque  atrás de um quadro de minha bisavó. Ficava em seu salão particular. A descoberta ocorreu de maneira trivial, estava passando, a porta estava aberta, ela já parecia ébria, então não percebeu minha presença, e também fingi que não vi nada. 

Desde então, quando ela estava distraída em algum outro cômodo, ou tivesse se ausentado para a rua, entrava e roubava um gole do conhaque dela. 

Naquele dia, que houve o incidente, achei que não estava em casa. Mas quando entrei no quarto,  flagrei Françoais nua, acompanhada da criada que lhe ajudava a tirar a indumentária. 

A mente de René Descartes vagava, sem rumo, enquanto o padre Xavier fazia seu falatório sobre a memória, naquele ritmo pausado e monótono que René considerava insuportável. 

Como todos podiam estar prestando atenção naquilo?

- Porquê a retórica, dizia o padre, De oratore, I,V, é a zona erógena da língua: por isso importante sabê-la de cor. Controle sua libido por meio e através da linguagem. Não se desvie das coisas santas, não permita aos sentidos nada fora o mínimo: respiração, circulação, pulsação. O resto é traiçoeiro, e trai o espirito. Preste portanto atenção às palavras que digo. São compostas pelas maiores auctoritas, e é com as palavras deles que deves não somente falar, mas pensar. Nam ut praecepta omnia, quae ad eloquentiam pertinent, in hac una sententia continentur: ut id, quod cuique dicendum sit, apte, perspicue, ornate dicatur. Que sejam belas as palavras porque somente o belo és capaz de fazer amar. E lembras bem de quem tu amas: Dicit ei: Diliges Dominum Deum tuum ex toto corde tuo, et in tota anima tua, et in tota mente tua. Hoc est maximum et primum mandatum. Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, Este é o maior e o primeiro mandamento...

A mente de Descartes, contudo, seguia rumo próprio, que nem ele contudo trataria de compreender. Da madrasta, sentiu certa culpa, e da culpa pensou na mãe, Jeanne, que talvez por semelhança simplória, nomesmática, fez com que se lembrasse de sua irmã mais nova, batizada também como Joanne, homenagem à mãe e à bisavó....

Era quatro anos mais nova que eu. Lembro que no aniversário de Jean ela se queixou por não lembrarem que seu nome também era uma homenagem... Meu pai silenciou, espantado, que a filhinha indignava-se com o lapso. 

- Vamos, Jeanne, disse Françoais, não seja má educada. Hoje é aniversário de Jean. Deixe que Joaquim use o nome de seu irmão - e indicou com a cabeça, olhar frio como a neve que caía lá fora - para lembrar de sua tão querida mãe.

Eu não sei o que houve, mas as palavras de Françoais causaram um efeito estranho. Era um aniversário, estávamos todos, se não felizes, cheios de energia. A energia, contudo, parece que se evaporou, E em silêncio, sentamos para comer o bolo de morango.

Pierre, como sempre inquieto, que tentou alegrar o clima:

- E aí, Jean, como se senta aos doze anos?

E todos olharam para Jean, não somente porque era aniversário dele, mas porque agora ele era o responsável por, pelo menos naquele instante mínimo que iria durar o discurso dele esperado, deveria sustentar o peso daquele clima desagradável que ninguém compreendia bem, mas que todos sentíamos como se fosse um vento gelado. 

Ele olhou vagamente para um lado, parecia envergonhado. Mastigou um pedacinho de bolo. Olhou de relance para papai, e depois desviou os olhos para Pierre, não para seu rosto, mas para seu peito ou qualquer lugar em que pudesse não olhá-lo nos olhos:

- Não mudou muita coisa.

Depois, papai arranhou a garganta e ficou falando sobre como foram seus doze anos, que naquela época estava iniciando seu trabalho como aprendiz em certa companhia de advogado, e que no entanto seu enorme talento muito rapidamente havia feito que conseguisse um posto no tribunal de Rennes. Depois, passou ao relato de como era viver naquela cidade, longe de sua família e que não conhecia ninguém, mas que era obrigado estar por conta do trabalho.

- Saía de tocha na mão, sozinho, pelo campo aberto. Naquele tempo de Rennes, existia muito menos prédios. Podia-se ficar sozinho, longe de tanta gente. Gostava de vez em quando de caminhar pelos campos.

- Conte-nos da vez que encontrou aquele animal estranho, amor, disse Françoais.

- Bom, eu estava no meio da madrugada, nem tão longe de casa, apenas um ou dois paus. Sabem como são escuras as noites de hoje? Acreditem, há trinta anos atrás era ainda mais escura as asas das graúnas. Os morcegos eram da cor do céu. Não havia nada fora arbustos, sombras negras que a imaginação transfigurava em monstros. Em certos pontos, havia algumas árvores, vegetações mais elevadas, mas em geral não se encontrava nada de interessante, que valesse a observação.

- Não sei o que você fazia no meio do nada a essa hora, papai, eu disse, com minha voz de bebê.

- Não sei René. Talvez Fugere urbam.

- Quê?, eu disse sem entender

- Fugir da vila. Ir para um lugar em que pudesse ficar sozinho comigo mesmo. 

- Por que, papai?, perguntou agora Jeanne.

- Vocês fazem muitas perguntas, disse papai, sorrindo, enquanto indicava, com gestos irritadiços do indicador, que desejava mais um pedaço do bolo de morango.

- Está mesmo uma delícia, disse Françoais enquanto a criada colocava mais uma fatia no prato de papai.

Com toda candura do mundo, ela então virou para Jean e perguntou:

- O que o aniversariante achou do bolo?

Jean ficou vermelho, virou a cara e começou a nervosamente comer sua fatia de bolo. Constrangida, Françoais e toda a mesa passaram a fazer o mesmo. 

Pierre, novamente, quebrou o gelo, e disse:

- E o bicho esquisito, papai?

- Ah... Provavelmente era só um lobo, mas o que me impressionou era seu tamanho. 

Terminou sua fatia, então largou os talheres no prato de porcenala, o que fez um barulho estrondoso. Todos em silêncio. Meu pai levanta, olha para cada filho na mesa, e encarando o lustre, disse o seguinte:

- Era um lobo maior que um homem.

Indicou para a criada recolher seu prato e saiu, imagino, para seu cômodo particular.

Na mesa, Pierre perguntou, gentil, para Jeanne:

- E você, irmãzinha, tem dormido melhor?

Ela fecha a cara.

- Fiz xixi na cama de novo.

O irmão dissimulou surpresa. Era normal que vez ou outra Jeanne mijasse na cama.

- Sério?, Pierre perguntou, fazendo-se incrédulo.

- Sim..., e Jeanne ficou em silêncio, o garfo e faca em cada mão, mas imóvel.

Silêncio novamente, Françoais, quando terminou seu bolo, se levantou. A criada prontamente tirou seus pratos e talheres. 

Todos nós olhamos para Pierre, como se dele esperássemos alguma coisa de sua parte. Ele deu a última garfada, limpou a boca com o lenço e se retirou, a pretexto de estudos. 

Ficaram só as crianças na mesa.

- Mijona, Jean disse para Jeanne.

- Pior você que é burro, respondeu ela, mas em um tom de voz que sabíamos todos que estava derrotada.

- Não vai falar mais de seus pesadelos?, falou Jean, em tom maldoso.

- Eu não tenho mais pesadelos!, e ao falar isso sua voz se elevou. 

- Não foi isso que ela me contou outra noite, ele disse, virado para mim.

- Cala a boca, por favor..., Jeanne suplicou, escondendo o rosto nas mãos.

- "Tenho medo de meus pesadelos, tenho medo de meus pesadelos", diz Jean, com falsete, zombando de Jean. Escute só o que ela me contou, continua ele, olhando para mim. Um homem velho, de bigode, chegou e perguntou se ela queria uma bonequinha. Ela disse que sim. Aí ele foi e levou a bonequinha mais bonita de todas pra ela. 

- Para de contar pro René..., e com os olhos cheio de lágrimas, saiu correndo para nosso quarto.

- Mas disse que só daria se ela fizesse xixi na frente dele, completou, sem se importar com a reação de Joanne.

Comi mais um pedaço somente para demorar mais na mesa de jantar. Sabia que Joanne estaria chorando em sua cama. Queria deixá-la chorar em privacidade. 

Jean também continuou comendo, normalmente, pelo que pareceu,

Na aula, o professor parou de falar por um momento. A sala inteira ficou em silêncio por mais de dois minutos. Aquela súbita paz dos sentidos fez bem a René Descartes, que por algum motivo, conseguiu retirar-se de seus pensamentos e fazer-se presente, no espaço escuro daquela classe.

sábado, 29 de abril de 2023

A HISTÓRIA VERDADEIRA DE RENÉ DESCARTES. IIII. AMSTERDAM, 1636.

