quinta-feira, 30 de maio de 2024

que me aconteceu quando me bem vesti para ir a uma festa de literatos da zona nobre

haviam me convidado para um evento de supostos artistas que ocorreria na zona nobre da cidade. fui até a cômoda onde guardo minhas roupas e retirei de lá a excêntrica casaca que guardo somente para tais ocasiões solenes. tirei minha camiseta preta e velha, de gola esgarçada de tanto vestir, e como a do banheiro estava quebrada, fui até a pia da cozinha lavar minhas axilas.

o tempo estava frio, mas o comboio que tomei, sem ar-condicionado, fez que sentisse o suor escorrendo por minhas costas. despi minha excêntrica casaca e também o chapéu de minha cabeça. ao meu lado, um rapaz de jeito simples, me observava com interesse. incomodado com o jeito que me observava, o interpolei com ríspida polidez:

- os olhos do senhor estão procurando alguma coisa?

- sinto muito, meu chapa. não era de forma alguma meu intuito importuná-lo. somente achei curiosa essa sua casaca. 

envergonhado, ele não voltou a me olhar. em um movimento veloz, desceu algumas estações antes da minha.

o evento com os escritores foi insípido. como suspeitei, não havia lá nenhum artista. voltei para casa entediado, arrependido pelo dinheiro que gastei, mais do que pelo tempo. sozinho, tremendo de frio embaixo de minhas cobertas, só consegui pegar o olho depois de tomar meia garrafa de uísque de segunda. 

arthur de azevedo, escritor modernista

já falou-se de arthur de azevedo como um cronista oficial da cidade. o título é justo, já que sua prosa curta, publicada sob os títulos mais despretensiosos e corriqueiros em jornais populares, introduziu as classes médias em nossas letras: tanto como um novo público-leitor, diverso daquele culto dos salões e faculdades, como também enquanto matéria de sua ficção, fazendo a linguagem erudita dos gramáticos se encontrar com os assuntos populares. nesse sentido, é certamente um escritor modernista, de obra futurista, antecipadora da desintegração da velha língua palavrosa e eloquente do antigo império, e introdutora da sintaxe apressada e telegráfica jornalística dentro da prosa literária. a posição de arthur de azevedo enquanto literato estaria sempre marcada pela tensão entre o popular e o erudito, entre sua literatura menor e o senso estético das academias:

desde que pela primeira vez me aventurei a rabiscar nos jornais, observei que a massa geral dos leitores dividia-se em dois grupos distintos: um muito pequenino, de pessoas instruídas ou ilustradas, que preocuravam em tudo quanto liam gostoso pasto para os seus sentimentos estéticos, e o outro numeroso, formidável, compacto, de homens do trabalho,  que iam buscar na leitura dos jornais um derivativo para o cansaço do corpo, e exigiam que não lhe falassem senão em linguagem simples, que eles compreendessem. fui assaltado pela preocupação de lhes agradar.

"o que prejudicou a arthur de azevedo", disse tristão de ataíde, com seu senso aristocrático de arte, "foi a sua extrema facilidade de escrever, bem como a necessidade de viver das letras". para tristão de ataíde, era lamentável não a literatura de arthur de azevedo, mas que seu talento estivesse à serviço de fins tão parcos: escrevendo em velocidade impressionante, a poética de arthur de azevedo dispensava o estudo cuidadoso, a correção da frase, a composição rebuscada. não por acaso seu estilo era direto, telegráfico, uma prosa simples que, se não obstante gramaticalmente correta, no senso de estilo era pobre, mas de uma pobreza suficiente para que pudesse ao mesmo tempo escrever velozmente, sem falhar as orações, e em linguagem parca e simples, capaz de agradar seu público fiel de todos os dias.

