sábado, 22 de junho de 2024

ai, minha fama de maldito, 2

O after na casa de Pedro Fernandes estava uma bosta. Gente fumando maconha pelos cantos e fazendo aquela média com todo mundo. Artifício emocional, amizade por cortesia. Claro, como o verme que fui treinado a ser, também comia as carnes daquele enorme corpo social. Era todos sorrisos e, vez ou outra, falava alguma piada espirituosa. 

Na maior parte do tempo prestava atenção nas mulheres, como se esperasse qualquer sinal receptivo para começar um assunto que precipitasse na direção de sua intimidade. Um sorriso, uma palavra lisonjeira, um olhar ou sacudir de cabelos, tudo poderia ser um indício de que a fêmea deseja acasalar. Ah, mas o corpo social! Como é hábil em nos aproximar por motivos fúteis - os jogos de sorrisos e comentários divertidos, o mexerico sobre a vida alheia, as discussões estúpidas sobre o conteúdo pútrido que a indústria cultural nos serve de alimento... tudo isso me enoja... -; próximos por essas futilidades que somente servem para reprimir nossos impulsos selvagens e violentos, de amor e de ódio. Espreitava cada um, como se tivessem uma intenção oculta a ser desvendada... Os machos sabia que procuravam, de forma insistente e estúpida, um corpo belo para despojar as energias acumuladas durante toda a madrugada por estímulos sensoriais desregrados. E as mulheres? Seus corpos sempre reservam um quê de enigma, desde que era criancinha. Que queriam? Espiava nos rosto delas, no movimento suave do corpo, na forma com que se arrumavam e se portavam, tanto cálculo, tanta razão, mas para quê? Qual a intenção dominava a profundeza de suas máscaras? Queriam também, simplesmente, acasalar? E se queriam, por que simplesmente não se entregar de uma vez, se sabiam que todos os homens estavam a espreita? É a velha história do histerismo, não é? Desejos reprimidos, desejos que aprenderam a reprimir, e que refluem nos sintomas mais doentio... 

Me recrimino, é claro que me recrimino, por pensar como homem. Sinto culpa, a despeito de tudo que desejo. A culpa é a fábrica de um novo corpo, me expliquei, para me consolar dessas energias que imponho contra mim mesmo. O que meu pensamento de homem oculta sobre a mulher? 

Não queria pensar em mais nada. Estava cansado. Queria chegar em casa, bater uma punheta assistindo pornografia e esquecer de tudo que meu corpo me ensinou. Estava sentado em um canto afastado, pedindo um moto-táxi, quando Pedro Antunes se aproximou.

- Já vai, meu amigo?

- Está na minha hora, respondi sem tirar os olhos do celular.

Pedro Antunes olhou para um lado e para o outro, como se quisesse verificar que estávamos sozinhos. Se aproximou de mim e, mais baixo, falou em um tom de voz cuja gravidade me surpreendeu e fez com que levantasse os olhos:

- Poderia falar brevemente com você?

- Sobre?

- É um assunto delicado.

- Pode falar. 

- Você é advogado, não é? 

Imaginava que viria uma série de perguntas a respeito de instruções judiciais, coisa que já estava acostumado desde que me tornara, a uma década atrás, um estudante de direito. Não fiz questão de esconder o suspiro impaciente que soltei.

- O que você quer saber?

- Não é saber... Preciso contratar seus serviços...

- Meus serviços? Nunca exerci, Pedro. Sequer tenho carteirinha da ordem.

- É um caso especial. 

E Pedro Antunes passou ao estranho relato de como havia sido processado pelo fantasma de um filósofo inglês do século XIX. 







ai, minha fama de maldito, 1

acordei as duas da tarde, de ressaca e de roupa de ontem. fui andando já na direção do bar. almocei um prato feito de fígado com batata frita enquanto bebia uma coca zero com gelo. na televisão passava jogo da liga dos campeões da europa: barcelona e borussia dortmund. o garçom, um paraibano de uns trinta e poucos anos chamado robson, viu que eu mirava a televisão e disse sem olhar para mim, o sotaque carregado, que o primeiro jogo foi dois a zero pro borussia dortmund. ficamos batendo papo sobre futebol até terminar de almoçar. era um bom sujeito, esse robson. trabalhava desde sempre no bar. às vezes deixava uma gorjeta de umas cinco pratas pra ele. e ele, como se fosse parte de um acordo, caprichava nas doses que sempre tomava antes de ir. naquele dia tomei campari com água tônica, estava de ressaca. 