Não tenho tantas lembranças de mamãe. Morreu quando eu tinha dois anos de idade. Na verdade, não sei bem do que lembro, o que foi me contado ou o que eu mesmo, ao longo dos anos, passei a inventar.

Uma coisa pelo menos é certa: Seu nome era Joanne. O nome do meu irmão do meio, Jean, foi escolhido em sua homenagem. 

A memória da minha infância não é clara, mas lembro bem de quando papai trouxe uma torta de morangos para o aniversário de doze anos do Jean. Uma torta deliciosa, eu não havia comido nada parecido. A sensação daquela torta em meu paladar era mais deleitosa do que o torpor inconfundível de ter uma boa ideia correndo pelos meus nervos... Se fosse possível reter a memória de nossos sentidos, seria para retomar ao corpo de agora o gosto daquela torta de morango... 

Papai botou a torta em cima da mesa, e eu me aproximei que nem esses cachorrinhos, que cercam o dono ansioso pela comida. Estávamos presentes, além do homenageado, Jean, é evidente: eu, papai, Pierre, Jeanne...

Precisarei explicar este problema, para que meu raciocínio seja acompanhado com rigor.

Houveram três Jeannes em minha família. 

A primeira era minha bisavó, a inesquecível Madame de Pompadour, a quem certas pessoas atribuem má-fama. Foi só na escola que descobri isso. Os meninos me contaram que minha bisavó fora uma mulher devassa, que fora amante de muitos homens. Contaram detalhes que na época não entendi por conta da minha inocência. Fui uma criança lenta, no que tange à iniciação no mundo dos homens... Não me refiro nem aos atos, às ações propriamente ditas, mas simplesmente era lento meu entendimento sobre as perversões que desde cedo as crianças compreendem que os adultos fazem, e que passam muito rapidamente a comunicar entre si... Lembro quando me deparei com o termo Cunnilingus facere, talvez nas páginas do Satyricon, de Petrônio, e evidente que não poderia perguntar ao professor de latim seu significado exato...  Sabia que Cunnilingus facere era referente a algum ato indecoroso, mas me faltava melhor entendimento sobre aquelas palavras...

Tinha um aluno, um pouco mais velho, e o que lhe faltava à inteligência - seu nome era Pierre - lhe fora de outra maneiras recompensado. Pierre conhecia os caminhos para todos os lupanares, e sabia de memória os versos de Ovídio. Também ele próprio compunha os seus, e de boca em boca fazia espalhar, pelos alunos do colégio - até mesmo entre os menores, de dez, nove anos - uma profusão de obscenidades que, juro, Helena, minha mão quase treme só de lembrar... Como poderia uma criança pensar em tais palavras - e mais ainda: adorná-las com rimas, colocá-las dentro de um compasso, de forma a quase deixá-las - não belas, atrocidades como aquelas jamais poderiam ser consideradas belas, é evidente - mas os ornamentos eram capazes de fazer até seus monstros verbais passarem por coisa memorável...

Foi este Pierre que me passou o Satyricon. Não era nem mesmo um livro, era um pergaminho, copiado a mão, cumprido e amassado, com certeza já muito manuseado... Talvez fosse apócrifo, ou tivesse trechos inventados, eu não sei, nunca me preocupei em consultar novamente e comparar as cenas que vi, quando menino, com as que veria agora, com a experiência de homem já adulto...

Pierre cobrava um módico preço para quem quisesse ler aqueles trechos... 

Creio não ter mencionado o detalhe, mas no pergaminho só estava copiado aqueles trechos mais baixos, mais obscenos, que a mente de Petrônio -  uma mente doentia, agora cogito... Talvez os médicos-cirurgiões, com suas inovações, os recentes progressos nos métodos e nas ciências... Imagine se fosse possível, Helena, verificar no cérebro o dano causado pelos costumes, pelas mentiras, pelas coisas malignas que infestam nosso mundo... Se daqui a cem ou cento e cinquenta anos tivessem a oportunidade de examinar o cérebro de Petrônio, poderiam verificar os mais variados indícios de pensamentos falsos e perversos... Sei que falo como um louco, mas se a luneta nos permitiu enxergar as formas das estrelas, calcular com precisão o seu movimento, por que não cogitar uma tecnologia que faça o mesmo com os nossos pensamentos...? Desculpe o longo parêntesis, meu amor, voltarei ao relato principal -. 

Falava sobre aquilo que a mente suja de Petrônio foi capaz de pensar, e não só de pensar, mas de por em palavras na superfície de um papel. Foram palavras pensadas por um romano, há cerca de mil e seiscentos anos atrás, que passavam de mão em mão, de menino para menino, e assim muitos eram iniciados nas coisas do mundo...

Antes os meninos já trocavam as palavras entre si, mas creio que não sabiam muito bem ao que aludiam. Tinham ciência da existência do pecado, eram filhos legítimos da conspiração de Adão e Eva, mas não compreendiam ao que se referiam... Ao homem cabe antes a imitação do que a compreensão, e por esta coisa mínima talvez podemos separar os homens ordinários dos filósofos legítimos... Quando pararmos de aos demais imitarmos, quando pensarmos com nossa cabeça o nosso próprio pensamento, veremos tudo de modo tão claro. Os costumes, repletos de vícios, são como sujeira que se acumula e embaça as lentes dos óculos. Quando passarmos da simples imitação para a reflexão verdadeira - e isto não é simples, Helena, exige toda uma vida de preparação, verdadeira ginástica mental para nos separarmos das falsas conclusões que herdamos dos outros - compreenderemos a razão da natureza, e não a razão suja dos costumes. Poderíamos assim, quem sabe, passar a reorganizar a sociedade, não seguindo os vícios que são impostos desde cedo pelo simples hábito, por costume. 

A maldição de Adão e Eva é transmitida pelos nossos pais, e continua a ser cultivada nos colégios em que nos enfiam com a esperança de que alcancemos alguma clareza ou educação sobre a natureza, seja física ou moral. E em que lugar de nossa sociedade não está marcado pelo lodaçal imundo do vício e das mentiras? (Pessoalmente, revelarei o que se passou ontem, na corte do próprio príncipe...) 

Em algum momento, não lembro exatamente quando, passei a compreender o que os adultos faziam quando às escondidas. Os sons que saíam do quarto em que dormiam papai e Françoise. 

Depois que mamãe morreu, papai se casou com Françoise. Não era uma mulher ruim. Tenho algumas lembranças dela. 

Pode parecer despropositado este longo arremedo de lembranças, mas são parte de meu projeto pessoal, de repassar para mim todas as memórias, tudo que ainda está preso em minha alma, para assim compreender melhor como vim a conhecer o que conheço, e depois, como um agricultor que separa o joio do trigo, separar os erros dos acertos. Desculpe empregar seus olhos como cobaia, Helena, meu amor, e fazer com que leia esse fluxo tão erráticos de pensamentos. Trata-se ainda não da verdade, porque a verdade deve ser logicamente encadeada. Aqui não redijo a verdade, e se sobre o papel verificará somente um bando de impressões desordenadas, é porque assim também nos ocorre na experiência. Portanto, se não redijo a verdade, eu pelo menos a ensaio, não no papel, mas dentro de meu espírito. Como uma bailarina, que precisa treinar um milhão de vezes o mesmo movimento até poder realizar com perfeição uma peça por inteiro, estou aqui, nesta carta, como em quase todos momentos em que vivo - sou um filósofo, é para isso que existo, é para isso que consagraram meu corpo - realizando o movimento da razão, aprimorando seus músculos, preparando-a para o verdadeiro salto.

Deixarei portanto que por agora as memórias venham, e até mesmo me possuam, na exata e desordenada maneira com que me ocorrem, pois até o mais mísero acontecimento, talvez dele possa extrair exemplos, como fazemos com as história dos antigos, e a partir de nossa miséria particular, quem sabe, encontrar algo de útil, uma passagem estreita, talvez menor do que um buraco de fechadura, para o caminho da verdade.

 Aquele dia, em que examinei o pergaminho de Pierre... Não posso mentir, fiquei impressionado com a vivacidade das cenas... Era quase como se eu tivesse ali, diante dos olhos, aquelas coisas que os meninos falavam entre si, dando risadas, e então, só então, tive verdadeira compreensão daquelas palavras que - admito, pois nunca fui e não tenho pretensão de ser nenhum santo - até mesmo eu dizia, por imitação, sem saber bem o que dizia, mas que causava nos demais alguma comoção, risada, zombaria, piadas, estas coisas que para a meninice são tudo que existe. 