arthur de azevedo tinha consciência de que, se em sua pena a literatura se fazia com matéria menor, tanto na linguagem simples quanto nos seus temas pequenos burgueses, assim no entanto atingia a dimensão gigantesca do produto de massas: "não solicito a glória nem a imortalidade, mas tenho consciência de não ser um colaborador inútil"; e aquele escritor, oriundo das classes médias, sem esconder certo desdém dos estetas sisudos, de palavreado raro e insosso que abundavam entre os salões da alta sociedade, afirmou: "escrevo, não para os cafés da rua do ouvidor", onde se escondiam esses letrados, "mas para a cidade inteira. gabo-me de ter leitores em todo o país, e como os sirvo com a melhor gramática de que disponho e com todo o bom senso de que sou capaz, conservo tranquila a minha consciência de jornalista".

apesar de suas ironias, arthur de azevedo, como se vê, não deixa de reivindicar valor pedagógico em sua literatura que, não obstante menor, era pelo menos bem servida em termos de escrita correta e de boas lições de moral. se era um poeta sem poesia ou um literato sem literatura, se era chistoso, fazia uso abundante do tom burlesco e constantemente terminava suas histórias com desfechos risonhos, arthur de azevedo contudo tinha a virtude de levar a literatura a um público inculto que aqueles versos bizantinos e superiores dos demais poetas jamais alcançariam. por meio de uma matéria que admitia ser pobre, mas também a possível e adequada ao ritmo industrial do jornal e a cultura de seus leitores, arthur de azevedo escreveu sua literatura.


quarta-feira, 29 de maio de 2024

DE NOVO FOUCAULT E A ARQUEOLOGIA DO SABER

Existe evidente confusão entre a "arqueologia" enunciada por Michael Foucault e um conceito mais geral de "estruturalismo". O próprio Foucault colabora com o imbróglio conceitual em seus primeiros livros, quando anuncia a particularidade de sua historiografia em relação as demais em voga. E se quando supostamente resolveria a questão em seu Arqueologia do Saber o autor é oblíquo e indefinido, é porque a arqueologia não é simplesmente a história das condições apriorísticas do conhecimento, conforme uma leitura estruturalista do conceito poderia formular, e ainda, como o próprio autor sugeriu, insuficientemente, no As palavras e as coisas, mas sim a ciência das redistribuições das origens e limites a qual toda e qualquer ciência está sujeita: de como o saber redistribui, ao longo da história, a matéria de seu conhecimento. 

Por isso que a arqueologia, ao longo do Arqueologia do saber, é parcamente definida; Foucault, ao contrário, age em estilo que chamarei de "cético", desfazendo racionalmente as razões das demais teorias, mas, neste ponto definitivamente menos cético, sempre seguindo na direção de um saber negativo, em espera e de difícil enunciação, já que seria um saber que se formula com ciência da própria instabilidade de seu saber; de como os saberes futuros fatalmente redistribuirão, sem respeito às demarcações do autor, o saber que supostamente se planejaria fundar. 

Por isso que a arqueologia trata inevitavelmente de uma discussão sobre o conceito de identidade, por Foucault ironicamente renunciada, desde o princípio, como sendo uma moral do estado civil. Como, então, fundar um conceito que, por princípio, recusa ser fundado? um conceito que por princípio postula a violência das derivas, dos recortes, da redistribuição? Ao fim e ao cabo, tudo que a arqueologia enuncia é a instabilidade - não a insuficiência, e talvez isso separe Foucault do ceticismo propriamente dito - de todos princípios de saber, de toda forma de ciência. 

Se hoje temos esperança de encontrar no nome próprio, na assinatura, na psicologia, no autor, na subjetividade, no tempo, na sociedade, na humanidade, ou onde lá seja o ponto de encontro de todas as linhas de fuga, Foucault deles todos desdenha, e prenuncia um saber irônico, ainda e sempre em espera, que redistribuirá a superfície de todos os textos, reorganizará as seções de todas biblioteca e reconstruirá a geografia de todos os discursos. Assim, novos objetos surgirão para o novo olhar, novas investigações farão novos sentido, e todo conhecimento se fará de novo e novo mais uma vez.

antropologia e antropogenia: passagem do finito ao infinito

na antropogenia, a fundação do humano é inscrita numa genealogia da natureza: desde o ser mais ínfimo até o mais complexo existiria uma cadeia cuja duração culmina no aparecimento de nossa espécie.