saí dali e subi até a boca para comprar uns pinos de pó, os meus haviam acabado ontem, mas ainda tinha nariz para cheirar essa noite. fui para casa e fiquei lendo por umas duas horas sobre a biografia de frederich nietzsche. filho de pastor que morreu quando ele ainda era criança nietzsche foi criado pela mãe. a relação com ela era problemática. talvez isso explique a visão misógina de nietzsche. dizem que amou mulheres: a verdade é que somente amou-as como objetos. para todos efeitos, nietzsche era homossexual. e monogâmico. o único amor de sua vida foi seu velho professor de filologia. um verdadeiro pai substituto, que colocou nietzsche nos trilhos da vida. arranjou para ele uma entrevista na universidade de basel, além do diploma de filosofia necessário para que fosse admitido. um verdadeiro pai, que impõe ao filho uma direção na vida. impede que seja um vagabundo, pra cima e pra baixo, sem aspiração fixa. nietzsche, pelo que dizem, viveu um curto período boêmio, para depois pateticamente se converter a um ideal abstêmio. dizia ser por conta de seu estômago, mas a verdade é que nietzsche tinha a vontade fraca. tão logo enxergou a sombra do pai substituto que sempre procurou, tão logo fez questão de entrar na linha. até quis lutar na guerra para honrar seu país. foi um sujeito patético. a sua obsessão com lou salomé foi apenas mais um documento de sua patetice. a primeira vez que uma mulher inteligente lhe deu atenção, uma mulher que não se interessava somente por solos de piano e bailes no jantar, e caiu de quatro. perseguiu salomé por toda europa, até que ela decidiu se casar. foi esse homem que pateticamente escreveu uma filosofia em que se proclamava senhor de si. sua nobreza era uma tremenda extravagância de sua imaginação. compensação de suas faltas tão latentes como homem. nunca se casou, é claro, assim como nunca realizou suas fantasias urânicas gregas (alguém tão apaixonado pela vida grega como nitzsche era somente pode se desviar da pederastia por muita repressão). contei essas e outras coisas para justina enquanto bebiamos em um bar da lapa. ela ouviu e fez alguns apontamentos sobre minha psicanálise excessivamente falocêntrica. dei de ombros e me justifiquei dizendo que para um homem falocêntrico somente uma psicanálise falocêntrica poderia dar conta. bebemos algumas garrafas até que fomos para seu apartamento no flamengo. 

assim que entramos apertei ela pelo pescoço com força. atirei seu corpo frágil de boneca no sofá e esfreguei meu pau na sua cara. com cara de assustada, ela tirou ele da calça e começou a chupar. enfiei ele fundo em sua garganta e ela cuspiu, ofegante, a saliva escorrendo no chão. beijei ela na boca.

transamos por umas horas, tomamos banho e saímos para jantar com alguns amigos. eram, no caso, dois escritores detestáveis, que no entanto estava tentando me aproximar. para tentar emplacar minha carreira literária. luzia light era uma transexual alta e arrogante que escrevia poesia de quatro versos. não sabia se as pessoas fingiam gostar ou se realmente gostavam daquilo. se gostavam, pensava, é porque poesia se tornou um tipo de decoração ou coisa parecida. nossa sensibilidade entupida de tanta merda não consegue sentir mais nada e se satisfaz quando encontra o jogo de palavras mais estúpido. e luzia light, além de má poetisa, também era desagradável. não deixava ninguém falar. adorava ser o centro das atenções. com ela na mesa sempre estávamos a falar de sua vida ou de seus interesses. ela ditava o rumo da conversa, como uma apresentadora ruim de podcast que não deixa seu convidado seguir o curso de seus pensamentos. e o pior é que luzia light era psicanalista. não conseguia conceber como seria vê-la calada, auscultando o inconsciente de seus pacientes, contendo suas reações, calculando os estímulos que produziria. a outra literata que estava com a gente se chamava marta terra. admito que sua arte não me desagradava tanto. era somente medíocre, como costuma ser medíocre a arte que transforma a pornografia e o choque em finalidade. formada na academia de belas artes, era também pintora, e havia sido adestrada em certo discurso deleuziano sobre o corpo e os afetos que trazia a tona sempre que possível, fosse porque estava sempre lendo ao "anti-édipo" (fazia uns dois anos que postava foto lendo-o na praia), fosse porque tudo que falávamos, por algum motivo, parecia afim da filosofia deleuziana, coisa que demostra ou a pobreza de nossos temas ou a magnitude de deleuze. 

aguentei com disciplina monástica quase duas horas sem cheirar pó. pedi licença, fui até o banheiro e dei uma rajada generosa. limpei com cuidado o nariz, não queria ser percebido. luzia light já havia me pedido um teco e eu disse que estava fraco. ela me olhou atravessado, mas disfarçou: sorriu, disse estar na fissura e mudou o assunto. 