Li os supostos trechos do Satyricon durante a madrugada... Estas coisas não sei porque, mas estão claras em minha memória. Depois de duas horas de sono agitado, acordei para atender a aula. Um vento frio sacudia as folhas da montanha que ficava ao fundo do colégio. Ouvi um grito de pássaro, e quando olhei vi um bando de albatrozes sentadas em uma fachada de pedra mais distante... Como você pode imaginar, La Haye não é próximo do mar, e até hoje não sei explicar o branco daqueles albatrozes de fronte ao arvoredo da montanha, as flores azuladas e vermelhas das trepadeiras contrastando aos rochedos negros.

Ainda pensava nos trechos da obscena novela de Petrônio quando começou a aula. Não lembro de nada que ocorreu. Só pensava, afinal, em Satyricon. Como pode ver, tens provas do poder vil das cenas mais vis adornadas de jeito razoavelmente elegante, capaz de estimular as paixões de um jovem, que antes de mais nada, quer viver os gozos da juventude. E com o progresso dos anos e de meu conhecimento, meu amor, passei a dar razão às palavras de Céfalo, aquelas que iniciam A república com elogio à velhice e ao celibato. Melhor, portanto, que continuemos nosso amor assim, pela distância segura do papel, pois as necessidades do corpo - que sim, ainda sinto - não quero que impeçam a razão de meu pensamento.

Sei que pediu para que falasse de minha família, e acabei não falando muito sobre. Agora meu pulso já dói de tamanho exercício feito com a pena. Sua curiosidade terá que esperar até a próxima carta para ser saciada. 

Te amo. Sou teu por inteiro, extensão e pensamento.

René Descartes. 

quinta-feira, 27 de abril de 2023

trechos mortos 2

 

e retiram um pouco do que ocorre em privado para fazer com que apareçam em público, em páginas de livros e jornais. Um afeto que, como já me referi por meio do texto, não se esgota na pessoa, mas em tudo que lhe cerca, que vista desde esta perspectiva personalista, parece fazer de tudo que lhe cerca forma de extensão de sua alma. É impressionante, neste artigo de Oliveira Lima, a sessão entra a página 75 e 80 em que Gilberto dedica-se, com muita atenção, à descrição da casa de Oliveira Lima. Meu desejo seria lê-la por inteiro, para indicar a monotonia própria destes gêneros de catálogos, mas me limitarei a me referir que enumera cada retrato e o respectivo retratado, cada paisagem e o respectivo lugar, os bustos e seus representados, os diferentes objetos e sua ressonância histórica, bandeiras, retalhos de tetos de igreja, mapas, autógrafos de grandes homens, lanças, e também - a rúbrica é do descritor - “as fotografias aqui são mais íntimas”, os retratos de amigos e familiares, 

O perfil que faz de Oliveira Lima - a quem trata com a reverência de um mestre, poderia ser melhor esmiuçada, já que Gilberto também parece dele ter herdado considerável capital simbólico, mas precisarei indicar por aqui, indicando somente que o perfil de Oliveira Lima, trata-se da monumentalização de um homem de letras, da produção letrada no Brasil, como já sugeriu Ângela de Castro Gomes em importante estudo, mas que além de ser uma consagração por meio do olhar subjetivo, da intimidade, é também consagração da amizade, da relação que estes dois homens de letras tiveram. E que não somente o texto torna-se extensão e memória da personalidade homenageada, mas todo o mundo ao seu redor, que Freyre submete a verdadeiro processo de museificação por meio da escritura.

Gostaria de terminar esta fala esboçando algumas conclusões, que mais que concluir, abrem alguns caminhos de continuidades para novas reflexões.

Se formos nos referir ao conceito de cordialidade, que remonta a obra de Sérgio Buarque, facilmente somos devolvidos à escritura freyreana. No tópico relativo à importância do ensino superior, por exemplo, ambas convergem em situar as faculdades como instâncias de desterritorialização das relações familiares típicas. 

Em Casa-Grande & Senzala, a seguinte passagem me parece exemplar, por colocar em choque os antigos valores patriarcais com os novos desejos adquiridos pelos rapazes, a partir do contato com as universidades:


Pobres “meninos travessos” do tempo dos filhos chamarem ao pai de “Senhor Pai”, era deles que o padre Gama sentia falta, escandalizado com os meninos e os rapazes da nova geração: desavergonhados que conheciam melhor as quadrilhas que o padre-nosso; viciados no charuto Havana e na cachucha; leitores de ”pestilenciaes Novelas” e de “Poesias eróticas”, em vez dos “Evangelhos”, das “Epistolas de São Paulo”, e para “para recreio, os Contos Moraes de Marmontel, o virtuoso Telemaco, a Moral em Acção, a Escola de Bons Costumes, a Mestra Bona”, que eram os livros indicados pelo padre para a leitura da mocidade. Rapazes falando alto e dando opiniões sobre todas as coisas na presença dos mais velhos, em vez de se comportarem com respeito de outrora, pelos Pais, pelos Avós, pelos Tios. Nas festas de família, sem que ninguém lhes perguntasse, já os mais salientes davam “o seu voto magistral a respeito da bondade, ou imperfeição do chá”, “applaudindo este pão de ló, reprovando aquele sequilho”; durante a Missa, namoravam o tempo inteiro, dando as costas ao Santíssimo Sacramento para olharem as meninas de frente, “rindo-se para esta, contemplando aquella, galanteando auquel’outra… torcendo o bigóde… penteando com os dedos o furibundo passa piolho”; e quase já não tomavam a benção aos pais!


E em Raízes do Brasil, como se trata-se de uma síntese, lemos o seguinte:


[Ao ingressar nas universidades, os estudantes deveriam] ajustar-se, nesses casos, a novas situações e a novas relações sociais que importavam na necessidade de uma revisão, por vezes radical, dos interesses, atividades, valores, sentimentos, atitudes e crenças adquiridos no convívio da família.  


Em Casa-Grande & Senzala, os meios de produção - o latifúndio, o engenho, a mão-de-obra escrava - possui estreita relação com a produção de uma moral, de uma cultura, ou ainda, para nos situarmos na linguagem freudiana à respeito do aspecto familiar, poderíamos nos referir à produção do desejo. Se as transformações associadas ao fim de um regime patriarcal e gradual inserção do Brasil em uma lógica capitalista global deve ser pensado não só economicamente, mas também a partir de uma série de transformações nesses diversos níveis - culturais, morais, desejantes, etc - esta transformação, além de gradual, deveria levar em conta, para empregarmos uma palavra-chave na obra de Gilberto, uma espécie de tentativa de acomodação dos antigos valores dentro dos novos meios a eles impostos.

Mesmo com a disseminação das práticas letras e o crescente projeto de escrituração do mundo a ela associado, parece-me prudente pensarmos nos usos que essas escrituras mantinham não apenas em nível ideológico - como expressão de uma aristocracia decadente, por exemplo - mas dentro de práticas concretas e sociais a que se destinam estas escrituras, em seu momento de fabricação e uso. A elaboração de textos como os de gênero retrato ou perfil, por exemplo, para além de tratar-se de um projeto de monumentalizar ideologicamente valores das classes dominantes - ou antigas classes dominantes, agora detentoras mais de poderio simbólico do que dos meios de produção propriamente ditos - associam-se também a um outro modo de vida, referem-se a uma outra cultura. 

No caso, pelo menos em relação à geração de Freyre e outros, me parece necessário manter em vista que a produção e circulação do saber passa de maneira estreita pelas relações interpessoais que compõem o restrito mundo de tais intelectuais - não apenas pela questão referida pela sociologia como “herança de capital simbólico e cultural” que as aproximações intelectuais implicam, mas também reconhecer que uma série de textos, primeiro, estão escritos com propósitos afetivos, como se fosse, no limite, extensão da relação de amizade - ou inimizade - que existe entre as partes, mas também, e isso também considero importante, não fazer disso - o afeto, a paixão - espécie de impeditivo para o estudo destes documentos desde a perspectiva de uma história do conhecimento.

Há muito o que se pensar à respeito do aspecto erótico do conhecimento. A história do saber, afinal, é tipicamente representada a partir de uma lógica fria, como se os conceitos, as formas, as idéias, as teorias, as palavras, pensem no nome que quiserem, como se tudo circulasse simplesmente a partir do branco celibatário do papel. 

A tagarelice ruidosa dos sentidos substituída pela gossip privada da consciência, eis o sentido da história?