as relações entre origem e originado, contudo, são imprecisas: é o ser humano regido pelos seus princípios elementares da biologia, que remetem e repetem indefinidamente a origem - como no esquema de haeckel em que a ontogenia repete a filogenia - ou sua constituição excepcional de ser intelectual, dotado de linguagem, razão, ou qualquer outro atributo especial, super-animal, fundou, neste ramo da árvore da vida, uma dimensão que escapa às leis naturais, isto é, a antropologia?¹ 

vejamos a lei do positivismo conforme formulada por littré para pensarmos essa tensão entre antropogenia e antropologia, ou ainda, entre o retorno da origem no originado e a ultrapassagem daquela por este: a física, explica o ilustre discípulo de comte, determina a química que determina a biologia que determina a sociologia. a pergunta sobre a excepcionalidade humana é um questionamento a respeito do mecanicismo explicitado pela sequência em que a ciência positiva subordinaria o conhecimento da humanidade ao conhecimento natural; por outro lado, as ciências do espírito ou da vida, conforme a formulação de dilthey, questionaria como que o humano, se não obstante faz parte da e se constitui na natureza, escaparia a série de leis e estudos desenvolvidos nos últimos séculos para analisá-la (física, química, biologia...). 

é menos uma questão ontológica, talvez, do que epistemológica: se a natureza implica em uma definição da vida (humana) a partir dos princípios estabelecidos por tais campos do saber, a antropologia, especialmente a partir do fundamento do conceito de cultura, re-abreria o que estava definido desde seu princípio, desfazendo a subordinação do conhecimento do homem às ciências da natureza. 

é uma relação delicada, que os cientistas sociais do início do século XX tratam a partir das relações entre os princípios de raça - que seria a expressão do natural no social - e os de cultura - que representaria a infinidade e plasticidade humana diante dos limites postos pela lei da natureza -. do finito da natureza ao infinito da vida (humana), portanto.

a sugestão de lévi-strauss, ao desconsiderar as determinações raciais sobre as culturais, contudo, como que inverte os termos da equação: o ser humano, por sua natureza, seria infinitamente plástico: é a sua cultura que lhe faz vir a ser alguma coisa. a cultura então se torna o lugar de formação, em que o infinito potencial - seu "corpo sem órgãos" - é estrangulado, constrangido, dentro de uma extensão e temporalidade definida pela vida social. nessa dimensão de reflexão, nessa passagem afuniladora - "do cru ao cozido" -, que a antropologia irá se desenvolver menos como ciência da natureza do que uma ciência, não do anti-natural, mas do sobre-natural. enlace ambíguo, que trata de uma consciência de dominar e fazer-se exceção ao natural, ao mesmo tempo que, em um lugar incerto, saber-se regido por seu jogo.


NOTAS DE RODAPÉ

¹ No fim do século XIX e início do XX o conceito de "antropologia" era empregado para se referir ao estudo das origens antropogênicas e dos diferentes caracteres raciais engendrados por meio da hitória natural. Aqui, no entanto, proponho uma distinção entre antropologia e antropogenia para demarcar com clareza a distância que os estudos sociais e humanísticos - as ciências da vida e do espírito - produziram, ao longo do último século, das ciências naturais. Desta deriva conceitual, que re-mapeou a geografia do saber do humano, me parece ter se constituído a atual disciplina antropológica.

NECRÓFILO

dizem que olavo bilac era, talvez por ter alimentado seus devaneios com muita literatura. era uma fantasia bem comum no século XIX, essa do cadáver, no decadentismo romântico. houve tempo que me entreguei às virgens dólicas cadavéricas de álvaro de azevedo. mistura de fantasia de morte com branca europeia, de virgem maria com depravação erótica. nada de paisagem brasileira. quando muito, para ironizá-la. nostalgia bironesca de castelos ingleses, de chuva e de filosofia, que por aqui era escassa. parece muito adequado para uma história, mas nessa época me relacionei com mulher chamada beatriz, cujo incofesso desejo era de ser um cadáver. bulímica, de ossos amostra. deprimida por traumas de infância, cortava os braços e principalmente nas coxas. os talhos esbranquiçados ficavam bonitos nela. tinha um gosto acentuado pela hoje polêmica asfixia erótica, por alcovas de motel barato ou chão de madeira duros como esquifes. durante o ato, não se movia, em imobilidade que remetia ao rigor mortis. não falava em momento algum. seu orgasmo era como o canto de ave noturna, soturna e breve a romper na noite iluminada por vela de alguma janela de poeta acesa na madrugada.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

