terça-feira, 30 de maio de 2023

posições de poder: exame breve do caso de costa lima

 À respeito da posição exercida pelo professor, ou ainda, pelo autor quando este atinge certo patamar de celebridade, por mais modesto que pareça: Embora subestimada ou mesmo negligenciada, a posição desde onde um professor ou celebridade fala, não é uma posição exatamente “normal”, mas uma posição dotada de um gênero de poder mágico, uma força capaz de executar alterações nos processos sensoriais, libidinais, existenciais, psicológicos daqueles que por sua fala se deixaram afetar. 

    
Se examinarmos rapidamente a Retórica de Aristóteles, encontraremos que a arte da sedução pelo discurso (definição própria que emprego livremente para descrever o que seria a retórica), se equilibra entre o lógos, o pathos e o ethos. Destaco isso pois, se quanto aos argumentos Costa Lima muitas vezes não me passava grande confiança, ou se suas palavras não me despertavam qualquer reação, era contudo a sua reputação intelectual que fazia com que mantivesse meu corpo aberto ao que dizia durante suas aulas.

Foi por meio desta elevada posição que o professor Costa Lima contou a mim e outros alunos sobre Casa-grande & Senzala. Seu falar não estava no mesmo nível de reles mortais, como eu ou meus colegas de classe, e por isso, caso quisesse ouvir melhor o que dizia, que apontava minhas orelhas para o céu, na esperança de não perder uma palavra. Falava a nós, sobre os tantos intelectuais brasileiros que seu curso abrangeu, como é de se esperar por conta de seu lugar de professor (professor, acrescento ainda, emérito, e autor de tantos livros, e de idade tão avançada, quanto tempo imagino que se dedicou ao pensar!), de cima para baixo… era verdadeira auctoritas. 


segunda-feira, 29 de maio de 2023

as sínteses de gilberto freyre

há algo de peculiar quando, em ordem e progresso, o autor anuncia uma seção do livro em que se tentará fazer uma SÍNTESE do restante do livro, de suas mais de 500 páginas (estou provavelmente economizando na quantidade).

o livro se não me engano é de 57, e não sei se na data já se esperava que sínteses fizessem referência à estruturas, leis, elementos invariáveis... 

imagino que a escola de sociologia da USP já estava - se não estruturada -, estruturando-se... e que na frança (repetirei o léxico, o que talvez seja indício de sua penetração em nosso pensar) o estruturalismo já estava disseminado ao ponto de já estar a se preparar aquilo que no fim da década seguinte se chamaria de pós-estruralismo...

o que gostaria de assinalar é somente que o projeto de síntese de gilberto é verdadeiramente esquivo: embora seja anunciado, como nas obras anteriores, o anseio de se encontrar traços comuns ou gerais, aquilo que seria característico do caráter e ou formação da história do brasil, desde os tempos coloniais até - este é o recorte de ordem e progresso - o fim do império e a primeira república, a síntese oferecida por gilberto estranhamente repete o movimento característico do ensaísmo de toda sua carreira, e também dos sucessivos capítulos do livro: a descrição, e quase que ilustração, dos modos de vida, a transcrição de falas e opiniões, séries de observações sobre as mais variadas miscelânias que a erudição de gilberto teve acesso...

é evidente que a historiografia de gilberto alonga no século xx, e especialmente em sobrados e mucambos e ordem e progresso, eu diria, em que a documentação mais farta torna possível a recriação da vida cotidiana e íntima, que embora animasse desde casa-grande e senzala seu projeto historiográfico, a excasses das fontes do século xvi e xvii, principalmente, exigiam ainda mais "intuição" e "imaginação" do autor do que os livros subsequentes... 

daí que gilberto freyre se sinta um escritor, pois seu projeto historiográfico estica até meados do século - tempos de estruturalismos dos mais variados, de empregos de história econômicas e demográfica, de avaliação formalista de licros filosóficos e literários, criação dos mais diversos sistemas capazes de sintetizar e assim compreender as leis de determinado acontecimento ou modo de vida... - em tempos em que a frança exportaria para o mundo o modelo estruturalista de ciências sociais, gilberto freyre era um gênero de historiador anacrônico, pois sua escrita estava fundada, assim como a de malinowski e outros antropólogos, outros discípulos de franz boas, não custa anotar, no anseio, romântico, eu diria, de se representar a totalidade de uma vida social, e assim mostrar ao leitor, por ao seus olhos - um uso de equífrase, eu diria - esse mundo que já passou e não voltará a passar, mas que gilberto reconstrói por meio de seu trabalho de pesquisador erudito, por meio das mais variadas fontes, inclusive a história oral, por meio de sua mente sociológica também, é evidente, que é um meio de pensar e dar vida a esse mundo passado, e como tanto insiste, por aquilo que chama do aspecto literário de seu trabalho, de como precisa fazer uso da imaginação, pra transformar tudo aquilo em cenas, ou melhor, em palavras, para que possa o leitor ter diante dos olhos a história...

e o próprio gilberto entrega a chave para seu sistema, quando se refere logo de início à REPETIÇÃO que atormenta sua escrita de ensaísta... 

costa lima e benzaquem, cada um ao seu modo, pensam a escrita de gilberto como símile do discurso oral, o que é elegante construção dos dois, e adequada especialmente a Casa-grande & senzala, já que o aspecto "mestiço", de oralidade quente e mole das ruas, me parece desaparecer nos trabalhos seguintes...

mas tomemos o modelo da oralidade para trabalhar de maneira mais sistemática com seus ensaios: e fico espantado como nenhum dos dois se referiram à repetição como forma de sistematizar aquilo que parece ser somente comtinuidade, discurso corrido...

não é afinal a técnica que funda a psicanálise como uma ciência do discurso?, a percepção dos giros e retornos que se faz, apesar da aparente sensação de heterogeneidade que nos dá a tagarelice do paciente?

gilberto freyre estava contudo do aspecto repetitivo, porque é ali que podemos começar a pensar o seu ensaísmo enquanto um sistema... e isso, acredito, deve ter interessante usos acadêmicos, já que muitos estudiosos e pesquisadores fazem uso do princípio do retorno mesmo sem saber que fazem...

procuro no entanto não conceitos ou sistemas, ou pelo menos não do jeito que se pensam essas coisas de forma usual, como uma espécie de camisa-de-força semântica em que podemos colocar a obra de um escritor... afinal, como já disse, se procurar, imagino que iremos achar os referidos retornos, o aspecto geral, de lei sociológica, o que afinal diz respeito à continuidade na história do brasileiro, que gilberto freyre ele próprio quer encontrar, mesmo ele que se refira a uma historiografia cubista, de múltiplas perspectivas, repleta de comtradições... mesmo para freyre, estas contradições são passíveis de síntese, afinal.

não escrevo exatamente contra as sínteses, apenas desejo sintetizar de outro modo... 

este outro modo começa por abrir a obra, retirar primeiro os limites que fazem dela não só um livro individual - ordem e progresso - mas também que retire da geografia claustrofóbica do nome - gilberto freyre -...