Pensemos, talvez, em fazer o movimento contrário: se a cordialidade corresponde ao desejo pelo outro, pelnestas relações a-familiares, que encontrasse o desejo onde parece não haver nenhum: que acrescentasse ao idílico céu platônico a sujeira da lama, e fizesse a produção do conhecimento participar da produção dos excrementos: do corpo, do dinheiro, do amor: enfim, a materialidade.



de u - que consiste em desenvolver a escritura fundada na observação - da natureza, dos costumes, etc - na direção daquilo que se caracteriza como “menor”, “sem importância”: como a mobília, a indumentária, a jardinagem, os livros da moda, etc. É, portanto, uma espécie de fusão entre intimidade e a observação, entre o afeto e o objeto, que emprega-se - especialmente por meio de retratos, perfis e testemunhos, gêneros que Gilberto foi pródigo redator - para escriturar, a partir da visão íntima, pessoal, enfim, para empregarmos o termo caro à nossa historiografia, uma escrituração feita a partir do lugar da cordialidade



  1. O DIÁRIO DE VIAGENS E A OBJETIVIDADE


  Nos programas imaginados no intuito de produzir uma literatura autenticamente brasileira, muito importante foi, pelo menos de início, a atenção dada à produção daquilo que a retórica clássica se refere como enargeia, palavra que se referia à clareza produzidas por técnicas descritivas, que pudessem transpor em palavras aquilo que os sentidos percebia.

Poderíamos rastrear a origem desta escritura já nas primeiras cartas e relatos de viagens, que para descrever o novo mundo, desenvolveram tecnologias escriturárias capazes de dar conta da diversidade e estranheza que por aqui encontraram. Dentro do programa romântico, por exemplo, é notável o desenvolvimento e cultivo de uma tecnologia escritural destinada à pintura - emprego o termo pintura pelo claro privilégio da representação do olhar perante os demais sentidos  - da natureza tropical. 

Me refiro ao cultivo de uma tecnologia escritural pictórica pois, embora a partir desta matriz construam-se diferenças línguas, diferentes sistemas de significantes, mantêm-se em nossa literatura em prosa, pelo menos até o século XX, verdadeira tradição pictórica. O que se chama de realismo ou naturalismo, por mais que se nomeie a partir da diferença em relação à literatura romântica, continuou a desenvolver esta escritura pictórica, muito embora trata-se de fazê-la em outra língua. Não é possível outra coisa senão somente executar um esboço do que me refiro, mas se o desenvolvimento do realismo e naturalismo se caracteriza especialmente pela representação do feio ou grotesco - e para falar como Auerbach, pelo fim da adequação clássica entre tema e estilo - mesmo que pelo desenvolvimento de novas línguas, irá se manter o interesse descritivo, que por nós até hoje é reconhecido pelo nome de cor local.

A cor local, muitas vezes referida pejorativamente, como espécie de ideologia literária, contudo pode ser pensada como parte de uma tecnologia escritural, cultivada secularmente dentro de nossa tradição de escritores, e que em sua variedade, implica no desenvolvimento de línguas que se constituem a partir de classificações de entidades concretas - isto é, que existem no espaço -. 

Me refiro a entidades concretas pois é meu intuito distinguir, pelo menos por agora, em caráter experimental, uma escritura da alma, isto é, línguas capazes de tratar os movimentos do pensamento, das paixões, realidades imperceptíveis para os sentidos, uma escritura psicológica, de uma outra, que desenvolve-se a partir da produção da espacialidade, e mais do que espaço, que produzem uma espécie de efeito de presença física. 

Ao fim e ao cabo, não faço outra distinção que não a esboçada no princípio do ensaio entre o diário íntimo e o diário de viagens. E como disse, ambos são importantes dentro da obra de Freyre, que se estava na “vida” pulsante das escrituras da alma, era também - isso é incontestável - um mestre na arte do olhar. 

Se afirmei existirem diferentes línguas, diferentes sistemas de significantes que buscam grafar a observação, é porque poderíamos começar a pensar em uma espécie de história da escritura do olhar. Mas o que me interessa perguntar agora é o seguinte: Como afinal olhou Gilberto Freyre?



Se nomeado assim, no singular, é para em seguida querer decompô-la em pelo menos duas matrizes distintas: uma que consigo rastrear a partir do diário íntimo, e que o próprio autor associa a uma matriz de língua inglesa e a uma cultura protestante. A outra, escritura, disseminada desde uma matriz lusófona, estaria associada ao diário de viagens. 

Assim, estaria construindo, a partir da escritura autobiográfica do diário, dois registros distintos, duas linguagens que buscam dar conta de diferentes objetos: o diário íntimo, cujos objetos de representação básicos poderíamos resumir como (1) a vida cotidiana, (2) a subjetividade do autor e (3) portanto escritura das ideias e paixões que atravessem essa subjetividade.

Em contraste, estipulo uma própria do diário de viagens, interessada sobretudo narepresentação do (1) pitoresco, e com isto me refiro ao extraordinário, o exótico, aquilo que destoa da vida doméstica, (2) do mundo exterior, daquilo que se percebe como merecedor de atenção dos sentidos e (3) se o diário íntimo repousa sobre os movimentos subjetivos, de uma consciência ou inconsciência, o diário de viagens, ao contrário, funda-se na produção da objetividade, de línguas capazes de distingui-los com clareza.

Evidente que trato de tipos ideais ou algo semelhante, e que, na realidade do texto - inclusive no do próprio Gilberto - o registro se torna muito mais polifônico. Os dois diários que Gilberto escreveu - Aventura e Rotina, de 1953, e Tempo morto e outros tempos, de 1975 -, ocorre evidente mistura destes dois “gêneros”, mas me parece razoável, especialmente para propósitos metodológicos, esboçar esta distinção entre diário de viagem, calcado na observação e na escrituração dos sentidos, e do diário íntimo, em que se escritura a subjetividade do autor.

Tratarei de cada um deles com alguma atenção, sem esquecer que o propósito final deste ensaio não é examinar esta dupla escritura que atravessa a obra de Freyre, mas sim esboçar uma espécie de sociologia, em que tentarei demonstrar como estas duas escrituras, embora concorrentes,


quarta-feira, 26 de abril de 2023

SÉRGIO BUARQUE: notas de leitura sobre o homem cordial

Sérgio Buarque, O homem cordial. Companhia das Letras, 2012.


O HOMEM CORDIAL.

Trecho extraído de Raízes do Brasil (ed. original 1936). São Paulo, Companhia das Letras, 1995.


"Nas velhas corporações o mestre e seus aprendizes e jornaleiros formavam como uma só família, cujos membros se sujeitam a uma hierarquia natural, mas que partilham das mesmas privações e confortos. Foi o moderno sistema industrial que, separando os empregadores e empregados nos processos de manufatuta e diferenciando cada vez mais suas funções, suprimiu a atmosfera de intimidade que reinava entre uns e outros e estimulou os antagonismos de classe. O novo regime tornava mais fácil, além disso, ao capitalista explorar o trabalho de seus empregados, a troco de salários ínfimos".

[estamos nos rastros da escritura freyreana: a intimidade da família patriarcal desterritorializada a partir da segunda escravidão, das necessidades do novo arranjo capitalista]

Para o empregador moderno — assinala um sociólogo norte-americano — o empregado transforma-se em um simples número: a relação humana desapareceu.  

p. 46. 

abolição da velha ordem familiar por outra, em que as instituições e as relações sociais, fundadas em princípios abstratos, tendem a substituir-se aos laços de afeto e de sangue. [...] essas mesmas tendem a desaparecer ante as exigências imperativas das novas condições de vida.

p. 47. 

E se bem considerarmos as teorias modernas, veremos que elas tendem, cada vez mais, a separar o indivíduo da comunidade doméstica, a libertá-lo, por assim dizer, das “virtudes” familiares.

p. 47 - 48.

Com efeito, onde quer que prospere e assente em bases muito sólidas a ideia de família — e principalmente onde predomina a família de tipo patriarcal — tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições à formação e evolução da sociedade segundo conceitos atuais. A crise de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social é, assim, especialmente sensível no nosso tempo devido ao decisivo triunfo de certas virtudes antifamiliares por excelência, como o são, sem dúvida, aquelas que repousam no espírito de iniciativa pessoal e na concorrência entre os cidadãos.

p. 48 - 49.

limitações que os vínculos familiares demasiado estreitos, e não raro opressivos, podem impor à vida ulterior dos indivíduos. 

 meios de se corrigirem os inconvenientes que muitas vezes acarretam certos padrões de conduta impostos desde cedo pelo círculo doméstico. 

E não haveria grande exagero em dizer-se que, se os estabelecimentos de ensino superior, sobretudo os cursos jurídicos, fundados desde 1827 em São Paulo e Olinda, contribuíram largamente para a formação de homens públicos capazes, devemo-lo às possibilidades que, com isso, adquiriam numerosos adolescentes arrancados aos seus meios provinciais e rurais de “viver por si”, libertando-se progressivamente dos velhos laços caseiros, quase tanto como aos conhecimentos que ministravam as faculdades.