LAMARCK e DARWIN

Para Lamarck, as modificações morfológicas cuja sucessão caracteriza a história natural são respostas ativas do organismo perante as pressões do meio. Para Darwin, o meio somente selecionará as modificações aleatoriamente produzidas: não existe, no darwinismo bruto, o movimento da intenção característico do uso e desuso de um órgão, já que as características adquiridas pelo organismo ao longo de sua vida não são transferidas para a prole. Para Darwin, o meio somente age no processo da evolução de forma negativa: pela alocação de obstáculos e recursos que afetam a competição inter e extra-espécie, fará a seleção, entre os caracteres surgidos aleatoriamente, espontaneamente, daqueles que estão aptos a sobreviverem. A natureza, por meio desse mecanismo de seleção que prejudica as formas de vida inferiores, selecionará somente as modificações dos mais aptos. Dessa competição sucessiva, resultará o processo de evolução. A seleção natural darwinista, assim, minimiza a ação ou intenção do organismo como parte da evolução, já que as modificações que imprimem aos seus caracteres biológicos não seriam transferidos às proles: a evolução é um fenômeno contingente. Lamarck, ao contrário, acredita em uma concepção de evolução em que a vida, por sua própria vontade, impõe contra a natureza seu destino evolutivo.

É oblíquo precisar a opinião de Darwin sobre a transmissão dos caracteres adquiridos, já que, não obstante não descarte a sua possibilidade, sugere que sua preponderância na evolução seria mínima quando comparada com a seleção feita pela própria natureza. Como ele explica: “Se as variações corretas ocorressem, e nenhuma outra, a seleção natural seria supérflua”. Ou seja, se a prole herdasse sempre os caracteres desenvolvidos a partir do estímulo do ambiente, não faria sentido falar em seleção natural, já que não existiria o que selecionar. A seleção da natureza, afinal, precisa partir da diferenciação entre melhores e piores, entre mais aptos e menos aptos. Deveria existir alguma forma de se limitar a transferência progressiva dos caracteres desenvolvidos pelo organismo em sua interação com o meio ambiente. Para Darwin, “a ocorrência das variações segue leis naturais que não estão vinculadas a nenhuma finalidade”: é um processo, como já foi escrito, contingente, que dispensa a participação ativa do organismo. A seleção natural somente existe quando as gerações se descontinuam: quando se estabelece perdas e ganhos entre elas.

CORREÇÃO INFINITA

 A teoria naturalista de Lamarck é precisamente a da abstração da natureza empírica em uma série abstrata constituída por meio da linguagem. Isso nos leva a uma série de problemas.

Por um lado, perde-se, em relação ao conhecimento feito pelo contato imediato com os seres, uma irrecuperável porção de verossimilhança, já que a língua elaborada, por melhor que seja, jamais será perfeitamente igual às ricas formas da natureza. Essa perda infeliz é contudo necessária, porque somente nela funda-se o conhecimento, já que este, para Lamarck, consiste na ordenação das propriedades infinitas da natureza. 

O infinito é in-ordenável: uma reta infinita pode ser cortada em infinitas porções. Somente pelo sacrifício dessa totalidade inapreensível será possível o fundamento de uma ordem verdadeiramente conhecível. Pela língua o homem ganha em comunicabilidade daquilo que, pela e na natureza mesma, infinita, é incomunicável. É necessário esse empobrecimento por meio da língua para que o mundo se torne matéria de conhecimento entre os homens.

Resta oculto, no sistema de nomes no qual se funda a história natural de Lamarck, um modelo matemático de conhecimento, que vai desde a extensão infinita da natureza até aterrissar no finito perfeito do ponto. A língua, intermediário entre a natureza e o número, por sua natureza e finalidade, infelizmente oscila entre a riqueza do real e a precisão do matemático. Primo pobre de ambos, é forma precária, que não tem nem a potência da comunicação perfeita do número, nem a realidade em si mesma do mundo. 