é assim que procuro as repetições, que são menos relevantes como repetições de um autor - para mim o autor é somente um endereço - do que repetições cujo traçado é mais difícil de precisar, mas que irei, como é de hábito entre nós, brasileiros, empregar um conceito francês para me referir... 

as repetições que procuro estão na ordem do discurso, e no final das contas, embora faça do meu jeito, o que projeto sobre as obras de gilberto freyre é uma arqueologia, um estudo em que persigo o rastro daquilo que me refiro como línguas, e também daquilo que me refiro como topoi ou lugares...

caberia uma sistematização da coisa toda, de como esses lugares, repetidos em conjuntos, classificam uma língua...

e especialmente, de como tais línguas são históricas, de como elas nascem e morrem, mesmo que o discurso sobreviva, e se a arqueologia foucualtiana sugere o recorrentr problema estruturalista de formular o devir, a transformação da língua no interior de um mesmo discurso - por exemplo, morte da língua evolucionista e naturalista dentro do discurso amtropológico; ou melhor, sua continuação, maa enquanto outra língua; estruturalista, marxista, funcionalista... - nos leva a ter que pensar nos motivos que levam determinadas linguagens a morrer e a nascer.

é aqui que somos reconduzidos ao que se chama banalmente de história social, e onde meu projeto historiográfico, por meio da análise discursiva, gostaria de chegar. no final das contas, este meu estudo da vida das línguas no interior de certo discurso trata-se somente de uma metodologia - um tanto laboriosa e especializada, às vezes me parece - para se fazer história social, ou, ainda, história extra-linguistica: que narre não os dramas da língua, do discurso, da escritura (falo em escritura sempre que desejo tornar a precisão delimitada pelos registros fechados do autor e da obra em um campo aberto, em que multiplicidades se atravessam): fazer da análise da escritura de método para se escrever a história daqueles que, afinal de conta, escrevem.

aqui retorno a gilberto freyre. aos seus livros. aos seu aspecto literário. a possibilidade de dar vida ao que o historiador tão laboriosamente demorou a estudar nos documentos. ou, no meu caso, na escritura. sem a ingenuidade de representar o passado, sem o fingimento de que a linguagem do historiador abre uma janela para o ocorrido.

superemos os positivismos, não precisamos dele. temos o rigor do trabalho, o tempo que gastamos lendo e estudando, em que ppr meio de tantos documentos, dos mais variados métodos, laboramos em nosso corpo essa imagem que entregamos ao leitor, com todo o rigor que a escrita também exige do historiador.

é um trabalho mesquinho, como podemos ver. o escritor não precisa ser um mestre apenas na parte positiva da ciência, no que refere a sua capacidade de pesquisar e compreender, de tratar aquilo que se refere de forma corriqueira como "documentação". 

além do trabalho realizado sob a poeira do arquivo, há aquele momento em que irá se sentar no computador para por em palavra o que viu, pensou, e o principal: imaginou.

e gilberto freyre é anacrônico por conta disso. carrega até metade do século XX essa ciência - se eu quisesse ser preciso, eu diria essa língua - que possui tão distinto cheiro de século XIX. gilberto freyre, para ser historiador, fez uso da língua do romancista e do sociologo, tudo isso em um século em que a distinção entre ambas - ficção e ciência - naquela altura, no pós-guerra, já estava demarcada.

e ainda faz dentro de uma forma de ensaio, mas o que é a forma de ensaio..............

gilberto freyre é um historiador estranho, um sociólogo estranho, um amtropólogo estranho, e se admitido, um literato estranho também.

sexta-feira, 26 de maio de 2023

nova biografia intelectual (mais uma)

 No início de qualquer pesquisa, quando tomamos a decisão de entrar em um novo campo do saber, de que nada conhecemos, é necessário encontrar alguma maneira de se orientar. Alguns objetos sofrem de escassez bibliográfica, e neste caso o pesquisador é sempre de alguma forma um inventor e pioneiro, alguém que talvez abra os primeiros caminhos para o que depois virá. 

Já me ocorreu algumas vezes o desejo de estudar um autor menor, não-canônico, e durante algum tempo pensei em José Agrippino de Paula, que apesar de razoavelmente conhecido e associado com o tropicalismo, me parecia propício para um estudo desses, que me exigiria ao mesmo tempo mergulhar de cabeça nos seus (poucos) livros; nos escritos e escritores dos arredores; estudar a história e a sociologia que animavam aquela vida; aprender os incidentes de sua tumultuada biografia; mobilizar teorias e obras diversas para pensar e repensar meu objeto; mas o principal: não ter que ler - ou ler muito pouco - o que dele se escreveu.

A fantasia que descrevo, no entanto, é dessas que vivem somente de pura alteridade, de quem assiste de longe a grama do vizinho, e ela é sempre mais verde do jardim miserável que dia-a-dia trato de cuidar (mas as petúnias sempre morrem, e minha esposa quer malditas petúnias).

Meu mestrado seguiu a esteira do pouco que conheci para escrever o trabalho de conclusão de curso que entregamos para nos graduar. E não que na época reclamasse, porque eu realmente gostava de ler a Jorge Luis Borges, e ainda lhe considero um dos grandes escritores do século, quer dizer, não somente eu que faço julgamento tão bondoso de seus escritos, e por isso que universidades de todo o mundo produzem papers e mais papers associados a esse nome, e confesso, eu, que como todo mestrando estava somente aprendendo a pesquisar, quando comecei esperava fazer uma dissertação original, originalíssima, que tivesse ao menos repercussão nos estudos brasileiros de literatura argentina, e não riam agora de seu escritor, por favor, porque ele era somente um garoto como você também já foi, eu presumo, e foi somente quando dei conta da verdadeira massa de escritos que havia sobre sua obra, na quantidade de páginas que ano a ano se redigia sobre ela, na quantidade de pessoas que assiduamente pensavam e repensavam cada palavra escrita por um único homem… 

O mestrado chegou ao fim quando a banca, em demonstração de bondade e boa disposição que ainda agradeço, aprovou um caótico trabalho sobre a crítica literária de Jorge Luis Borges, e também sobre algumas de suas repercussões dentro de certos contos. Ao fim dessa turbulenta experiência que foi, pela primeira vez, pesquisar, e também, claro, fazer a redação de uma dissertação inteira, mais do a satisfação de entregar um produto de qualidade, me ficou a satisfação de ter passado por um violento processo de iniciação acadêmica, e que como toda iniciação, ser mutilado era somente parte do rito.

Confesso um erro: não dei nem um semestre sequer para respirar. Juntei meus conhecimentos em literatura argentina - que naquela altura, para um rapaz brasileiro de 25 anos eram razoáveis - e fiz um novo projeto de doutorado que, me perdoe o leitor, se seguisse à risca, era muito promissor. Na época, depois de estudar a figura do crítico literário a partir da obra de Borges, me interessavam problemas mais contemporâneos, relativos à situação do escritor e da literatura no mundo de agora. Na época não percebi, mas quando montei meu projeto de, a partir dos escritos de César Aira, escritor argentino ainda vivo, pensar a situação do escritor profissional nas últimas décadas, eu dava continuidade a meus estudos sobre a crítica literária de Borges (que é a crítica fora um episódio da história profissional da literatura?), mas avançando um pouco no tempo, em que o escritor - e o artista em geral - assumem outra posição dentro do mercado e do capitalismo. Não duvido que, se seguisse esse projeto, iria cada vez mais na direção de uma sociologia da literatura em articulação com uma história da arte (especialmente a escrita) como mercadoria.  


quinta-feira, 25 de maio de 2023

O QUE É BIBLIOGRAFIA

  É tradicional que a seção bibliográfica de um projeto de pesquisa seja constituída por uma enumeração, às vezes cronológica, outras não, mas de qualquer maneira, que desenvolva uma lista das principais obras publicadas que já se referiram ao objeto em pesquisa em questão, pelo menos a partir da perspectiva que o novo pesquisador irá estudá-la. 