voltei e estavam discutindo sobre comprar pó e ir para uma festinha, e daí deduzi que havia dado pinta que iria cheirar. sempre que um viciado pede para ir ao banheiro desconfiam que ele irá cheirar. de qualquer forma, ligaram para um dealer e em menos de uma hora estavamos indo para a festa abastecido de pó e ketamina. entramos de graça (marta terra era amiga da produção) e queimamos nossa onda por um tempo. estava, como sempre, de óculos escuros. é minha forma de reduzir a ansiedade social que esses lugares lotados me causam. odeio sentir que sou observado. os óculos me produzem a ilusão de que estou invisível. por causa dos óculos escuros, não percebi a aproximação de pedro antunes. pedro antunes era um velho conhecido. um escritor fracassado de quarenta e poucos anos, que no entanto fingia estar na flor da idade. só andava com gente vinte anos mais nova que ele. publicou alguns romances, era conhecido entre os editores da cidade, e isso era suficiente para os aspirantes a escritores lamberem seus pés. como estava tentando ajudar minha carreira, decidi ser simpático com pedro antunes. ele fedia a cigarro e suas pílulas estavam do tamanho de moedas. me abraçou como se fossemos bons amigos. conversamos e ele me convidou para o after no seu apartamento.

sábado, 15 de junho de 2024

diálogo com seteondas sobre "dom casmurro"

MZ: não sei se é boa a reputação de josé dias entre os leitores de "dom casmurro", já que é o clown da novela, mas por baixo de sua eloquência ostentosa, me parece uma alma simples e até inocente. o vício de exagerar as orações, a cerimônia com que trata a todos, a vaidade que pensa passar despercebida, guarda a face de uma criança ainda encantada com o mundo, que brinca com as palavras e se impressiona com a grandeza.

7O: Pra mim ele é o personagem mais interessante fo romance. Sua leitura da inocência se sustenta, mas prefiro lê-lo como sempre fingindo (até mesmo o que deveras sente, como diz o Pessoa) Sendo assim uma persona da falsidade do beletrismo das elites e quase-elites. Somando isso ao (suposto) fingimento de Capitu e ao narrador não-confiável, o resultado é um romance sobre passar os outros pra trás. E um detalhe, a profissão original dele: médico homeopata. O tema velho do charlatão (Molière...) que, sobretudo na homeopatia, segue quente!

MZ: acho que é a leitura convencional. existem vários josé dias em machado de assis. mas como você disse, o "sempre fingido" de pessoa possui uma dimensão que nossa exigência se autenticidade não bem compreende. na própria história, censuram ezequiel, filho de bentinho, pelo gosto de imitar. não é afinal o gosto do beletrista? o gosto pelo teatro? pelo gestual? enfim, fingidor que em algum ponto esquece que finge.... Vejamos diferenças entra a imitação de josé dias e a dissimulação de capitu: o primeiro é infantil, e mesmo estúpido. a segunda não, ela possui domínio da razão: finge com cálculo. são dois níveis diferentes de fingimentos: capitu finge para esconder algo. josé dias finge, mas sem esconder: sabemos que ele finge deveras: é transparente, é um charlatão, um beletrista cortês. ela, ao contrário, dissimulada, sempre guarda a dúvida.

7O: Sim, está aí tb a grandeza da obra. Mesmo à beira da morte - em tese um momento de sinceridade - o agregado não abandona o superlativo. A máscara é teatro mas também é real. Há tb, e é um tema caro ao R. Schwarz, a importância social do agregado como elemento do antigo regime em oposição às relações impessoais de compra e venda de trabalho. Em tese a modernidade descrita por Adam Smith e Marx não teria espaço pro agregado, mas no Rio de 1900 eram bem comuns e talvez nunca tenham sumido até hoje, apenas assumiram novas máscara.

MZ: acho que existe  uma divisão social do fingimento: pelo menos em machado de assis e outros. o tema da dissimulação e do segredo é muito afim às personagens femininas: gestos que ocultam alguma coisa. já aos masculinos, cabe a teoria do medalhão: a ostentação sem nada embaixo. o caso feminino nos leva a uma teoria da linguagem mais modernizada, hermenêutica, em que por baixo da expressão existe um significado oculto. o masculino, como você coloca, remete a uma sociabilidade mais arcaica, em que a linguagem é antes retórica do que conteúdo.

gilberto freyre é um antropólogo naturalista, mas...

me enveredo em uma longa análise da obra de gilberto freyre a partir das ciências naturais-biológicas para chegar no ponto e dizer ao leitor que, no entanto, a obra de gilberto freyre não é uma ciência-natural-biológica. tanto gasto de tinta pareceria ocioso se fosse para confundir o modelo epistêmico de sua sociologia com o das ciências positivas. se me demoro construindo esse tal modelo, se perco tempo demonstrando suas afinidades com os grandes livros de gilberto freye é, em primeiro lugar, por "estilo argumentativo", viciado sempre nos modos adversativos, em que depois da preposição se introduz um "mas", um "porém", um "todavia", que introduz ao sentido previamente e às vezes longamente construído um desvio. 