Se a língua ainda é instrumento necessário para o conhecimento, é porque o conhecimento é sobretudo questão de entendimento. Uma questão de comunicação; ou ainda, como colocará Foucault em As palavras e as coisas, de distribuição de analogias entre as partes da natureza, cujo modelo mais claro - como já se disse, mas não fará mal enfatizar - é a igualdade matemática. A gramática geral da época clássica, por meio do núcleo verbal responsável pela ligação entre o sujeito e predicado, buscaria estabelecer uma operação de definição do indefinido por meio da determinação precisa do nome, como se este fosse, para o gramático, o produto verbal daquilo que, para o matemático, consiste na resposta de uma equação (x = y). 

O nome, para o sistema de Lamarck, deve ser expressão tão exata quanto possível for. A sua filosofia zoológica se refere a um saber teórico capaz de compreender a extensão infinita do real, para assim melhor abstrair um sistema de nomes, cuja ordem taxionômica represente aquela infinidade indizível com maior verossimilhança.

Só que, por suas próprias limitações, por habitar o limbo entre o infinito e o finito, o nome estará sempre fadado a derrapar: se, em comparação com a natureza em si mesma, o nome sempre deixará um resto, ou ainda, sempre terá um algo de inverossímil, quando em comparação com a matemática, o nome igualmente falhará, pois é consideravelmente impreciso, incapaz de fundar analogias tão perfeitas e exatas quanto as expressas pela série abstrata da aritmética. 

A língua será fadada a ser ou deformação ou desmedida; sempre, incontestavelmente, uma entidade negativa: nem vida nem número. Se o objetivo da língua é o entendimento, a fundação de um sistema de diferenças passíveis de comunicação exata do mundo, sua contraparte, portanto, será sempre a correção infinita. Prima pobre da natureza e da matemática, de uma retira o poder de analogia, da outra, a extensão impercorrível. 

Todo sistema de conhecimento baseado na precisão da linguagem será, invariavelmente, um sistema de correções. Por conta disso que o naturalismo de Lamarck, sempre flutuante entre a artificialidade da classificação e o infinito do real, somente poderá ganhar solução pelo termo das academias de ciência, cujo objetivo será, por meio de sua soberania, controlar os desacordos inevitáveis da linguagem. Isso quer dizer que a ciência, enquanto fundamentado no nome como meio de ordenação das partes do real, está fadada a um problema gramatical que, na verdade, é de natureza política: o perpétuo inconveniente desacordo dos diferentes sistemas de línguas, os sucessivos reparos e suplementos da linguagem de um sobre o outro. Como o próprio saber jamais consegue determinar por si mesmo a ensejada língua perfeita, será necessário extinguir as diferenças indesejadas por meio da força, para assim, por meio de uma língua despótica, edificar essa utopia do conhecimento.



segunda-feira, 20 de maio de 2024

da eugenia democrática fascista

A eugenia, conforme delineada no primeiro livro de Francis Galton (Hereditary Genius), poderia ser caracterizada como uma ciência aristocrática, anti-democrática e anti-burguesa. 

A democracia liberal burguesa corresponderia ao governo dos comuns, isto é, daqueles desprovidos de ascendência nobilitária e árvore genealógica. Segundo Galton, haveria correspondência entre os extratos extraordinários de uma raça - os melhores - e as classes superiores; estas são superiores por conta de seu patrimônio genético, herança familiar geracionalmente transmitida. Em passagem que lamenta a Revolução Francesa por ter extinguido os melhores ramos familiares franceses se mostra com ainda mais clareza a oposição de sua eugenia com os valores da burguesia. (p. 34) Trata-se, afinal, de uma ciência que decifra, pela distribuição dos talentos genéticos feitos conforme a vontade soberana da natureza, a diferenciação de classes, a separação entre dominados e dominantes pela lógica de inferiores e superiores. Como em Aristóteles, o senhorio e a escravidão seriam dados naturais. 