[Ao ingressar nas universidades, os estudantes deveriam] ajustar-se, nesses casos, a novas situações e a novas relações sociais que importavam na necessidade de uma revisão, por vezes radical, dos interesses, atividades, valores, sentimentos, atitudes e crenças adquiridos no convívio da família.  

“filhos aterrados” 

p. 49

Nem sempre, é certo, as novas experiências bastavam para apagar neles o vinco doméstico, a mentalidade criada ao contato de um meio patriarcal, tão oposto às exigências de uma sociedade de homens livres e de inclinação cada vez mais igualitária. Por isso mesmo Joaquim Nabuco pôde dizer que, “em nossa política e em nossa sociedade [...), são os órfãos, os abandonados, que vencem a luta, sobem e governam”.?

p. 49 - 50.

[filhos aterrados X órfãos, abandonados]

Aos que, com razão de seu ponto de vista, condenam por motivos parecidos os âmbitos familiares excessivamente estreitos e exigentes, isto é, aos que os condenam por circunscreverem demasiado os horizontes da criança . dentro da paisagem doméstica, pode ser respondido que, em rigor, só hoje tais ambientes chegam a constituir, muitas vezes, verdadeiras escolas de inadaptados e até de psicopatas. Em outras épocas, tudo contribuía para a maior harmonia e maior coincidência entre as virtudes que se formam e se exigem no recesso do lar e as que asseguram a prosperidade social e a ordem entre os cidadãos. 

[fim da sociedade patriarcal e início da sociedade liberal - falo em sociedade liberal pois desconfio que em Raízes do Brasil, isto que se refere como "sociedade moderna", em contraste com o "patriarcalismo arcaico", não se trata de uma passagem para uma sociedade de classes, conforme a tradição marxista irá desenvolver, mas sim, pelo que parece, de uma sociedade de livre concorrência]

p, 50

Não está muito distante o tempo em que o dr. Johnson fazia ante o seu biógrafo a apologia crua dos castigos corporais para os educandos e recomendava a vara para “o terror geral de todos”. Parecia-lhe preferível esse recurso a que se dissesse, por exemplo, ao aluno: “Se fizeres isto ou aquilo, serás mais estimado do que teu irmão ou tua irmã”. Porque, segundo dizia a Boswell, a vara tem um efeito que termina em si, ao passo que se forem incentivadas as emulações e as comparações de superioridade, lançar-se-ão, com isso, as bases de um mal permanente, fazendo com que irmãos e irmãs se detestem uns aos outros. 

[transcrevo este trecho pelo pitoresco, principalmente, mas também é sociologicamente sugestivo, se pensarmos que, dentro de uma sociedade em que os meios de produção estão diretamente relacionado à família, à descendência patriarcal, édipo deve ser preservado de todas as maneiras, isto é, os conflitos entre familiares são extremamente trágicos pois desarranjam todo um sistema social - ou, como o próprio S. B. refere-se no parágrafo seguinte: "ia acarretar um desequilíbrio social"]

p. 50 - 51

[funcionalismo patrimonial x funcionalismo burocrático - confiança/afeto - competência/razão]

A escolha dos homens que irão exercer funções públicas [no funcionalismo patrimonial] faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático. O funcionalismo patrimonial pode, com a progressiva divisão das funções e com a racionalização, adquirir traços burocráticos. Mas em sua essência ele é tanto mais diferente do burocrático quanto mais caracterizados estejam os dois tipos.

p. 51

[No Brasil] foi sem dúvida o da família  aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos dá supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar — a esfera, por excelência, dos chamados “contatos primários”, dos laços de sangue e de coração [a intimidade] — está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas.  

[estamos atravessando a escritura freyreana, mas tornando negativo aquilo que em freyre é positivo - recomendo (a mim mesmo) a leitura de ensaios que saíram em Tentativas de mitologia, "Cultura e Política", em que se refere a Oliveira Viana e sua justificativa do fascismo enquanto mais adequado à cultura brasileira; e também "Sociedade Patriarcal", em que irá caracterizar a nostalgia patriarcal de Freyre - que os marxistas atribuem a sua origem de classe - e questionar a cientificidade de seu trabalho]

p. 52

Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “homem cordial” é a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. 

[as características que hoje são as mais valorizada em trabalhadores de serviço e atendimento ao público, diga-se de passagem]

p. 52

Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças.

[Sérgio Buarque: ANTI-BRASILEIRO!!!!!!! levem ele para a forca, contrariou o geist des volk, safado]

[polidez X cordialidade;  aparência X espontaneidade; protocolo X paixão] 

Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência — e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no “homem cordial”: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoções. 

padronização das formas exteriores da cordialidade

máscara 

[separação entre espaço público e espaço privado, entre eu público e eu privado]

[a vida moderna, das grandes cidades, exige ao indivíduo essa defesa epidérmica, psíquica, da polidez?]

[a cordialidade brasileira já teria se convertido em polidez?]

No “homem cordial”, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência.

Ela é antes um viver nos outros. 

[a necessidade do laço familiar; a necessidade de afeto, do viver no outro e pelo outro; a necessidade de comunidade X a vida independente e individual; a autonomia afetiva; a comunidade substituída pela burocracia, pela instituições]

p. 53

[cordialidade:] desejo de estabelecer intimidade

p. 54 

ética de fundo emotivo

para conquistar um freguês tinha necessidade de fazer dele um amigo.!

p. 55 

horror às distâncias que parece constituir, ao menos até agora, o traço mais específico do espírito brasileiro.

p. 56

A uma religiosidade de superfície, menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda verdadeira espiritualidade; transigente, por isso mesmo que pronta a acordos, ninguém pediria, certamente, que se elevasse a produzir qualquer moral social poderosa. Religiosidade que se perdia e se confundia num mundo sem forma e que, por isso mesmo, não tinha forças para lhe impor sua ordem. Assim, nenhuma elaboração política seria possível senão fora dela, fora de um culto que só apelava para os sentimentos e os sentidos e quase nunca para a razão e a vontade.

[dificuldade de "produzir qualquer moral social poderosa"; ver o histórico de edições de Raízes do Brasil; ver o já mencionado ensaio sobre Oliveira Viana]

pouca devoção dos brasileiros

p. 57

muito pouco se poderia esperar de uma devoção que, como essa, quer ser continuamente sazonada por condimentos fortes e que, para ferir as almas, há de ferir primeiramente os olhos e os ouvidos.

[razão X sentidos]

“Em meio do ruído e da mixórdia, da jovialidade e da ostentação que caracterizam todas essas celebrações gloriosas, pomposas, esplendorosas”, nota o pastor Kidder, “quem deseje encontrar, já não digo estímulo, mas ao menos lugar para um culto mais espiritual, precisará ser singularmente fervoroso.”

formas mais rigoristas de culto.

[influência do protestantismo; curiosamente, quando jovem, Freyre recebeu educação protestante, estudou em colégio inglês, mas segundo narra em seu diário de adolescência, quando nos Estados Unidos se desencantou com a fé protestante]

p. 58

Em particular a nossa aversão ao ritualismo é explicável, até certo ponto, nesta “terra remissa e algo melancólica”, de que falavam os primeiros observadores europeus, por isto que, no fundo, o ritualismo não nos é necessário. Normalmente nossa reação ao meio em que vivemos não é uma reação de defesa. A vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como peça consciente, no conjunto social. Ele é livre, pois, para se abandonar a todo o repertório de ideias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os frequentemente sem maiores dificuldades

[conclusão absolutamente freyreana, em consonância com a "plasticidade do caráter português"]