Impossível suprimir, também, que a bibliografia, neste sentido corrente, seja um gênero antes de mais nada relativo à demonstração de certa autoridade: não somente dos autores e obras enumeradas, mas também a autoridade do pesquisador, que demonstra, pela criteriosa seleção dos nomes e de sua articulação dentro de breve narrativa, ter conhecimento daquilo que a tradição ou comunidade disse à respeito do objeto que pretende poder dizer algo mais.

Nesta seção bibliográfica, naturalmente, o leitor irá encontrar traços do referido gênero. Encontrará, no entanto, certo deslocamento ou diferença, pelo menos no que refere a este sentido corrente que descrevi como parte do gênero bibliográfico. 

A bibliografia - cuja livre tradução etimológica remonta, de maneira simples e direta, a uma escrita sobre livros -, ao se tornar esse gênero de descrição da tradição letrada que, de certo modo, conduziu um campo de estudos até o momento presente, passa a referir-se também a um segundo sentido de escrita: não somente de livros, de tal história que lhes prescreve como parte de uma comunidade e que coloca cada livro dentro de uma sequência e de um espaço de valor. Estes, os livros que se acumulam em estantes, são a bibliografia de onde - presumimos - o pesquisador aprendeu e constituiu o saber que agora, de alguma forma, planeja inserir seu nome como parte; de qual planeja escrever uma continuação. 

Ao falarmos em bibliografia, no entanto, também nos referimos a uma segunda escrita; não esta, das histórias das obras dignas de memória, que costumam introduzir alguns gêneros acadêmicos, mas uma outra, que refere-se à escrita feita pelo saber no próprio corpo do pesquisador

A bibliografia se apresenta como um catálogo de escritos, a história de um saber ou ciência orientada para o acúmulo. Há, evidentemente, o espaço da crítica bibliográfica, em que o pesquisador, com instrumentos assépticos, a razão pura de qualquer germe, cuidadosamente separa o tumor canceroso do corpo apolíneo do saber. A bibliografia é espécie de travessia intelectual, um ritual de iniciação, talvez, que fazemos para  provar que estamos ciente das discussões correntes - aquilo que há de mais novo em matéria de saber! -. Verdadeiro ritual, a bibliografia, em que demonstramos respeito aqueles considerados pioneiros, que desbravaram a terra ignota do saber, e que hoje, por meio de seus escritos, nos movemos com extrema facilidade, já que os caminhos, afinal, já foram abertos. 

Às vezes, contudo, há pesquisadores mais ousados, daqueles que arriscam a heterodoxia de corrigir a mitologia ensinada, e se o simples crítico, munido de seu bisturi, arranca a doença que se nutria do corpo atlético do saber, há também os que inserem marca-passos, que transplantam órgãos ausentes, colocam próteses e executam milagres científicos dos mais variados, cujo resultado, se bem-sucedido, é dar ainda mais força ao cânone cultuado.

Na concepção corrente de bibliografia, afinal, os livros que nos legaram o passado são como veículos e aparelhos: pode ser necessário certo reparo vez ou outra, mas saibamos deles desfrutar, e mais ainda, que reconheçamos sua importância, que lhe façamos referência, e depois que, por meio da citação, se dê reconhecido nosso respeito, ou pelo menos, nosso conhecimento, se tudo correr bem, seremos aprovados pelos anciões que, do alto de seus elevadíssimos bancos, nos declaram enfim como iniciados, e em rápido sinal - querem somente terminar o drama, dar fim ao ritual e assinar o papel que fará a vida seguir seu curso - declarem que estamos aptos para continuar a construção do edifício do conhecimento: “vá lá, caro rapaz, coloque seu valioso tijolo, acrescente seu livro à nossa enorme biblioteca, e um dia, um outro pobre diabo, coloque um outro tijolo em cima do seu”.

Não ambiciono fabricar mais um tijolo para quem sabe um dia erguer a torre do saber, não tenho a menor pretensão de adicionar um novo livro para a seção empoeirada desta biblioteca que foi chamada de bibliografia. Admito que o acúmulo de nomes eruditos, de datas e glosas aos mais diversos livros, seja atraente, e não nego a nenhum catálogo nem o privilégio de constituir memória ou conhecimento. 

Se faço tão demorada introdução ao que deveria ser tratado com banalidade - oras, é apenas a seção bibliográfica de um projeto de pesquisa! -, é porque não desejo que, pelo menos aqui, a bibliografia seja essa história de um conhecimento virtual, referente a uma biblioteca que certamente poderia ser reunida, se uma alma caridosa tivesse o tempo e o trabalho de anotar, um a um, os respectivos títulos. Seria, aliás, um empreendimento formidável. Para o bem ou para o mal, contudo não é essa a bibliografia aqui desenvolvida. 

Como disse, a bibliografia abre a possibilidade não somente de uma história escrita no branco do papel; este gênero de bibliografia, na verdade, possui um quê de trivial, e se eu não tivesse grande estima pelo conceito de retórica, diria mesmo que a bibliografia, assim imaginada, é às vezes pouco mais do que parte de uma língua oficial, ou poderíamos dizer, como se ficou acostumado dizer: a bibliografia, assim organizada, parece às vezes não ultrapassar a condição de ornamento.

A bibliografia que tratarei, portanto, não é somente uma história sobre o branco do papel, mas sim de como este papel é capaz de rasgar e cortar a carne. Não planejo nenhum catálogo sobre os tantos livros escritos sobre Gilberto Freyre; não planejo cotejá-los, fazer glosa sobre a interpretação ou recepção delas. Embora esta introdução longa sugira a prolixidade, em minha discussão bibliográfica, irei fazer apenas o necessário, um breve relato de como fui introduzido ao meu objeto. 

Com isto, tento refazer não exatamente uma história da recepção e comentário do que já se disse e escreveu sobre meu objeto de estudos,  mas sim buscar por certa genealogia, encontrar o lugar e perspectiva que, desde a primeira leitura que fiz de Casa-grande & Senzala, me foi imposto a seguir. ***

Estudamos animados pelo desejo de decifrar nosso objeto de estudos, de explicar seus fundamentos, de se apossar dos segredos que nele se escondem… 

O objeto, no entanto, nunca é inerte; pior: o objeto muitas vezes é cruel. 

O enigma possui olhos ferozes de esfinge. E quanto mais você pensa decifrá-lo, mais ele lhe devora… 

O objeto não só decifrá de volta ao sujeito, mas também fará dele, sem que sequer perceba, que repita sua cifra por… E aquilo que antes era somente coisa a ser descoberta, passa a constituir sua própria carne, sua própria psicologia, sua própria língua, seu próprio pensar.

Depois de gastar tantas páginas e empregar tantas palavras, enfim compreendi o que estou lhe dizendo. Não me importam os catálogos e listas oficiais; o que dizem elas afinal? Não quero os livros que escreveram a possível história de meu objeto, não apenas porque esta história não é a única possível, mas porque ela pouco dirá sobre como concebi meus estudos.

Nesta seção bibliográfica, planejo reencontrar os livros que literalmente me marcaram; e para dizer de uma vez, a bibliografia que aqui escrevo será verdadeira história proustiana:rememorações daquilo que li; de como sua leitura me afetou e orientou, para que chegasse enfim à forma que abordo ou desejo abordar aos escritos de Gilberto Freyre… 


DEPOIMENTO DE LINS, OSWALDO.