A eugenia somente poderá se aburguesar, se democratizar, e se liberalizar como parte de um mundo de flutuações sociais do capital (a tábula rasa, os mandamentos de igualdade, liberdade e fraternidade, o mito do self-made man, sem origem e sem capital) pela experiência fascista da raça, que funda uma comunidade biológica, um grund genético de um povo integrado sob uma nação sob o símbolo da nação. Essa eugenia racial, em sua especificidade democrática, se difere da eugenia aristocrática proposta por Galton, ainda que não lhe seja necessariamente contrária: se assemelham do ponto de vista de naturalizar a divisão de classes, já que, como sabemos, o fascismo as integra como parte de um mesmo organismo social, como se fossem os órgãos hierarquicamente organizados em corpo segundo as finalidades impostas por um cérebro totalitário e onisciente.

sábado, 18 de maio de 2024

ARREBOL QUADRADO 13# a máquina e o corpo

Nina Rodrigues adiantou o bisturi na direção de uma coelha grávida, o sanguíneo  abdômen aberto diante de seus olhos serenos. Numa incisão precisa, que pelos anos de Faculdade há muito estava habituada, extraiu do útero uma placenta. Com cuidado, depositou o bolo carnoso do anestesiado animal em sua cavidade peritoneal. 

Com o bisturi ainda em punho, olhou a hora no relógio de parede, que girava, como sempre, o perpétuo mecanismo em seu sentido de círculo. Ainda era cedo. Precisava encontrar com Dr. Freud para as lições de psicologia, mas ainda tinha mais meia hora, tempo suficiente e até mesmo de sobra para terminar. 

Nina Rodrigues voltou então seus olhos para a coelha grávida; verificou que a placenta se enxertara, por conta própria, no intestino do animal, e que se alimentava normalmente, como se ali tivesse nascido. Satisfeita com o resultado, dirigiu-se aos ovários pequeninos, e executou uma operação chamada pelos médicos de ablação, em que se suprime a função do corpo lúteo de gravidez. Demoraram alguns minutos, mas as demais placentas ainda alojadas no útero, uma a uma abortam. Apenas a placenta anômala, situada na cavidade peritoneal, se manteve intacta. 

- Eis um exemplo no qual o intestino se comportou como um útero e, poder-se-ia mesmo dizer, mais vitoriosamente que as placentas, digamos, "naturais", disse, satisfeita, Nina Rodrigues a Gilberto Telles, seu assistente, que de perto observava tudo. Mantinha certo ar de desinteresse, que Nina Rodrigues interpretava como certo desdém. Quando Gilberto Telles, também conhecido pelo seu apelido de Sorriso falava, no entanto, sua voz era amável, contraste que, para ela, somente exagerava seu ar arrogante.

- Está me dizendo que discorda de Aristóteles?

- Ahn? 

A médica sentiu-se verdadeiramente confusa. Claro que havia lido Aristóteles, mas somente no colégio, quando se preparava para a carreira de medicina. Guardava alguma memória do que ensinavam os professores, mas no campo médico, há muito, ela sabia, os ensinamentos do velho estagirita eram mais que ultrapassados. Não podia entender, portanto, como em pleno século XX alguém poderia ter o trabalho de refutar Aristóteles, já que a própria história havia feito a gentileza de fazê-lo.

- O que a senhorita afirmou, explicou Sorriso, vai diretamente contra o que ensinava Aristóteles.

- Olhe, Telles, não sei como anda gastando suas noites, mas sei bem de uma coisa: não é lendo a filósofos de mil anos atrás que irá se tornar um bom médico.

- Não acha que exista sabedoria no passado?

- Evidente, mas a sabedoria tem hora. E agora - ela indicou a coelha, já acordada, que caminhava na mesa de dissecação - a hora é outra. 