notas sobre a imaginação da historiografia

 A imaginação sobre a produção do conhecimento costuma ser repleta de imagens fria e positivistas: É Descartes sentado diante de sua lareira pensando até enfim compreender; é Newton distraído quando despenca uma maçã em sua cabeça e assim desvenda a lei da gravidade; é uma enorme rede de pesquisadores cujos pares imparcialmente revisam papers e livros e a partir deste acúmulo acéfalo enriquecem o patrimônio universal do saber. Ao mesmo tempo, é um tanto óbvio sinalizar que a produção do conhecimento ocorre dentro de um mundo social em que, das maneiras mais diversas, seus produtores são atravessados por afetos e desejos que pouco, imagina-se geralmente, tem a ver com o conhecimento produzido. Porque mesmo que se reconheça que a produção do saber é um fenômeno social, geralmente sua representação ocorresse em um espaço separado, em que o pensamento, por algum milagre, livra-se da lógica do desejo e consegue desenvolver-se celibatário: livre de paixões e afetos. “Como contar uma história?” Vez ou outra nos esquecemos, mas esta é uma das perguntas importantes para o trabalho dos historiadores. Nós, que pesquisamos a chamada “história dos intelectuais”, que nos debruçamos sobre os escritos de historiadores, artistas, filósofos, e toda essa gama de ofícios que, depois de chamados de autores, tornam-se proprietários de uma obra, e dos conceitos, teorias, poéticas e demais aspectos a ela associados. Comecei meus estudos pela literatura, e desde sempre houve a advertência para não tomarmos o literário como simples reflexo do social ou da personalidade; que também era necessário pensá-la como objeto autônomo, dentro de uma história própria, e Valery, em certa passagem que guardo na memória, ambicionou uma história da literatura capaz de prescindir de nomes, que fosse apenas a anônima história do espírito, das transformações sucessivas e autônomas da linguagem. As ciências sociais, contudo, geralmente nos derrubam deste céu estrelado em que as ideias narram-se sozinhas, como se não precisassem de corpos para existir. E então, a nós, filólogos e estetas, impõe o desafio de pensar a história do pensamento como outra coisa fora essa metamorfose da ideia, de forma em forma, até atingir a configuração presente. Dar as ideias um corpo e origem, contudo, muitas vezes não resolve o problema: porque sabemos que trata-se de uma história ocorrida geralmente nos deparamos com o problema da representação quando, a partir do campo que se referem como “história social”, nos censuram por muitas vezes escrever uma história filológica, em que as ideias e formas parecem correr e transformar-se livremente; ou, então, talvez risco pior, recair nas malhas da velha histoire événementielle, e narrar a história da arte ou do pensamento como se fosse a dos grandes nomes. Meu ensaio deseja abranger três assuntos diferentes, ao tocar no conceito de cordialidade: Primeiro, gostaria de demonstrar como a vida privada, as relações inter-pessoais dos intelectuais, e, portanto, a produção do conhecimento, era objeto de representação, e que existiam diversos gêneros foram empregados para a monumentalização daquilo que - a princípio - referia-se ao espaço privado da produção do saber, como o perfil, as memórias, o diário, as correspondência, etc. Segundo, a partir do exame de certos escritos de Gilberto Freyre, Hoje a produção do saber - refiro-me especialmente às universidades - é consideravelmente orientada por sua objetividade e profissionalização. As relações inter-pessoais que atravessam essa produção, embora todos saibamos existir, parece que foram, de certa forma, eclipsadas para dentro de uma zona de intimidade, que poderíamos referir simplesmente como um espaço privado. Penso nos historiadores do futuro, interessados em estudar, a partir desta perspectiva libidinal, Neste ensaio gostaria de fazer algumas reflexões a partir do conceito de cordialidade, não por meio de qualquer tentativa de definição ou mesmo qualquer fidelidade aos modos de uso com que foi historicamente empregado ao longo de nossa historiografia. Meu exame sobre a cordialidade deseja abranger dois aspectos distintos: o primeiro, situado, digamos, dentro de um campo de estudos que me é mais confortável, pois oriundo de um exame da escritura, em que busco identificar ao longo da história uma espécie de escrituração das paixões dentro do espaço que destina-se à produção do saber. Falando de forma direta, gostaria de mapear com Para quem não sabe, meu primeiro objeto de estudos era um daqueles classificados como “literário”. Antes de ser historiador da historiografia, portanto, fui historiador da literatura. Talvez por ter me formado dentro de uma tradição da história social, meus professores sempre tiveram o cuidado de acentuar a especificidade formal do objeto literário, sua autonomia em relação à sociedade ou psicologia a que tão vulgarmente muitos historiadores atribuíram origem. Ao mesmo tempo, contudo, sinalizaram que não poderíamos jamais perder de vista que a literatura era um fenômeno social e histórico, e cuja forma, embora pudesse ser autonomamente pensada, também deveria ser sócio-historicamente localizada. Era confuso dividir-se entre a autonomia da forma e sua determinação sócio-historica. A saída mais elegante para este problema encontrei em Bourdieu, que além de fazer da história literária uma disputa de diferentes antagonistas Confesso que, embora Bourdieu muitas vezes me satisfaça, nunca me satisfaz a solução apresentada, pelo menos no que tange à sua representação. E sem saber exatamente como, assim escrevi minha dissertação, cuja imprecisão formal só me permitiria tratá-la como um “ensaio”. Em certa altura, desisti de estudar literatura com o pretexto de escrevê-la. Seguia o exemplo de Ricardo Piglia, que recusou-se a cursar letras - cursou história - com o mesmo pretexto. Nos últimos anos, talvez por agora estar diretamente interessado não mais somente em compreender, mas em executar, muito tem me preocupado a dimensão da representação no trabalho historiográfico: como afinal contar uma história? Pois como historiador, sou antes de mais nada um gênero estranho de filólogo, cuja atenção se dirige à miudeza das palavras, e que por meio do convívio e leitura sistemática com o texto, busca nele descobrir línguas, padrões que me servem de indício e metodologia para pensar e trabalhar. A essa altura, contudo, a filologia, a história autônoma da escritura, me desinteressava, porque cada vez mais queria ver a língua produzida no mundo: eu precisava de espaços, de corpos, de movimento, de ação. E foi assim que voltei minha atenção ao tema deste ensaio, a cordialidade. Desconfio que são os nossos críticos que melhor nos entendem, mesmo que entendam tudo errado. Em meio ao labirinto de citações de José Guilherme Merquior, existe uma que sempre me impressinou pela mistura de acuidade e ingenuidade em que criticou um de meus críticos literários prediletos, Roland Barthes. O crítico brasileiro, sobre o francês, escreveu o seguinte: Barthes, pretextando que toda significação requer, para ser compreendida, a mediação da língua, sugere que a linguística atue como chave universal da semiologia - legitimando, com isso, a aplicação de conceitos elaborados para a análise dos signos linguísticos aos sintomas de outros complexos simbólicos, do tipo literatura (ou moda, etc). Merquior prescreve para Barthes um sintoma: “hipnotizado pelo pseudocódigo do texto”, e imagino que, em um dia que tivesse acordado de bom humor, Barthes até acolheria a doença, porque sabia bem que para ele, a linguística, a semiologia, o estruturalismo que lhe impunha a observar a moda, as paixões, enfim, o mundo, desde o grafismo da língua, era antes de mais nada um modo de existir: “a linguagem não serve apenas para comunicar; serve para existir, simplesmente”, disse em entrevista de 1979. Início por este caminho meu ensaio sobre o que chamarei de regime de cordialidade entre certos intelectuais brasileiros para descrever meu método de pesquisa, que antes de mais nada, consiste na análise e, principalmente, do convívio íntimo com os escritos. Close reading, eu poderia dizer, mas assim me aproximaria da tradição do New Criticism americano, que pouco li e pouco simpatizo. Encontro análogos em meu método de trabalho antes em escritores heterodoxos como Barthes, cujo interesse pelos escritos lhe fez reunir em um mesmo livro as análises do marquês libertino, Sade, o jesuíta Ignácio de Loyola e o revolucionário socialista Fourier. Meu trabalho é marcado por essa condição de não somente pensar, mas de existir pela língua: e meu sintoma, eu acato as palavras do doutor Merquior, é de um hipnotizado pelos limites que a posição de profissional da escritura me impôs à imaginação. Por isso, meu ensaio precisará começar deste lugar, pela palavra, pela escritura, pela língua. A questão da cordialidade, afinal, para mim, chegou por meio delas, não a partir de Gilberto Freyre - meu suposto objeto e tema desta conferência - mas um texto mais distante e diverso, que li durante viajava de ônibus para a Bahia - um escrito publicado em 1516, originalmente em latim, mas que evidentemente lia em português, em tradução pela primeira vez publicada em 1937, pelo misterioso Luíz de Andrade, cuja escassez e imprecisão de informações a seu respeito levanta a suspeita de ser na verdade - reproduzo a seguir informação retirada de um artigo de A. C. R. Ribeiro - “um pseudônimo de algum militante trotskista, como era o caso de "paulo m. oliveira" e de "blásio demétrio", respectivamente aristides lobo e fúlvio abramo, traduzindo clássicos na prisão para a editora”. Durante a leitura d’A utopia, impressionou-me logo de início, na breve narrativa em primeira pessoa que nos encaminha ao primeiro diálogo, a repetida escrituração da cordialidade entre as personagens: Primeiro que não há menção a um nome que não seja em seguida caracterizado - ou melhor, louvado - por suas virtudes. Como ilustração, lerei o parágrafo em que se descreve Pedro Gil, personagem cuja importância será a de introduzir Rafael Hitledeu a Thomas Morus: Durante a minha estadia nesta cidade conheci muita gente; mas nenhuma relação me foi mais agradável que a de Pedro Gil, antuerpiense de uma grande integridade [...] merece, realmente, uma das mais elevadas [posições]; já pelos seus conhecimentos, já por sua moralidade, pois a erudição que possui iguala a independência do caráter. Não há, portanto, nome próprio que não seja laureado de breve e genérica caracterização. De mesmo modo, não há ação que não seja acompanhada por agradecimentos que caracterizam sua enorme cortesia: Assim que Pedro acabou essa narrativa, agradeci-lhe o empenho e solicitude em me fazer desfrutar conversação com homem tão extraordinário; depois, abordei Rafael e, após as saudações e cortesias habituais num primeiro encontro, levei-o à minha casa com Pedro Gil. Aí, sentados no jardim, sobre um banco de relva, a conversa começou. Estes trechos são oriundos das primeiras páginas do livro, das cenas que nos introduzem ao que, de fato, será seu assunto: o primeiro discurso, em que se discute os vícios das sociedades de cortes; o segundo, em que se descreve a maravilhosa ilha de utopia. O primeiro, contudo, me interessa mais que o segundo, pois ali se demarca um contraste bastante evidente: entre o espaço público das cortes e o espaço privado do jardim. Se no jardim discute-se amistosamente, nas cortês, ao contrário, as paixões vis tomam conta, e a discussão, ao invés de buscar conhecimento, antes refere-se nas tentativas dos particulares de se elevarem perante os demais.