 “Por que desejamos derrubar nossos ídolos?”, pergunta a criancinha, sentada no chão, os braços envolvem os joelhos, a cabecinha olhando os operários demoliram a enorme estátua de Gilberto Freyre, que ele não sabia quem era, mas que seu pai, homem morto de quem possui somente vaga lembrança. Lembra de que gastava muito tempo em uma sala apertada, que depois aprendeu a chamar de escritório, e que lá dentro, a sala cheia de livros (ele também somente o nome depois), seu pai ou lia um destes livros ou, também era comum, escrevia na máquina de escrever (como nos outros casos, este nome também aprendeu depois: os livros, o escritório, a máquina de escrever… primeiro reconheceu a coisa em seu mistério de coisa, e é difícil narrar o que se passa na mente ainda tão frágil e plástica quanto a de um garotinho naquela idade, mas arrisco que existisse alguma vontade de entender o que era afinal eram estas coisas que via e no entanto não compreendia: para que serviam, por que estavam ali, o que seu pai fazia com elas… 

Se vontade não for a palavra correta, o que ocorreu em seu cérebro, seja lá o nome mais adequado, foi suficiente para que gravasse a imagem de seu pai sentado, o tec tec tec da máquina junto de uma música ao fundo. 

Que música era a que tocava ao fundo, junto da máquina de escrever? Nunca descobriu, é evidente, embora vez ou outra, enquanto ouvia alguma música mais antiga, se era aquela que seu pai ouvia…

Como se gosta de algo que irá lhe acompanhar por toda a sua vida, nas mais variadas formas? Era ainda um garotinho, oito ou nove anos. A mãe varria a casa, naquele dia iriam receber visita dos avós (o garotinho, contudo, não lembra disso). Enquanto faxinava a sala, a mãe ouvia no rádio uma canção que fazia sucesso na época, “A horse with No Name”, de uma banda chamada America. Foi nesse dia, foi essa canção, que fez com que gostasse de música pela primeira vez. Passou a escutar os discos da mãe de vez em quando; começou a procurar no rádio alguma música que parecia legal…

- Naquele tempo, ele interrompe e diz, a gente não sabia o nome das músicas que escutava… Ela tocava no rádio: você poderia ficar encantado, e depois simplesmente nunca mais ouvi-la… Imagine, Leila, você se apaixonar por um rapaz e… Quer dizer, se apaixonar por uma moça, e vocês viveram juntas um amor lindo, foi um romance maravilhoso!, e você pensa quando ela já foi embora, quando ela já desapareceu para sempre… meu Deus, eu não sei nem o nome dela… Pois é, filha, era assim que acontecia. 

Às vezes escutava uma música por acaso e quando percebia era uma que tocou em sua infância, nesse tempo de rádio, em que algumas canções deveriam ser aproveitadas nos três ou quatro minutos que duravam, porque depois poderiam nunca mais voltar. Às vezes, claro, algumas voltavam, e assim ia descobrindo os artistas que gostava mais, os estilos e gêneros que lhe agradavam, outros que não eram muito sua praia. Sempre gostou de ouvir os discos da mãe. Um dia, quando ele fez dez anos de idade, a mãe lhe deu de presente os discos que eram de seu pai. Ouvir o que o pai ouvia, descobrir um pouco de sua intimidade, ou somente ter um pouquinho mais de informação para inventá-la, para imaginar melhor seu pai… 

A primeira vez que ouviu os discos do pai foi quando todos foram embora da festinha que a mãe havia organizado. Poucas pessoas, alguns amigos da escola, primos, crianças com quem brincava na rua, os parentes… 

As fotos que tiraram sugerem que foi uma festa alegre, e ao rever as fotos, ele sorri, como se lembrasse de tempos bons, mas me diz não lembrar nada desse dia, com exceção do momento em que todos já tinham ido embora, e a mãe apareceu com os discos que foram do pai.

- A primeira vez que ouvi foi junto de minha mãe… Eu não vou saber dizer o que se passou, mas é uma das memórias, olhe, é uma das memórias daquelas que todo filho deveria ter com a mãe, entende? Eu não sei o que senti, mas estava divertido, meu pai tinha um gosto diferente de mamãe, era mais esquisitão, e eu não consigo lembrar muita coisa fora que foi divertido, e também emocionante, escutar o que papai escutava, e que em certo momento… isso me lembro, e acho que irei lembrar até o momento que eu morrer, Leila… “Um disco tão bobo”, mamãe não parava de repetir, enquanto limpava as lágrimas com as costas da mão… Sim, a canção, claro que me lembro… “Vamos fazer um filme”, do Legião Urbana… Mamãe teve vergonha de chorar na minha frente. Eu devia ter abraçado ela, mas era também só um garoto, o que entendia de sentimentos, de amor…? Às vezes acho que ainda hoje não aprendi direito, e que continuo fazendo tudo errado… Mas ela amava o papai, amava de verdade, e eu acho que sempre tentei encontrar um amor bonito como aquele… 

Não sei dizer o que sentia naquele momento, em que ficou em silêncio. Sua expressão dizia alguma coisa, mas era eu que não sabia ler. 

- Por quanto tempo mesmo você disse que conviveu com seu pai?, disse, para tentar fazer a entrevista continuar.

- Ele morreu quando eu tinha uns três anos, respondeu, sem que precisasse alterar a expressão de seu rosto.

Quase sempre, e isto notam os psicólogos, nesta idade, o bebê percebe o mundo externo com certa indiferença, e mesmo com algum desinteresse. “Primeiro a coisa, depois o nome”. Esta não era, de forma alguma, uma regra sobre a epistemologia infantil. Muitas coisas, como todas as crianças, ele afinal aprendeu primeiro o nome, para que só depois descobrisse a coisa. Os livros, os escritórios, a máquina de escrever, e até mesmo a música: com estas coisas, no entanto, se passou assim, primeiro a impressão da coisa, depois seu nome. 

A mãe tomou a criança no colo e levou-a para a sala. “Encosta a porta, por favor”, pediu o pai, sem tirar o rosto de entre as páginas de um livro. “Papai agora está ocupado”, tentou explicar para o filho, e creio que nessa idade, ainda não compreendia exatamente o que a mãe queria dizer com “ocupado”. Se a simples noção de “estar ocupado” talvez fosse estranha para o bebê, enquanto lhe carregava de volta para a sala, ela lhe explicava - talvez falasse mais para si do que para a criança - que “o papai precisa de concentração para que pudesse trabalhar”, “que o papai está preparando uma importante tese sobre um homem importante, um historiador chamado Gilberto Freyre”.

Este é um caso de quando o nome veio muito antes de qualquer compreensão. Em algum momento, ele não lembra quando ouviu pela segunda vez aquele nome, “Gilberto Freyre”, mas segundo o que me conta, nesta segunda vez não associou o nome ao trabalho que seu pai fazia quando trancado no escritório. 

Quanto tempo demorou para compreender o que seu pai fazia no escritório, quando a mãe dizia que estava “ocupado”? Desde menino que lembra desta cena, o pai entre livros, no escritório, a máquina de escrever, alguma música tocando baixinho. As análises que o material gravado ao longo dos anos nos possibilita sugerem um fenômeno estranho: esta cena, para o paciente tão fundamental, com o pai sentado no escritório, os livros, a máquina de escrever, a música suave, ou deve ter visto uma ou algumas poucas vezes, e por algum motivo que analistas anteriores buscaram explicar, para sempre ficou gravada em sua memória; não deveríamos descartar, contudo, que este cena seja na verdade fabricada pelo paciente. 