Como muitos homens da época, Gilberto Telles cultivava menos o espírito e mais a afetação. Não era estúpido, como se vê, mas também não esquecia de que a inteligência é precedida por uma dimensão estética que lhe antecede e lhe prepara a recepção, assim como uma carta com brasões e belo envelope dispõe o leitor aos melhores sentimentos quanto ao que virá. Esse, talvez, fosse o defeito capital de Nina Rodrigues: não o deslumbramento com a ciência e a crença religiosa no progresso, que eram mais defeitos de época do que de individualidades; mas sim sua inocência diante da autossuficiência da razão em um mundo que funcionava irracionalmente. Sua honestidade absoluta diante do conhecimento que lhe impedia de perceber como saber por si mesmo era muito pouco, e embora por seu esforço tivesse chegado muito longe - mais longe do que qualquer um imaginaria chegar - dentro de sua área profissional, como ainda veremos, sua pobre inocência vedaria oportunidades e mesmo lhe faria ser passada para trás. 

Talvez sejam coisas relativas à educação, à formação. Filha de comerciantes, nunca foi educada para os ambientes acadêmicos: o discurso que aprendeu era destinado aos salões e salas de jantares. E mesmo esse, pobre criatura, sentia no seu íntimo mal assimilado. Quando via a desenvoltura que sua irmã agia diante das visitas, ou então a graça e elegância com que Lola Baruch era cortejada pelos rapazes, Nina Rodrigues se envergonhava. Ela estava no meio do caminho: entre um destino masculino - a Faculdade de Medicina - e um feminino - a Casa -, e por isso não estava em nenhum dos dois. Nina Rodrigues era, mas era pela metade. Havia se tornado alguém, mas havia, era inegável, se tornado errado. Infeliz nos dons cortesãos dos salões literários, sem jeito para visitar os teatros, a fala tropeçando quando tomava o discurso, tudo que fazia bem era com as mãos e olhos, era fechar a boca, se enfiar numa sala, dissecar animais, ler livros, escrever. 

Seu assistente, por isso, sentia-se injustiçado. Sabia que roubava a cena em qualquer evento público. Como estava submisso a essa vagabunda? Somente poderia estar de caso com Frederik, ele tinha certeza. E enquanto ela dissecava animais, olhava Nina Rodrigues dos pés a cabeça, avaliando seu tipo de mestiça. "O cumprimento jugulo-púbico de uns 13 cm; o xifo-epigástrico de uns 11 cm; epigástrio-púbico: 19 cm; xifo-púbico: 32 cm; jugulo-púbico: 46 cm; do membro superior: 50 cm; do membro inferior: 72 cm. Já o diâmetro transverso-torácico: 28 cm; do antero-posterior torácico: 18 cm; do transverso hipocondríaco: 25 cm; do antero-posterior hipocondríaco. 17 cm. do bi-ilíaco: 21 cm. Do abdômen superior: 5 cm, e o inferior uns 8 cm. O total uns 14 cm. O tórax deve ser de pelo menos 8 cm. O tronco, 26 cm. Membros de 133 cm. Pesa pelo menos uns 50 Kg. Altura de uns 160 cm. É um longetipo, como a maioria das mulatas. Estatura excedente da média, imagino". Não achava Nina Rodrigues feia, mas também não achava seu tipo bonito. Dr. Fréderik talvez gostasse. 

Primeiro aquela moça tímida, falando pouco, lhe pareceu desejável. Não era para se casar, apenas uma noite de diversão. Fez uma investida e foi recusado. O orgulho ferido abriu a porta para que desgostasse de Nina Rodrigues. Passou a observar como era pequena demais para que tivesse o cargo que tinha. Sentia-se muito satisfeito de, nos eventos que frequentavam juntos, era ele que brilhava, em conversas de salão, e não ela, não obstante fosse sua superiora. Voltavam juntos, e na carruagem, às vezes sentia a atmosfera ruim. Sabia que aquilo a humilhava.

Que podia fazer? Fora desde menino criado para aquilo. Lera os clássicos não só para ler, mas para que pudesse lhe empregar. Nina Rodrigues era estúpida: achava que conhecê-los era questão de saber, quando na verdade era questão de falar, de fazer seu saber parecer bem, fosse qual fosse seu conteúdo. Sentia, é verdade, alguma pena dela, mas naquela corrida de ratos não podia recuar até que fosse alguém. Fora, afinal, para isso que havia sido criado. Para ser um grande médico, quem sabe deputado, ou conselheiro particular do presidente. Não queria ser para sempre o serviçal de uma mulata que se meteu no mundo dos homens. Não iria recuar diante de sua fraqueza inata. De memória, recitou:

- "Olhando um pouco à frente vi o imortal mestre de todo homem de saber sentado em reunião filosofal. Honrarias todos vão lhe oferecer".