sim, gilberto freyre possuí séries de semelhanças com as ciências da natureza, sem que, no entanto, deva ser confundido com. 

nascido na alvorada do século XX, a formação de gilberto freyre manteve laços estreitos com a antropologia modelada enquanto um ramo dos estudos evolutivos e de hereditariedade, sem, todavia, deixar de se debruçar naquele domínio que que dilthey iria tratar como o da lebenphilosophie, e que pode ser relacionado com aquilo que husserl trata por lebenswelt por se tratarem de um conhecimento incapaz de ser formulado pelas ciências positivas, e nos quais, historicamente, se desenvolveram aquilo que convém chamar de "ciências humanas" ou "humanidades". 

que as humanidades venham a ser constituídas enquanto uma "filosofia da vida", como uma ciência do "mundo da vida", demonstra a ambiguidade e imprecisão circundante a todo conceito de vida no século XIX e XX: por um lado, a vida se converte em biologia, em estudos experimentais realizados em laboratórios, por profissionais zelosos pelos métodos de mensuração e pela aplicação de modelos da física e química ao estudo dos seres vivos; por outro, uma compreensão da vida e natureza legada - provavelmente  - do romantismo, que se caracteriza pelo turbilhão da experiência incapaz de ser sintetizado fielmente pela técnica científica. 

gilberto freyre, embora fosse ou almejasse, durante as primeiras décadas de trabalho, ser um cientista, não deixou de compreender a vida enquanto esse fenômeno romântico, excessivo, cuja formulação mais clara em sua obra está relacionada com sua analogia entre o sociólogo e o romancista, a pretensão de representar a vida do curso de seu movimento, de expressar pela extensão da representação aquilo que a métrica e unidade conceitual eram incapazes de aludir. 

não preciso dizer que essa compreensão de gilberto freyre rapidamente se tornaria anacrônica: a primeira edição de casa-grande & senzala nos estados unidos foi recebida com críticas ásperas, direcionadas principalmente à "metodologia mística" - termo empregado pelo próprio gilberto freyre, e que remetia a dimensão auto-biográfica, proustiana, meditativa, com que escreveu o livro -, que ao crítico parecia inadequado ao trabalho verdadeiramente científico da antropologia. e o resto, como sabemos, é história, já que em nosso próprio país se desenvolveria, a partir de são paulo, quando profissionalizada nossa universidade, uma crítica análoga, e ainda mais vasta, contra a "anti-cienticifidade" de gilberto freyre. 

a questão se torna, então, não somente o que seria essa "libenphilosophie" de gilberto freyre, ou no que consistiria a porção de sua obra ainda indefinida, em espera, indicada apenas como um negativo - um "não é" - das ciências positivas, mas também como essas próprias ciências positivas em que gilberto freyre construiu seu modelo científico, ao longo do século XXX, se desatualizaram, se tornaram literalmente ultrapassadas, ao ponto de que, nos anos 70, quando gilberto freyre trata de "como e porque é e não é sociólogo", fará somente acenos discretos a elas, preferindo investir na outra direção de sua obra, caracterizada pelo intuicionismo, a relação entre sociologia, arte e vida, a influência dos sociólogos alemães a partir do seu modelo empático-compreensivo, a herança mística e  de reflexão auto-biográfica dos ibéricos, os relatos de viajantes, etc, tentando assim construir um modelo contra a ciência em voga.

duas meninas, justine e juliette

justine conhece o desejo em três graus de longitude: a distância da palma da mão, nos romances que lê sozinha, sob o toque suave do lençol; pela janela do quarto, em que se mostra, segura, aos rapazes que passam; pelo temor das mãos ferozes que esperam em cada esquina da cidade. como me esquecer? há ainda, e não menos importante, os bales e jantares, em que aperta mãos gostosas, às vezes devagar para sentir-se apertada por elas. ou ainda, quando entrega seu corpo para dançar, de um lado ao outro do salão, em volúpia regrada pelo compasso da valsa.

lembro-me de juliette, sem conseguir esquecer de suas costelas salientes, a pele clara, quase transparente, fina como papel, para que escrevesse desregrado, como criança que desenha sem saber desenhar, meu desejo sádico impronunciável. sujeito de todos desejos possíveis, significante em cujo arbitrário introduzia todos discursos do mundo, atirava juliette para cima e para baixo, e ela ia para cima e vinha para baixo, sem reclamar, sem sequer uma queixa, silente, somente, como uma coisa, ou quando muito, quando abria a boca, uma atriz.