O escritório, a máquina de escrever, os livros, mesmo a música. Quando, afinal, o paciente compreendeu a ocupação de seu pai, para que, depois de compreendido a natureza erudita de seu trabalho, que era seu pai um historiador, pudesse seu inconsciente armar uma cena tão banal como essa? 

“Por que desejamos derrubar nossos ídolos?”, pergunta a criancinha, sentada no chão, os braços envolvem os joelhos, a cabecinha olhando os operários demoliram a enorme estátua de Gilberto Freyre; essa história repetiu várias vezes. Verossímil que estivesse entre a multidão que assistiu a queda deste historiador que, no tempo de sua infância, ainda era célebre.


uma contradição encontrada na obra de costa lima

A palavra que me ocorre para descrever o sentimento que atravessa “A versão solar do patriarcalismo: Casa-grande & Senzala”, na verdade são duas: a ira e o desprezo. A ira se insinua quando o autor irá tratar do “mestre dos Apipucos”;  o desprezo, contudo, está lá desde o início, sem embaraço algum, quando Costa Lima trata a intelectualidade brasileira a qual ele filia a obra de Gilberto Freyre.

Quer dizer, isso se pudermos chamar aquele teatro aqui representado de “intelectualidade”. Leram pouco, muito pouco de tudo que na Europa se escrevia, naquele século tão letrado que foi o XIX.

A verdade… Querem ouvir a verdade? A verdade é que talvez fosse melhor que não tivessem lido nada!, porque, do pouco que aqueles pobres diabos leram, só tocou-lhes os pontos mais superficiais do que era o racionalismo iluminista: Se por si só este racionalismo iluminista era limitado, aqui, entre aqueles intelectuais preocupados com o problema desta largar região a que se deu o nome de Brasil, o que já era pobre aqui empobreceu-se ainda mais! Se o iluminismo era pão dormido, o que se fazia aqui fez-se com suas migalhas, porque de todo o iluminismo, entre os intelectuais brasileiros foram aprendidas apenas as “ atitudes mais esquemáticas: o repúdio à metafísica, o desprezo pela religião [...] e pelo que fosse rebelde à estrita incidência da razão”.


Mas estes elementos não entravam propriamente no circuito da demonstrações; antes se contentavam em funcionar como seus porteiros, encarregados de barrar a entrada de qualquer que a priori já não estivesse convencido de sua evidência. Se a razão já tem a tendência de ser monológica, i.e., de não reconhecer senão o que traz sua marca manifesta, que então dizer deste racionalismo-por-etiqueta?


É surpreendente que estas palavras sejam escritas somente algumas páginas depois de que a “concepção radical do historicismo” de Herder fora por Costa Lima louvada como contrária à “razão monológica” dos iluministas; imagino que a tinta ainda estava fresca, que o autor havia acabado de pensar e redigir que “cada época deve ser encarada em termos de seu próprios valores [...] de que não há progresso ou declínio na história mas apenas a diversidade preenchida por valores”, quando em seguida descreveu a razão de toda uma série de intelectuais que aqui, no país de nome Brasil, escreviam, como um “racionalismo-de-etiqueta”...

Pensemos por alguns instantes… - ao leitor entediado, desculpe termos que gastar mais linhas em divagações que poderiam ser omitidas… - Pensemos no como é possível tão flagrante contradição, especialmente porque tratamos de autor que, na página 227, ainda neste mesmo ensaio, debocha daqueles que fazem elogio da escrita de Freyre por “suspender a desconfiança fundamental que o pensamento ocidental nos ensinou a manter quanto à contradição”... e na sequência, ao tratar da “maleabilidade do oral” a que tanto aludem os analistas dos escritos do Freyre, sobre tal “maleabilidade”, levantará hipóteses: “Seriam seus analistas especialmente desatentos ou a linguagem de Freyre desenvolveria uma melodia anestesiante do entendimento?”

Será que a monumentalização de Gilberto Freyre deve-se ao cantar de sereia, ao ir e vir de sua escrita que antes anestesia o entendimento, ao invés de fazer o seu contrário, reanimar, desentorpecer, despertar o entendimento do leitor?

A colocação de Costa Lima recoloca Gilberto Freyre na prateleira da razão-por-etiqueta, com o acréscimo ou destaque do quão poderoso retórico seria este escritor, capaz de anestesiar não somente um ou outro, mas algumas gerações de intelectuais. Estaria Casa-grande & Senzala, portanto, na linha sucessória de Os sertões, de Euclides da Cunha, obras científicas, historiográficas, que contudo habitam a fronteira do literário, e por isso seriam tão perigosas: por estetizar o que deveria se dar da forma mais simples e direta possível ao entendimento…


Do ponto de vista da lógica ocidental, a contradição impõe verdadeiros desafios à imaginação analítica... Pensemos portanto em hipóteses razoáveis, capazes de justificar a contradição de um escritor não somente avesso à contradição, mas que no ensaio analisado estava verdadeiramente atento a ela.

Hipótese número um: Costa Lima não é somente Costa Lima; o codinome, na verdade denomina uma dupla de escreventes: não é um único homem! Não Costa Lima, mas Costa & Lima! Um escreve uma coisa, e cansado por qualquer motivo, ou então por insistência do outro, que deseja digitar na máquina, trocam de lugares, e a sucessão lógica é assim interrompida.

Hipótese interessante do ponto de vista literário, mas inverossímil, infelizmente. Passemos para a hipótese número dois: o autor não possui exatamente ciência do que escreve; digamos, não é como seu argumento estivesse em sua cabeça como uma sucessão de A + B + C + D…  Assim, são de qualidade os autores capazes de transformar a razão por eles arquitetadas em palavras; as palavras, portanto, deveriam repetir a arquitetura exata que construiu em sua mente…

Que são estes buracos que encontramos em tais catedrais erguidas por meio das palavras? Falhas que deveremos cobrar a seu projetista, criaturinha incapaz de pensar…

E por que estamos falando em pensamento, se na verdade estamos tratando de escritos? É tão fácil confundir sujeito e seus rastros, ainda mais quando conhecemos, quando estivemos frente à frente com o sujeito que assinou a autoria de tais escritos…

A razão que move os sujeitos é estranha; e ainda, tão estranha ou mais, é a razão com que lemos os escritos… É como se pudesse existir, dentro da mesma unidade, uma outra coisa que destrói a possibilidade de sua unidade, ou ainda, de nosso critério de unidade… É como se houvesse, dentro do escrito, forças em dispersão, e também forças centrípetas, as duas coisas ao mesmo tempo… 

Se a possibilidade de dois Costa Lima é literatura fantástica, a existência de um único, mas de razão dupla, ou ainda, razões múltiplas, dependendo da velocidade, intensidade e gravidade com que se manifestam tais razões, Costa Lima poderia, meu deus, ser interditado por médicos e psicólogos, e declarado esquizofrênico… 