terça-feira, 25 de abril de 2023

MACÁRIO

Foi sobre ti, amigo Macário, que tantas vezes entreguei-me ao diabo.
Foi sobre ti, pobre livro, que tantas vezes alimentei o demônio do vício.

À noite, sob a vigília de teu olhar, quantas vezes não vi o sol raiar.
Sob tua capa alaranjada, um branco mais branco a alvorada.


Vamos, amigo Macário, por favor,
beije mais uma única vez ao enrolado
presidente George Washington,
viva comigo mais um pouquinho
a duração efêmera da eternidade.

Serei teu Dante. Serás meu Virgílio,
meu melhor amigo, Macário.
Só restou nós dois,
Vagando sem direção,
condenados ao inferno de mármore,
congelante, cujo ridículo portal,..
entrada risível, ó, natureza! tão banal...

Apenas beije de novo, mais uma última vez,
ao enrolado presidente George Washington,
Isso, Macário, isso! Ó, eternidade
composta por elementos químicos!

Sou novamente Dante! Tu és meu Virgílio!
E como chamaste, o portal infernal, Macário?

Dê-me aqui o guia de anatomia,
Ó, membrana mucosa nasal!

segunda-feira, 24 de abril de 2023

trechos mortos

 Dizem que o gol mais lindo do Pelé foi um que ele não fez. Até mesmo o melhor dos poetas possui limites: difícil definir aquele drible que Pelé deu em Mazurkiewicz se não como genial. Pelé, no entanto, chutou para fora. A entrada de Trasímaco, no primeiro livro d’A república, é análogo à guerra de classes para a história; ou, ainda, à genealogía que Nietzsche predica para a moral; e não importa realmente que Trasímaco no fim seja derrotado, A mera possibilidade de testemunhar a possibilidade do milagre é privilégio para poucos. Vislumbrar com os próprios olhos a possibilidade do impossível, é algo que comove, e que para sempre iremos guardar na memória. Assim como o gol que Pelé perdeu,  feito de o fato de Trasímaco quase calar a boca de Sócrates deveria ser monumentalidade como um dos grandes feitos da história.


Toda narrativa deixa alguma coisa de fora. O historiador para sempre sofrerá o destino de Heródoto, que pai da história, foi também pai da mentira. Carreguemos, no entanto, sem qualquer vergonha esse epíteto. A história, afinal, é uma arte de revelação, mas não desejo recorrer à metáfora gasta por certos filósofos alemães, que insistiam em tratar a verdade a partir do grego aletheia, que astutamente definem a verdade por meio da negação: lēthē, deusa do esquecimento, e também nome do rio de cuja água os mortos bebiam para se aliviarem das memórias que lhe atormentaram durante a vida. A verdade, alētheia, portanto, equivaleria a recusa de beber dessa água suja, de não permitir esquecer-se. 

Por que não esquecer, no entanto, se a memória, isto a psicanálise hoje trata de discutir, nos causa tanta dor? O esquecimento da morte, a aniquilação total da memória, da consciência do pensar: seria a solução? 

Se eu não me matar amanhã é porque ainda amo alguma coisa. 

Se quero lembrar daquele dia com X. é porque a lembrança não apenas atormenta, mas também rejubila.

Pulsão de morte e pulsão de vida, as duas correm dentro de mim. Preciso me matar, mas apenas certa parte: preciso esquecer o que me faz mal. Mas o que me faz mal? Eis a importância da psicanálise: tomar consciência do mal que carregamos em nós mesmo, e por meio da narração, da história, transformá-lo em outra coisa. 

É preciso contar de novo a mesma história.

É preciso compreender que a mentira liberta. 

O que penso ser é uma mentira, graças a Deus,

É preciso saber criar a verdade. 

A história trata desta criação plástica da verdade.


Comecei a leitura do livro já pelo seu princípio, o que significa dizer que fiz o ortodoxo movimento de de pular os prefácios, que nas mãos de Gilberto - isso descobri tarde demais, depois de já tê-lo lido até quase a exaustão - pior do que atrasar a leitura que o leitor ânsia, possui também o inconveniente de submetê-la a  explicações demoradas e laboriosas sobre aquilo que será visto em primeira mão pelo leitor. 

Os prefácios, se for para serem lidos - digo isso por minha conta e risco - é melhor fazê-los somente depois, quando já se tem alguma condição de comparar as suas impressões com as do prefaciador. Ler um livro é como fazer uma viagem: pegar o atalho do prefácio é muitas vezes como deixar-se levado por um guia, que lhe promete mostrar o louvre, algum monumento importante, um restaurante badalado, mas confesso que abomino os guias de viagem, esses manuais pré-digeridos que estragam a experiência da travessia com comentários impertinentes, que rapidamente colonizam a imaginação do leitor. Toda viagem deveria ser um pouco de descoberta, de se deparar com o inesperado. O mesmo vale para a leitura.


A partir da tecnologia do engenho, dos ganhos obtidos com a venda do açúcar e exploração de escravos africanos - estou empregando, evidente, o modelo de Gilberto Freyre -- os invasores europeus promoveram verdadeira reterritorialização daquele espaço.

Trato de reterritorialização em sentidos diversos, que abrange, ao mesmo tempo, transformações no espaço físico-ecológico, na geografia política, das alianças e pertencimentos dos povos originários, e também, em sentido mais próximo do trabalho de Deleuze & Guattari, uma transformação na própria subjetividade das pessoas que ali viviam.



Em sua arqueologia, Andrea Daher paira sobre a figura de Ferdinand Denis, viajante francês cujas obras foram monumentalizadas não na literatura francesa, mas sim na brasileira, já que, pelo que indica a historiadora, teria sido ele um dos pioneiros em propor, para o desenvolvimento da literatura brasileira - originalmente brasileira -, “um verdadeiro protocolo do olhar”. Daher também indicará que a proposta do francês estava em consonância com um “dispositivo em voga no século XIX”, os “panoramas”, exemplificado por ela por meio de “pinturas monumentais da cidade do Rio de Janeiro”, exigida em Paris em 1824, na Passage des Panoramas do boulevard Montmartre, e executada por G.P. Rommy a partir de desenhos enviados do Brasil por Félix Taunay, A Denis, junto de Hippolyte Taunay, coube o desenvolvimento de um livro, descrito por Dahar como “uma espécie de guia de decifração do panorama”,  

Opinião similar foi também manifesta por Gonçalves de Magalhães, que assim como Ferdinand, criticou a educação estrangeira porque ela “cegava na contemplação de uma Natureza grandiosa, reduzindo-os [os poetas brasileiros] afinal a meros imitadores”.





O principal, contudo, é certa sensação de má-consciência, de busca por certa experiência de autenticidade, muito visível em seu desencanto com o que chamava de literatice, ou ainda, com os modos de vida dos literatos e bacharéis.



No segmento de orla marítima,entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um aparelho litoral revolto, feito de envergadura desarticulada das serras, riçado de cumeadas e corroído de angras, e escancelando-se em baías, repartindo-se em ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à maneira de escombros do conflito secular que ali se trava entre os mares e a terra;  em seguida, transposto o 15° paralelo, a atenuação de todos os acidentes — serranias que se arredondam e suavizam as linhas dos taludes, fracionadas em morros de encostas indistintas no horizonte que se amplia; até que em plena faixa costeira da Bahia, o olhar, livre dos anteparos de serras que até lá o repulsam e abreviam, se dilata em cheio para o ocidente, mergulhando no âmago da terra amplíssima lentamente emergindo num ondear longínquo de chapadas...