a fala voa, a escrita fica

graças a deus, criador da extensão que veloz dispersa a energética matéria, a duração da fala é vã e passa, mas quanto tempo de silêncio é necessário para merecer escrever uma só palavra, que a frágil espessura do papel condena a durar enquanto permitirem as chamas e traças?

depois de kant: positivismo e metafísica no espaço transcendental

na história das ciências humanas escrita por foucault, a filosofia de kant adquire a importância de um singular acontecimento. depois de sua célebre crítica à metafísica, foucault indicará duas tendências opostas e conflitantes que, não obstante, estão erguidas sobre o mesmo terreno movediço deixado pela crise da representação clássica. 

tornada impossível a pretérita correspondência entre as palavras e as coisas, com a filosofia avançando na direção das relações transcendentais entre as representações, dos fundamentos subjacente a toda experiência, surgem duas escolas cuja guerra orientou a filosofia do XIX: por um lado, o positivismo, que declarado proibido o conhecimento das essências, despreza a metafísica como incognoscível, e se decide a estudar os fenômenos empíricos. por outro lado, nesse espaço criado pelo objeto transcendental, surgem as metafísicas especulativas, que procuram ultrapassar a penúria empírica do positivismo por acenos na direção da intuição, do imaginário. 

destas duas escolas pós-kantianas, os positivistas são assemelhados aos físicos, aos matemáticos, e por meio da linguagem métrica, da imaginação mecânica, procuram restituir aquela ordem perdida depois da crítica. os metafísicos, certamente mais próximo dos místicos, dos artistas (em sentido romântico, claro), ao passo que pareçam um tanto quanto pré-criticos em seu matafisicismo, em seus acenos na direção das essências, somente podem se constituir a partir da constatação da separação do ser e do fenômeno, da coisa e da representação, nesse vácuo que torna a ontologia um processo mais misterioso e enigmático.

notícia parnasiana

a sinhazinha da ketamina aspirava pelas narinas substância alva esfarelada. narcopiletica viajava pelos campos brancos oníricos. seu corpo belo rijo fedia a mijo. pingava gota a gota a substância amarelada do carmim engenho d'água. na calcinha, acumulada, do grande peso nasceu um rio. em fina cascata, escorria pelo piso, as luzes  douradas do sol a iluminava. era um dia lindo, este, que entrava pelo vitral da casa, em que a sinhazinha da ketamina morreu desacordada, por apoplexia fulminante. era, a jovem, fumante. um cigarro ainda brilhava no cinzeiro, estrela solitária, naquele triste banheiro, que fedia a urina, fumaça e cadáver.

carta aberta ao filott

se manifesta muito ódio entre o filott, mas venho cá dizer que, via de regra, no tempo regular do cotidiano, é ódio do tipo civilizado, com troca de farpas que não exclui algum respeito, antagonismos que não terminam em inimizades, picuinhas que não causam guerras. é o correto. 

a guerra acredito ser legitima: não sou nenhum liberal. somente seria estúpido uma animosidade excessiva por aqui, que claro, de vez em quando os ânimos se excitam o suficiente para ultrapassar o limiar do razoável, mas faz parte. grande defeito é empregar toda essa energia na usina nuclear do sr. musk. creio que já está em tempo das meninas e rapazes se organizarem melhor, ultrapassar a organização confortável imposta pela lei do algoritmo e formular um modelo de ágora mais adequada às necessidades.

termino com essas palavras a minha defesa de uma cultura digital mais politizada. espero que elas encontrem nos corações dos senhores um lugar de acolhida. 

assinado,

mallarme.

cansaço diário

acordei tarde. a ansiedade com o horário - examino o relógio o tempo inteiro -, a insatisfação com a perda diária, infinitesimal, de produtividade - sou meu próprio chefe - certamente predispôs meus nervos a tristeza. não deu outra: abri o celular, o olho sujo de remela ainda, e uma coisa qualquer, banal e incapaz de perturbar ninguém, foi suficiente para me deixar melancólico. resolvi comer café da manhã na rua, é coisa que faço para tentar acrescentar alguma dignidade ao meu dia. lembro de que assim faziam os escritores no século XX, que imito por fantasia, já que há muito escrevi do sonho de escrever. enquanto caminho até a padaria, faço as contas: quatro e cinquenta o pão com ovo, mais quatro o café, e com certeza vou pedir outro, então doze e cinquenta. não sei porque animo essas contas fora a pretexto de me torturar, já que não controlo meu dinheiro para além de pagar minhas contas todo mês, mas faço mesmo assim. cumprimentei a garçonete, que me conhece pelo nome, pedi a comida, que estava até saborosa. conversei com um outro cliente, primeiro sobre os acontecimentos da política internacional, depois sobre os nacionais, e por fim ele me contou uma história de sua vida. era advogado, e certa vez foi preso. a história é boa, mas não quero escrever por preguiça. voltei então para casa (tudo isso durou menos de trinta minutos) e voltei aos meus afazeres de todos os dias, desde o primeiro minuto contando as quatro horas que demorariam para que pudesse fazer a pausa para almoçar os restos do jantar de ontem.