Graças a Deus este não é o caso, e as oscilações parecem muito mais estáveis, muito mais simples, e pelo que imagino, nada impede a Costa Lima que seja capaz de viver em sociedade e desempenhar as funções que esperam que desempenhem, inclusive a de intelectual, e é dela que estamos tratando aqui…


terça-feira, 23 de maio de 2023

porque não prestava atenção nas aulas de costa lima

Esclareço que Gilberto Freyre e seus escritos só se tornaram meu objeto de pesquisa quando, no início de 2022, decidi de uma vez por todas que não iria mais estudar literatura. O curso de Costa Lima, ocorrido no primeiro semestre de 2021, se passou portanto em um tempo em que estava com minha cabeça concentrado em problemas diversos. Haviam aqueles relativos mais propriamente à minha pesquisa, e que diziam respeito à teoria e história da literatura, especialmente da literatura argentina (depois de terminada uma dissertação sobre a crítica e seus desdobramentos na ficção de Jorge Luis Borges, havia ingressado no doutorado com um projeto de estudar a obra de outro escritor argentino - no caso, a obra de César Aira -, desta vez não a partir da questão do crítico, mas sim da problemática da profissionalização do escritor (não havia dado conta, mas agora percebo como hoje uma pesquisa era continuação - e neste caso, continuação histórica! - da anterior). O interesse que nutria pelos estudos da historiografia brasileira, portanto, na melhor das hipóteses, eram daqueles que justificamos pela esperança de, por meio da diversidade de nossos estudos, realizar a fantasia de sermos dotados da fantástica e eclética erudição que certos intelectuais - Borges, certamente, era um deles - pareciam representar aos jovens e incautos estudantes. Admito que, no entanto, conhecer a historiografia brasileira, especialmente quando o professor que lhe apresentava fazia questão desqualificá-la por completo, e que, autor por autor, não deixava pedra sobre pedra, pouco deve ter me estimulado a acrescentar escritos tão irrelevantes à erudição que eu fantasiava um dia adquirir.

Melhor, provavelmente eu pensava, era manter os estudos que fazia à parte e que nada tinham a ver com nada do que eu estudava, mas que me interessavam por motivos diversos, e ao invés de ler o que era ordenado pela disciplina, lembro preferir gastar minha semana com outras leituras. Os amigos da internet não paravam - e ainda, pelo visto, não pararam - de falar do Anti-édipo, e junto do livro de Deleuze e Guattari também fiz algumas leituras de Freud, a mais marcante, sem nenhuma dúvida, foram trechos de Psicopatologia do cotidiano (talvez porque meu primeiro contato com a psicanálise partiu de um panfleto escrito contra ela, mas nunca senti necessidade de me aprofundar na psicanálise; ainda assim, sinto ter adquirido considerável conhecimento, digamos, vulgar sobre sua teoria, já que tantos amigos falavam - e ainda falam! - sobre ela). Houve também minha aproximação com o marxismo a partir de O capital, livro que de tempos em tempos leio excertos ao acaso. Houve a Gramatologia, que primeiro, como alguém educado por certa concepção social de linguagem aprendida de Bakhtin, me pareceu detestável, simplesmente a repetir o idealismo da linguística estrutural, mas que quando compreendi pelo menos uma fração do que Derrida tinha a dizer naquele livro (Uma pena que a melhor parte do livro seja a segunda, e que geralmente quase nunca se passa da primeira, talvez pelo cansativo de sua leitura). Estava já, desde antes da Gramatologia - creio desde que li as críticas que Bakhtin faz à linguística burguesa - bastante interessado em compreendê-la melhor, e também examinei livros anacrônicos, como a Linguística Geral de Saussure, li artigos de Jakobson que pouco entendi na hora, mas que hoje, melhor compreendido o que afinal foi o estruturalismo, poderia até mesmo falar com alguma propriedade do pouco que me lembro… O ponto mais importante do meu interesse pelo estruturalismo, contudo, foram dois: primeiro a leitura d’O pensamento selvagem, de Lévi-Strauss, que junto d’A arqueologia do saber, de Foucault, começaram a lentamente germinar em meu corpo uma espécie de teoria do discurso ou da linguagem que sinto cada dia mais madura. Houve também Sade, Fourier, Loyola, de Roland Barthes, junto de tantas leituras, fez nascer em mim essa espécie de teoria da escritura e das línguas que passei a empregar como método de estudo e de análise do discurso, e que hoje trato pelo nome, um pouco livremente, é verdade, enquanto filologia, embora o historicismo típico de tal disciplina esteja consideravelmente diluído, ou melhor, desacelerado, pela lentidão que o estruturalismo (seja qual for: o de Barthes, Foucault ou Lévi-Strauss) impõe à maneira com que estudo… Aderi à filologia para descrever meu trabalho, ainda que não pretenda exatamente reencontrar a origem da linguagem estudada, após ler uma conferência de Auerbach sobre Vico, em que se difere a filologia da filosofia, e descobri assim no termo a potência que procurava para se referir a potência que via na linguagem, e que a filosofia e as ciências, em geral, desprezavam, fazendo dela somente instrumento de conhecimento… Quanto tempo demorei para compreender o que sugere Derrida na Gramatologia! O livro de Lévi-Strauss fez com que concebesse a linguagem - em sua existência mutante, histórica, cultural, social… - como um a priori para o conhecimento, como fenômeno que, assim como o incesto e o casamento, eram simplesmente necessários para que se existisse sociedade… Não, era ainda mais profunda a situação da linguagem, isto pressenti com Foucault, em sua Arqueologia do saber, porque a linguagem não era simplesmente aprioristica, a linguagem era literalmente poder, e que se o enunciado válido - sapiente, racional, compreensível - estava limitado a algumas formas, se o pensar não era livre, mas regrado e fracionado, era porque tratavasse, dentro do campo do discurso, de verdadeira guerra, e a língua era apenas face visível de sua violência… A linguagem era sim este a priori conforme propôs Lévi-Strauss, e somente por meio dela poderia se pensar… Mas Foucault introduz diabolicamente a questão da moral, a questão da história… Como afinal se veio a pensar assim? Como se deram os limites deste pensar? A favor de que? Contra o que? O que este a priori autoriza, a quem dá poder, como a partir de tais palavras, verdadeiras tecnologias de sujeição corporal, capazes de produzir nas pessoas não somente efeitos como os estipulados pela retórica clássica, não, não se trata somente de convencer o outro, mas verdadeiramente de sujeitar alguém, de constituir um corpo, uma subjetividade, a partir deste traçado chamado linguagem, não resta muito além do que obedecer… Foucault demonstrou para mim que a linguagem era ao mesmo tempo ordem e moral; E novamente, então, Derrida, e novamente, então, que a língua é a remessa infinita dos seus significantes… A linguagem não era mais meio para conhecimento nenhum, ela era também o próprio conhecer… E se nasce uma língua, se nasce um conhecimento… Se ele se dissemina… Alguma língua, algum saber, algum conhecer, alguma coisa se perde.


DEPOIMENTO DE AZUL

AZUL, este foi o nome nos dado pelo sujeito. Sua idade, endereço e ocupação também são indefinidas. Alegou não desejar revelar para a produção qualquer "detalhe biográfico por meio do qual vocês irão tentar me enquadrar dentro de um tipo". 

Sobre o que fazia antes de ser abordado pela produção, respondeu que "estava dando uma volta, [...] tomando um ar": "gosto de sair de vez em quando e ver as coisas por aí". 

Quando convidado pela produção para que falasse de sua relação com a psiquiatria e com sua saúde mental, AZUL, conforme contou a produtora responsável pela abordagem, pareceu relutar, "fez como se fosse recusar" o convite; a produtora faz a observação de que, apesar da resistência apresentada, foi muito rapidamente que AZUL passou da negação do pedido para um "falatório" que a produtora descreveu como "bélico"; suas feições se tornaram agressivas, e as palavras pareciam sair de sua boca como se fossem ofensas ditas contra a produtora. Nesse tom de voz que disse, sem que se fosse solicitado, ter recebido ainda quando criança o diagnóstico de  déficit de atenção, "que lhe fizeram tomar por anos um monte de remédios", e que "quando passaram a falar de esquizofrenia", "graças a deus eu já era velho suficiente para mandar em mim mesmo", e que nunca mais retornou a qualquer psiquiatra. 