O trecho que transcrevo, admito, para além dos propósitos do ensaio, também possui certo aspecto pitoresco, mas uma espécie de picturação dadaísta, de significantes que já não conseguem nada dizer; ou, para mantermos a metáfora visual, trata-se de uma écfrase negativa, em que as palavras surgem, mas sem qualquer luz, sem qualquer capacidade de visão. A descrição, a cor local, e enfim, a própria língua, é uma espécie de código, social e historicamente partilhado, é verdade: e mais que isso, é uma forma de conhecer, saber, perceber: a economia de significantes que estrutura cada cultura é também parte do mundo em que vive essa cultura.  



Não há nada de público nela [na vida de Lúcio]. Todos os seus acontecimentos são uma questão privada de homens isolados: eles não podem ocorrer “às vistas do mundo”, publicamente, na presença de um coro, não estão sujeitos a um relato público (para todo o povo) na praça”. Eles só ganham um sifnificado público específico onde se tornam crimes. A delinquência é aquele momento da vida privada em que ela se torna pública, por assim dizer, a contragosto. No mais, essa vida é constituída de segredos de alcova (traições de “esposas más”, impotência dos maridos, etc), segredos do lucro, pequenos embustes do dia a dia, etc.


 Assim, explica Bakhtin, o romance grego resolveu o problema de representar algo que, por conta  vida e o homem privado:

Ele aplicava formas público-retóricas (naquela época já amortecidas) externas e inadequadas ao conteúdo da vida privada, o que só era possível nas condições do tempo grego da aventura [aqui Bakhtin refere-se aos saltos velozes da narrativa, que sem grandes sutileza vai de um episódio ao outro] e da natureza extremamente abstrata de toda a representação [ou seja, o cenário extremamente vazio em que a ação se situa]. Além disso, nessa mesma base retórica o romance grego introduziu também o processo criminal, que nele desempenhou um papel muito importante. O romance grego ainda empregou parcialmente formas do cotidiano como, por exemplo, a carta.

Como ia dizendo, desconheço a repartição original das sessões d’A utopia. Minha simplória edição de bolso, contudo, reparte o livro em dois discursos. O discurso relativo à descrição da ilha de Utopia, embora anunciado desde o início, é precedido por um discurso primeiro, que atrasa o esperado relato da ilha de Utopia, e impõe ao leitor, ansioso pelo pitoresco, a paciência de atravessar um longo diálogo - cuja duração, em minha edição de bolso, é de 42 páginas - travado entre Morus e Hitlodeu sobre um tema que, no tempo, imagino, era ordinário para aqueles aristocratas. O diálogo discute temas diversos, principalmente relativos à economia política, às melhores maneiras que deve-se organizar a sociedade, e se prepara o leitor para o relato seguinte, das maravilhas vistas por Rafael em Utopia, é por meio da crítica - que em certos momentos, alcança até a sátira - dos costumes e instituições europeias, que se levarmos em conta o que viu e pensou Rafael, muito teriam melhorar se tomassem como exemplo as instituições utópicas.

O diálogo entre Morus e Rafael, embora se ramifique em um segundo diálogo, rememoração da experiência que Rafael teve em certa corte inglesa, se desenvolve a partir de uma estrutura e ritmo simples, como Rafael argumento que  A, e depois Morus, apesar de lhe conceder sempre alguma razão, replicando que B, e assim até se atingir uma espécie de aporia ou impasse intransponível, quanto ao absoluto ceticismo de Hitlodeu diante da política realizada nas cortes: “Mas, dizei-me, caro Morus, pregar uma tal moral a homens que por interesse e por sistema se orientam por princípios diametralmente oposto não é contar histórias à surdos?” 


É perfeitamente inútil dar conselhos quando se tem a certeza de que serão repelidos quer na forma, quer no fundo. Ora, os ministros e políticos de hoje estão impregnados de erros e preconceitos; como quereis bruscamente modificar suas crenças e fazer penetrar, de chofre, em suas cabeças e em seu coração, a verdade e a justiça? Esta filosofia escolástica está no seu lugar em uma conversação familiar, entre amigos; está fora de propósito nos conselhos dos reis, onde grandes coisas são tratadas com grande autoridade e em face do poder supremo.


Há, no diálogo, uma demarcação de dois espaços: o primeiro é o idílico jardim, da “conversação familiar, entre amigos”, em que Rafael e Morus, sim, se antagonizam, sem abdicarem nem da verdade e nem mesmo da cordialidade. O outro espaço é o da corte, em que a aristocracia política, ao deliberar sobre assuntos de ordem pública, no entanto, sob a linguagem cifrada pela retórica e pelo bem-dizer, disputam verdadeira guerra libidinal: viciosos, seja pelos costumes ou má-índole, movem-se simplesmente pelas paixão, pelo desejo antes de agradar do que de enunciar o bom, o justo, o verdadeiro.

 Rafael Hitlodeu resista de todas as maneiras, com os mais astutos argumentos, de expor seu pensamento diante do mundo público, regrado pelo fazer parecer, pela aparência e pelo efeito do discurso, e enfim, dito de maneira sucinta, pela mentira. Contudo, quando está ali, sentado no jardim, ambiente privado, em que nada deseja esconder, em que ninguém a palavra precisa manipular, Rafael parece disposto não apenas a falar, mas, conforme diz aos amigos, deseja mesmo "revelar-vos o fundo de minha alma, e dizer-vos os meus pensamentos mais íntimos". 

Não se trata de revelar a alma, os pensamentos mais íntimos, no sentido confessional de um Rousseau; mas simplesmente de ser sincero: entre amigos, não é preciso vestir as máscaras, nem participar dos jogos de bajulação e eloquência que animam a corte. É entre os amigos que a verdade poderia ser discutida, parece sugerir




É um diálogo que tenciona o que poderíamos chamar de retórica, desse saber destinado ao emprego das palavras, que estuda a eloquência e o bem-dizer, com um outro saber, digamos, da filosofia, que antes de mais nada, orienta-se pelo intelecto, pela honestidade da razão, e que, embora não exatamente lhe recusa, certamente demonstra desprezo pela retórica, por essa ciência que ensina o homem a orientar-se, antes, em um mundo dirigido pelas paixões, em vez de neles cultivar o amor pela verdade.



Quando no jardim de amistosa discussão sobre a deliberação política, naquele tempo realizada nas cortes reais. A história se desenvolve a partir da estrutura e do ritmo de diálogo; um dizendo A; o outro replicando B, até atingirem uma espécie de aporia ou impasse intransponível, quando Rafael Hitlodeu anuncia seu mais absoluto ceticismo diante da política realizada nas cortes: 


  (o teatro, se pensado a partir de sua peculiaridade de ser arte coletiva, feita a muitas mãos, muitas vezes traduz o minimalismo da descrição em espaço para a imaginação e trabalho do cenógrafo)

Se o diálogo de Platão inicia-se sobre as virtudes da velhice - segundo Céfalo,  benéfica por livrar o homem de desejar o sexo, o amor, as mulheres, e permitir que se entregue alegremente ao gozo masculino pela conversação, logo em seguida, quase que por acidente, Céfalo tocará no coração da República, ao afirmar que ”as tensões dos desejos diminuem, ocorre exatamente oque Sófocles dizia: que nos liramos de muitos tiranos furiosos”. Sócrates ficou  “admirado com o que ele dizia”, e para que o velho siga falando, muda a direção da conversação, e o texto gradualmente passa a falar não mais sobre o amor ao sexo, mas ao amor ao dinheiro.

N retratam a filosofia como gozo de conversação, um gozo que Céfalo associa à decadência do corpo pelo tempo, a substituição dos prazeres da carne pelos do intelecto, e o texto d’A república atingirá mais evidente elogio do celibato (e, também, da filosofia como essa espécie de sublimação erótica masculina), quando Céfalo, que é um celibatário entrado em anos, diga-se de passagem, refere-se ao caso de Sófocles, a que perguntaram, quando já envelhecido:

“Como te encontra, Sófocles, em relação ao amor? És capaz, ainda, de estar com uma mulher?” E ele respondeu: “Nem me recordes, bom homem, livrei-me do amor com a maior satisfação, como quem escapa de um senhor furioso e truculento”.

Não desejo prosseguir pelo caminho d’


 que nossa mitologia e repartição do saber insiste em localizar sua

 inscreve como originários de sua vida - 

Minha conferência, portanto, é antes de mais nada um ensaio.

publicização de um pensamento que me ocorreu, 

embora seja meu objetivo pensá-lo como marca da produção e controle do saber no Brasil, 

Gilberto Freyre, evidentemente, é meu principal instrumento de análise, contudo não me ocorreu durante o exame 

Esse ensaio, que aqui apresento,



ai, minha fama de maldito, 2

O after na casa de Pedro Fernandes estava uma bosta. Gente fumando maconha pelos cantos e fazendo aquela média com todo mundo. Artifício emo...