foucault sobre o escatológico e o positivista, a promessa e a redução

interessados na discussão sobre dialética, abram a página 439 do "as palavras e as coisas de foucault", a seção "o empírico e o transcendental", em que foucault caracterizará o discurso positivista e escatológico, comte e marx, como de uma "ingenuidade pré-crítica" (p. 442).

o positivismo é um conhecimento da redução: um discurso que busca o ser discursivo anterior a qualquer discurso, capaz de falar o objeto em sua pureza pré-linguística, e por que não?, pré-humana, para-humano, meta-humano, etc.

a escatologia, por sua vez, é o discurso da promessa: o objeto será conhecido em sua pureza e nudez somente depois do discurso; será revelado por meio das críticas sucessivas ao discurso pretérito, sempre capazes de refazer e elevar sua relação com o objeto apreendido. é um discurso pós-linguístico, que por meio da linguagem, não obstante, ultrapassará os seus inconvenientes, para enfim conhecer aquilo que anteriormente era prometido conhecer.

no término da leitura de "as palavras e as coisas"

com as últimas notas, que crescem em retumbante operística, ainda a ressoar em meus ouvidos, termino enfim "as palavras as coisas". da densa história das ciências humanas, foucault conclui por sua brevidade: nascido velho, o homem encontrará desfecho tão logo aconteça o prometido desfecho. 

se por um lado sua obra é de análise meticulosa, de scholar, pesquisador profissional, por outro ela segue o caminho indicado por sua estrela-guia, nietzsche: confecção de saber que antes de tudo é mapa e bússola, forma de orientação no tempo e espaço do pensamento. estamos no limiar da humanidade, conclui foucault no apêndice profético feito à meticulosa história que escreveu: formado o homem na dispersão da linguagem, quando, no século XX, os indícios indicam seu re-congresso - a literatura, a linguística, o estruturalismo, a psicanálise - por que não concluir então por um desaparecimento desse mesmo homem cujo saber está delimitado por sua natureza finita, no reduplicar empírico-transcendental que lhe põe e lhe pensa no mundo o mundo (e vice-versa), que enxerga no seu pensamento a extensão do impensável a ser coberto pela razão, busca por uma origem ausente e prometida? desculpem se não falo em termos claros, somente tento formular a questão obscura do humano nas palavras que, pelo progresso lento, reiterativo e metódico do livro, foucault faz surgir de maneira clara em nosso espírito. é um livro, portanto, de paciência, cujo saber nasce por um progresso análogo a de uma viagem: não por expedientes conceituais que esclarecem de imediato um ao outro, em economia precisa de significação, mas em experiência em que a paisagem se desenha somente na extensão, nunca na brevidade do instante. por isso a lembrança tão francesa do ensaio cartesiano, que embora não recuse a ordem e o rigor da composição, seus termos estão em seu lugar em relação a uma extensão, uma escritura que ganha sentido na longa duração da espera, da leitura, da meditação, da paciência. um livro, portanto, para se demorar.

mais uma revisita ao brasil de gilberto freyre

depois de muito tempo voltei a ler gilberto freyre. "sobrados e mucambos". havia me esquecido como é estranha sua sociologia: no desarranjo que faz com a teoria social, nos cortes e ligações entre conceitos antigos, criação de outros, cria a impressão não só de uma individualidade de estilo ou teoria, mas também de uma individualidade de brasil. a impressão que me causou, depois de um bom tempo sem visitar seus livros, é de que a paisagem traçada produz um efeito etnográfico, de enviar o leitor a uma região estrangeira, diversa daquelas construídas pela sociologia corrente, europeia. a aproximação da sociologia com o gênero etnográfico me parece se relacionar com a liberdade ao mesmo tempo formal e teórica dos etnógrafos: submissos menos às convenções (formais e teóricas) do gabinete científico do que aos impulsos orientados pelas impressões do campo. é claro que, para uma história do brasil patriarcal, falar em "campo" é um pouco impróprio, mas, a partir da teoria proustiana, meditativa, que atravessa a história de gilberto freyre, o campo poderia ser entendido em sentido duplo: tanto aquele que prolonga romanticamente o passado no presente vivido, e o arcaico seria reencontrado, em seus restos e ruinas, no presente moderno, mas também no próprio corpo do pesquisador, gilberto freyre, que seria parte dessa história sentimental brasileira, dessa sucessão de afetos e desejos regionalmente contidos, fisicamente postos a circular, socialmente orientados, que constituem os sujeitos moventes pelos espaços do território-nação. o corpo seria então uma espécie de campo: o fato de servir-se de si como documento, dos sentimentos, memórias de menino, medos, traumas, desejos eróticos, enfim, as experiências brutas do sujeito, não seria impedimento de ciência, mas forma legítima de formulá-la dentro desse nível etnográfico, da particularidade cultural, que escapa às sociologias generalistas de matriz europeias. o resultado desse e outros procedimentos, como disse de início, será uma sociologia estranha por não ser estrangeira: estranheza que, não obstante, de alguma maneira serve ao reconhecimento do nacional, do subjetivo, das experiências vividas trans-historicamente por brasileiros. ou, pelo menos, diante da disseminação da obra gilbertiana no imaginário de tantas outras, poderiamos dizer que ela atingiu sua eficácia de criar um mundo potencialmente brasileiro, capaz de preencher as fantasias, ao menos, das classes relacionadas nostalgicamente com o patriarcado.