Esta mesma produtora que abordou AZUL, contou que "percebeu rapidamente que AZUL iria sim dar o depoimento", e que o processo que empregou para convencê-lo era "mais teatro, uma cerimônia".

Importante esclarecer que a mesma produtora afirmou que tal comportamento não foi exclusivo de AZUL; que percebeu a mesma "característica em outros entrevistados", que quando "convidados cordialmente para que dessem depoimentos sobre sua relação com a psiquiatria e saúde mental para um documentário", pareciam "precisar fingir certa resistência" antes de aceitar participarem da gravação. (Nossos sociólogos e psicólogos, até o presente momento, ainda não encontraram qualquer padrão entre os entrevistados que apresentaram semelhante comportamento)

Houvesse ou não desejo imediato de falar sobre a questão psiquiátrica, enquanto esperava na antessala, não parou de falar e de se mexer por um segundo, isto quem informou foi a produtora responsável: "não parou de falar, daquela maneira desordenada", e se a forma com que falava era confusa,  contudo, "não faltava razão ou pelo menos aparência de razão em tudo que dizia". A produtora também enfatizou que era difícil compreender para quem afinal AZUL falava: "Se às vezes olhava para mim, e parecia se dirigir a minha pessoa, na maior parte do tempo andava de um lado para o outro, olhava para qualquer canto do espaço com a mesma indiferença com que se olha pinturas em uma galeria de arte, e claro, falava sem parar. Concluo que não falava para ninguém, falava mesmo para si próprio, ou para um outro imaginário. Não lhe interessava minha reação às suas palavras. Não permitia qualquer silêncio para que pudesse nascer uma forma mínima de diálogo. E se ainda assim ameaçasse interrompê-lo, ele sequer parecia perceber que eu havia falado alguma coisa. Simplesmente continuava a falar, em voz alta, naquele tom de quem estava brigando com alguém".

Me pareceu prudente destacar que a produtora de quem ouvi essas coisas, além de formada em filosofia - o que talvez justifique a distinção por ela feita entre "razão" e "aparência de razão", fazia uma pós-graduação em cinema e que tinha entre suas leituras constantes a obra da estruturalista Julia Kristeva, que entre outras coisas, estudou profundamente à linguística. Menciono esses fatos porque são capazes de explicar sua aguda percepção de que AZUL, em vários momentos de sua fala, não tinha como destinatário a nenhum dos presentes, e sim, como a produtora descreveu, que falava sozinho, para si próprio, ou então a um outro que se para nós estava ausente, para AZUL era como um demônio que lhe perseguia o tempo todo.

Sobre sua aparência, AZUL parecia razoavelmente limpo, embora vestisse uma camiseta do clube de futebol Botafogo de aparência antiga (uma breve pesquisa revelou que a camiseta era de 95, ano do último título nacional do clube), que quando o responsável pelo som se aproximou para colocar o microfone na lapela, disse que sentiu "um cheiro ruim de suor" (talvez, portanto, estivesse correndo pouco antes de gravar, ou simplesmente vestisse por dias a mesma camiseta). A calça era de moletom cinza, o que combinava com o preto e branco da camiseta, e estava bem-conservada. Nos pés, as unhas estavam cortadas, e os chinelos eram havaianas ordinárias, de cor branca e gasta. 

A pele de AZUL é escura, mas talvez seja indevido descrevê-lo como preto. O cabelo estava raspado, o que torna mais difícil identificar sua etnia ou origem. O nariz sinuoso sugere alguma ascendência mediterrânica, seja do sul europeu, seja semítica ou, ainda, oriundo do norte africano. O fluxo de migrações que historicamente caracterizou a vida social de tal região, contudo, torna difícil estabelecer com alguma precisão a sua ascendência geográfica, social, familiar e/ou genética por meio de estudos fisionômicos. Os lábios eram largos, o que junto de seu tom de pele, reforça seu aspecto mestiço, e portanto, de difícil determinação étnica. Juntos com os detalhes que AZUL concedeu sobre sua história familiar (logo abaixo transcrito) adotamos a conclusão de que sua família já estava no Brasil há pelo menos algumas gerações, muito embora seja impossível precisar qualquer origem anterior à migração, seja internacional, seja nacional (quando perguntado se ele ou seus pais eram naturais de São Paulo, AZUL simplesmente não respondeu).

Embora negasse constantemente nossas abordagens biográficas, enquanto falava sem parar na sala da pré-produção, contou ou deixou escapar alguns detalhes sobre sua história familiar. O pai morreu quando tinha quinze anos, "nunca gostei dele, estava sempre longe de casa, [...] tinha amantes, [...] eu só entendi depois de velho". "Meu pai", disse AZUL, "trabalhou com um monte de coisas, mas quase sempre dirigia, ônibus e caminhão", e destacou que "por muitos anos trabalhou de caminhoneiro". Um ofício tipicamente nômade que, pelo menos em parte, explica tanto a ausência do pai na vida de AZUL quanto as amantes que, nas palavras do filho, "no enterro descobrimos que tinha em todo canto". O psicanalista da equipe, em comentário que ele próprio descreveu como "simples exercício de imaginação executado a partir da mais rudimentar teoria psicanalítica", que "a raiva que [AZUL] manifesta tão facilmente diante de estranhos possa ter como uma das raízes a conturbada relação com o pai". 

Sobre a mãe, AZUL, conforme contou para nossa produtora, foi "professora de escola, dava aula para crianças". Falou dela de maneira mais breve que do pai, mas disse que a mãe "sempre [lhe] amou muito", e que "fazia tudo que podia por [ele]". Disse também - e neste momento, como descreveu a produtora, "AZUL abaixou o tom de voz para dizer" - que  a mãe "morreu nova, tragédia horrível", quando tinha "vinte e um anos"; "morta em acidente de automóvel". 

Pareceu comovido quando entrou na sala da produção. Uma das câmeras já estava ligada, então pudemos observar várias vezes o jeito cabisbaixo com que entrou na sala, e como acatou pacificamente sentar na cadeira indicada. 

Quando lhe foi introduzido ao diretor do documentário, feito um animal selvagem que subitamente se torna arisco ao detectar uma ameaça, sua postura voltou a ser de combate. O diretor saiu de imediato da sala, ao notar que provocara tamanha alteração de humor no entrevistado.

Mesmo depois que o diretor saiu, AZUL se manteve em posição estranha, bradando histericamente "ter concordado falar estritamente dos médicos [...] não sobre [sua] vida pessoal". 

Quando vista no vídeo, vemos a posição de AZUL sobre a cadeira, o quadril elevado, prestes a se levantar, mas sem nunca verdadeiramente realizar o ato, porque seus braços magrelos, apoiados na cadeira e tremendo pelo esforço de suportar o peso do corpo, faziam que parecesse uma estátua, ou ainda, demonstravam a indecisão entre levantar e ir embora de uma vez ou sentar e dizer o que tanto queria dizer.