um materialismo libidinal

pouco tempo vi cá no site discussões sobre o conceito de materialismo libidinal, que me pareceu indefinido, enquanto em gilberto freyre - sem que receba essa nome - surge de forma tão clara. 

quando se fala no ímpeto de que as "caboclas recém-civilizadas" se penteavam "como as damas portuguesas", a figura termina de ser composta por seu par antitético, as "negras e mesmo mulatas de cabelo mais encarapinhado", que não podiam pentear cocós tais quais as senhoras elegantes. diz gilberto freyre que, no lugar dos penteados, disfarçavam "essa incapacidade" - essa vergonha - "usando vistosos turbantes que se tornaram insígnias ao mesmo tempo de raça e de classe servis ou ancilares". (p. 362) 

relativizado os valores assumidos pelos penteados e turbantes ao longo da história - o próprio gilberto, creio que depois de suas viagens, irá rastrear o uso do turbante como forma ancestral, oriunda da áfrica e transmitida para o brasil por meio dos escravizados - o que importa demonstrar é a cadeia articulada pela série "negra de turbante - cabocla recém-civilizada - dama portuguesa": em sua estrutura de classe e raça não se define somente o sentido do acúmulo econômico (na direção da casa-grande), mas também esse indescritível acúmulo libidinal, em que o desejo se funda, desde suas formas mais baixas - a vergonha, a inveja - até as elevadas - o orgulho, o amor-próprio -. a escrava, envergonhada de si, dos cabelos, esconde-os com turbantes, que vem a ser insígnia de inferioridade social; a cabocla, recém-civilizada, ascendente, copia o penteado da casa-grande, importado dos cabelos europeus. essa lógica da inveja, que no sistema libidinal global tradicionalmente, pelo menos a partir do século XIX, terminará na frança, no típico complexo parisiense que assola as classes aristocráticas brasileiras, constitui de maneira clara o que pode ser chamada de economia libidinal: uma repartição do desejo dentro da repartição de classes/raças. marcado pelo "desejo de ser outrem", ou ainda, de imitação, essa espécie da ontologia da falta fundaria subjetividades negativamente definidas, ou ainda, subjetividades definidas enquanto signos de outra. fanon era bem claro quanto a isso: “o negro antilhano será tanto mais branco, isto é, se aproximará do homem verdadeiro, na medida em que adotar a língua francesa”. (p. 33) podemos então tratar de uma metafórica mais-valia das paixões, em que para extrair-se o amor-próprio, a vaidade, o luxo, é preciso mitigar o alheio, em uma violência que transforma o outro em inferior; ou melhor: funda o outro, pela força do sistema libidinal em operação, como inferior.

deixo uma citação sobre a carnavalização resultante dos cruzamentos entre o baixo e o alto, como se existisse uma inércia no movimento, uma resistência que impedisse que a libido simplesmente corresse de baixo para cima, uma transformação inerente ao movimento:

"O referido príncipe Maximiliano notou, no Brasil serem os portugueses bons cavaleiros, amantes de um andar 'passeiro' de cavalo, para o que atavam às patas dos animais pedaços de madeira. Mais: usavam enormes esporas, no que os imitavam, quanto possível, caboclos e mulatos mais sacudidos como o que Maximiliano conheceu em São Bento: espada de lado e esporas atadas aos pés descalços. Ostentação de insígnias de classe dominante por homens agrestes demais em sua cultura para renunciarem ao gosto da gente de sua raça pelo hábito de andar descalça, mesmo quando revestida de adornos mais solenes". (p.363) 

podemos dizer, sinteticamente, que a imitação, tal qual a teoria mimética do luiz costa lima, sempre comporta alguma diferença. socialmente, essa diferença funda a cultura autenticamente brasileira que gilberto freyre busca.

domingo, 2 de junho de 2024

a indiferença de machado de assis

machado de assis é fantástico, mas é estranho que encabece o cânone da literatura brasileira. a escolha de um escritor claramente menor - não confundir com inferior - para ocupar a ponta de nossa mesa de jantar só se justifica por nossa literatura, por princípio, ser coisa menor.