Esta cena em que AZUL se suspende na cadeira fez que o diretor comentasse, durante a pós-produção, o seguinte: "O quanto falar custava a esse homem, ao seu corpo, e o quanto este homem desejava falar, mesmo contra o seu corpo..." Alguns quiseram inserir essa fala no corte final, mas o diretor recusou. Acrescento também as palavras que a produtora, a mesma que lhe convidou para gravar o depoimento, respondeu à fala do diretor: "O corpo talvez quisesse sim falar"... 

Pareceu melhor ao diretor que a produtora conduzisse a entrevista. O diretor, segundo explicou depois, tinha esperança de que AZUL "demonstrasse melhor abertura para ela, a quem já havia falado algumas coisas", e também porque "os homens, isso aprendi pela experiência, a certo gênero de confidências que preferem fazer às mulheres".

A produtora perguntou de seus avós, e AZUL decidiu-se por ficar sentado. Como quem acabara de realizar um grande esforço físico, falou um pouco sobre a mãe de sua mãe, que "sempre foi dona de casa, e que cuidava de mim quando minha mãe trabalhava", mas que "morreu de doença", não especificou qual, quando AZUL tinha sete anos. Sobre os outros avós,  disse vagamente que um avô "que morreu quando ainda [ele] ainda era um bebê [...] trabalhava com algum comércio de merda", que ele não sabia bem qual, mas se lembrava "de alguma história relacionada com sapatos". 

Depois de dizer que o avô era "alcoólatra e que deixou dívidas para [sua] avó", começou e não parou mais de falar sobre aquilo que em algum momento chamou de "abusos da medicina". 

Alegou que faria aquilo somente porque "era necessário que pelo menos alguém falasse alguma verdade no documentário". Se mexe bastante enquanto fala, principalmente as mãos, que não param quietas. O pé direito, que sacode involuntariamente, fez uma das pesquisadores sugerir que estava ansioso ou sob efeito de alguma droga. AZUL, quando perguntado, negou que tomasse qualquer medicamento, "mesmo os prescritos". Anoto a suspeita mesmo que não possa ser confirmada; mais prudente registrar a dúvida do que deixar o branco do papel silenciar a possibilidade dela ser uma verdade. 

Quando foi solicitado que descrevesse a si mesmo, provavelmente por imaginar diante de uma plateia de psicólogos ou médicos, definiu-se como "sujeito simples, que talvez fosse sim relapso, porque se distrai com os pensamentos com grande facilidade, e que [tem] facilidade em esquecer das coisas", mas cujo "sintoma adequado ou convencional que médicos e psicólogos empregavam para classificar [seu] jeito de ser e de existir", a maneira com que "igualavam sua psicologia com a de meio milhão de pessoas" que contudo "poderiam se comportar de maneiras muito diferentes, mas que eram medicadas segundo os mesmos procedimentos ou instruções ensinados nas faculdades de medicina" era o de "portador de déficit de atenção". Enquanto a equipe enquadrava adequadamente a câmera e testava-se o microfone, falava sobre o "absurdo de acreditar que indicar em que um chinês sofresse de déficit de atenção", uma pessoa cuja "vivência, cultura e mentalidade era totalmente diferente da [dele]", de alguma forma pudesse transformá-lo em "um análogo psicológico" ao seu caso, e que a ciência psiquiátrica somente poderia se basear "ou na universalização do capitalismo como cultura", porque AZUL, disse isso de maneira tão insistente que levantou-se da cadeira, "porque a psicologia, a biologia, não é um dado natural!", e já sentado, explicou que "a cultura, a geografia, os costumes" e "muitos outros fatores deveriam participar das descrições daquilo que vocês médicos" e aqui apontou para toda a equipe, sem qualquer distinção "impõe aos seres humanos..."):


AZUL (este foi o depoimento oficialmente gravado): Bom... Isso que vocês chamam de prestar atenção, não sei, o viver no aqui-agora que esperam que eu viva, não é somente para mim uma coisa de difícil execução, mas também coisa com quê de indesejado. É estranho, mas gosto de viver em outros tempos, em outros lugares, em que minha memória e imaginação me convidam a ir, e a verdade é que aprecio a viagem, e me apetece muito poder aceitar seu convite sem receber reclamações da professora, ou ainda, que me receitem medicamentos... Sei que não posso viver perdido em mim mesmo, eu sei que o mundo exige de mim essa coisa de prestar atenção nos estudos, nos livros, no trabalho, que seja, e até acato a ordem, porque sei que não é somente ordem do médico, de meu pai, da psicóloga do colégio, mas de toda sociedade, e que se a ela não me adequar, bom, estarei perdido, então a ela quero me adequar, eu preciso me adequar, e portanto aceito o diagnóstico, tomo os remédios, me comporto conforme parece ser adequado, e espero que assim consiga viver bem e ser feliz...

"Há vezes, no entanto, que o prestar atenção de que tanto falam, me ocorre, independente das ordens, independente das necessidades, independente de tudo e qualquer pessoa, e eu presto atenção simplesmente por desejo prestar atenção, porque - não importa o porque - ocorre essa coisa que desde criança disseram que eu era incapaz de fazer...

"E simplesmente, sem grandes esforços, sem mesmo qualquer remédio, presto atenção porque desejo prestar atenção.

"E quando isto me acontece, difícil descrever a sensação, porque é de um erotismo tão profundo... mas não falo especificamente de sexo, de orgasmos, mas se quiser pode imaginar assim... É algo muito forte, nem alegre e nem triste, embora possa conter algum desses sentimentos - às vezes contém os dois de uma vez -...

"Quando presto atenção porque simplesmente desejo prestar atenção, não é somente meu intelecto, os químicos que os médicos nos impõe e que aceitamos de bom grado como explicação para o que sentimos e vivemos...

"Prestar atenção, quando ocorre, ocorre em todo o meu corpo, em toda sua extensão. E se existe espírito dentro ou fora de mim, sinto que eles estão por perto. Porque quando presto atenção tudo parece diferente. Tudo parece novo. As coisas mais simples ganham capacidades banais. O ordinário torna-se belo. Ou o contrário, às vezes percebo como na verdade é grotesco. Quando presto atenção, alguma coisa sempre acontece, e não vou falar muito mais, já que não saberei descrever. Desculpe, infelizmente não sou capaz de ultrapassar este ponto que costumam chamar de epifania, e terminarei meu discurso da maneira que um místico termina os seus: em silêncio.

"Wittgenstein diz que é melhor calarmos aquilo que não conseguimos dizer. Não cumpro seu mandamento, não só porque não li seus livros, e que portanto não sou nenhum seguidor, mas também porque me parece um conselho estranho, já que todo discurso, queira ou não queira, é seguido de silêncio".

(AZUL subitamente para de falar, e transcorrem exatos um minuto e trinta e oito segundos, AZUL indiferentemente olhando para os pés, até que a produtora diga alguma coisa).

ENTREVISTADORA: "e o silêncio, às vezes, também é um discurso..."

AZUL (como se não ouvisse): "Não que sejam ocasiões assim tão raras, mas geralmente estão reservados... ou melhor dizendo, encontram contextos mais propícios para o desabrochar quando estou com alguém que amo, ou quando estou sob efeito de alguma droga, ou quando estou escrevendo, ou quando estou lendo... 

Olhou para a produtora e perguntou se podiam terminar o depoimento naquele ponto. Levantou e foi embora.

ai, minha fama de maldito, 2

O after na casa de Pedro Fernandes estava uma bosta. Gente fumando maconha pelos cantos e fazendo aquela média com todo mundo. Artifício emo...