é de cocteau uma frase que dizia nada parecer tanto a um monumento em ruínas do que um monumento em construção. no caso de nossa literatura, nada parece tanto uma ruína em construção do que uma ruína monumentalizada. machado de assis, a despeito de ser vulgarmente considerado princípio de nossa literatura, no entanto parece mais fim que começo.

o leitor, em sincera dúvida, pode me questionar o porquê machado de assis seria tão "claramente menor". para explicar esse fato, teria que correr o risco de definir o que quis dizer tão apressadamente quando chamei-o de menor

não falo menor com a clareza conceitual que poderia remeter, por exemplo, ao trabalho que deleuze e guattari fizeram sobre kafka (embora haja tal gênero de menoridade em machado de assis). 

o autor, patriarca de nossa literatura, no entanto nos legou uma obra em que não é possível fazer escola. não existe "continuadores" de machado de assis. é uma espécie sui generis. como seu brás cubas, não transmitiu a nenhuma criatura o legado de sua miséria: não possuí herdeiros, no máximo bastardos. sua literatura é feita em território arruinado. na impúbere infertilidade de velho amargurado que reside toda a menoridade de machado de assis.

mais do que primeiro, machado de assis é primitivo em nossa literatura. era um narrador gago, como diziam com maldosa precisão. nele, a palavra era travada, em fase de articulação, de cortes indevidos e estranhos. sua literatura representou mais uma regressão pra fase oral em vez de avanço na direção de qualquer fundamento. 

não nos legou qualquer chão, machado de assis: o que nele há de propositivo é fundamentalmente o fim. machado está numa linhagem de ironia e decadência, de ironia da decadência, daquela literatura do século XIX, do que na cabeça do novo século. machado de assis, gaguejando, recolhendo as palavras, um pouco na direção do (gugu) dada: uma linguagem do cansaço da erudição e da cultura, e não de sua fundação. 

se contra o que falo, alegarem que machado de assis foi o pai fundador da academia brasileira de letras, respondo que esta academia é somente mais uma prova de como machado de assis estava ligado ao arcaico que morria do que o novo que haveria (e ainda há, talvez) de surgir. 

como disse, em meu twitter, um tal de cássio "atlas com dor nas costas" fontana, machado de assis foi mais um escritor da indiferença do que da diferença. a distinção proposta me pareceu adequada.

sábado, 1 de junho de 2024

A INTRODUÇÃO DO SABER

1.

Escrever sobre um livro, ou melhor, simplesmente lê-lo, pensá-lo, se entregar distraidamente a qualquer uma destas atividade banais cuja aparente ausência de movimento sugere antes o estado de repouso e de lazer do que o ávido trabalho, é e talvez seguirá a ser, para toda uma nova geração destinada pelos aparelhos acadêmicos ao trabalho de escrever, ler e pensar, um hábito estranho, muitas vezes exercido à contragosto. É estranho para uma criança de classe média, descendentes talvez de escravos ou de imigrantes pobres, ou fruto de uma linhagem de trabalhadores liberais, saber manejar um livro. Sua atenção foi condicionada por desenhos animados, fóruns na internet, filmes hollywoodianos, relacionamentos amorosos, vídeo games e, em níveis convencionalmente intelectuais, provas, aulas, vestibulares, exercícios que talvez lhe tornem adequado aos problemas da engenharia e da computação rudimentar, do exercício de escritório, mas que, diante deste artefato estranho, o livro, sempre reconhece certa estranheza.

2.

Mais cedo, uma amiga que conheço faz pouco tempo, e por quem rapidamente cultivei um perigoso erotismo, disse que sua busca por conhecimento é como a tentativa de reencontrar o falo para sempre ausente. 

O erotismo se torna perigoso e verdadeiro quando me sinto assim, aberto, em carne viva aos pensamentos e línguas estrangeiros, que não fazem parte de mim. Por meio de uma pessoa que conheço a alguns dias passo já a pensar minha própria vida, de suas palavras faço cadinho para meu pensamento.

3.

Para mim os livros, os saberes, nada disso me parece natural, e mesmo depois de quase dez anos de estudo, não me sinto introduzido a esse mundo, pelo menos não da forma que um herdeiro legítimo pelo seu pai foi introduzido. 

ai, minha fama de maldito, 2

O after na casa de Pedro Fernandes estava uma bosta. Gente fumando maconha pelos cantos e fazendo aquela média com todo mundo. Artifício emo...