- Que se trata disso, afinal?

- Dante, no quarto canto do Inferno, descreve nessas palavras a Aristóteles: a ciência certamente se transforma, mas sua sabedoria seguirá até o fim dos tempos imortal. Onde Aristóteles errou foi para que pudéssemos acertar. E onde erramos, podemos buscar correção em seus acertos, mais sapientes ainda por estarem corretos mesmo com a desvantagem de mais de mil anos.

- Não sei aonde queres chegar. Não trato de Aristóteles, trato do sistema reprodutor de uma coelha.

- A natureza - diz ele em A Política - não procede mesquinhamente tal como os cuteleiros de Delfos, cujas facas servem para muitos usos, mas, peça por peça, o mais perfeito de seus instrumentos não é aquele que serve a muitos trabalhos, mas apenas a um.

- Se o que falas é verdadeiro, o velho estagirita parece ter confundido a maquínica faca com o orgânico corpo; é verdadeiro que melhor é a máquina quanto mais perfeita seja sua finalidade, mas para a entidade orgânica, é o oposto que é válido: melhor será o corpo capaz de muitos fins, e não somente um. Essa é a diferença entre corpo e máquina: e se a evolução engendrou o primeiro, é porque a finalidade perfeita do mecanismo, diante do jogo da sobrevivência, é inferior à inacabada e polivalente plasticidade do corpo.

Os dois então ficaram em silêncio. Havia certo constrangimento no ar. Nina Rodrigues examinou a hora e viu que já era melhor se preparar para sair. Mandou seu assistente arrumar tudo e trancar a porta do laboratório e foi na direção da casa de Dr. Freud.

sexta-feira, 17 de maio de 2024

o fim da razão

a preguiça ou falta de ambição racional, muitas vezes associada ao misticismo daquele gênero intuitivo, que se contenta com o momento de silêncio da razão, ao invés de simples resignação ou recibo de esterilidade intelectual, pode também ser avaliada como recusa de prosseguir pensando em tal direção, ao entendimento de que a razão - se não possui fim -, possui sim um final, um momento de encerramento e desfecho, em que se desliga dos antigos e esgotados objetos e anseios e se prepara a curva para seguir por um outro sentido, por enquanto ainda despercebido, talvez sequer imaginado, pela démarche incessante que arrasta todos praticantes do pensamento em uma direção.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

O CÉLEBRE CONCURSO DE TOBIAS BARRETO

Quatro outros intelectuais inscreveram-se no concurso. O primeiro, José Augusto de Freitas, formou-se na Faculdade em 1879 e foi, mais tarde, deputado federal por seu estado, tendo participado da discussão do Código Civil. Ao candidatar-se, era tido sob a proteção do lente J. J. Seabra, posterior chefe político na Bahia, ascendendo, no período republicano, à direção do tradicional centro de ensino pernambucano. Nos começos da década de 80, era considerado, pelos estudantes, um dos professores mais reacionários, o que fazia circunscrever-se a colônia baiana as preferências por seu candidato. Os outros eram: Lomelino Drumond (diplomado pela Faculdade em 1972), Gomes Parente e Machado Portela Filho.

Alguns depoimentos dão-nos a adéia viva e palpitante do evento. O primeiro, de Graça Aranha, na época cursando o primeiro ano e recém-chegado do Maranhão, desajustado e ainda criança. assim registra o fato no livro de memórias que nos deixou incompleto: 

"Esse martírio obscuro, informe, ia cessar. Abrira-se o concurso para professor substituto da Faculdade. Foi o concurso de Tobias Barreto. Eu já havia iniciado os meus estudos na Academia. Era superior ao meu preparo, e professado sem clareza, sem o fluído da comunicação. José Higino, o pesado mestre spenceriano, nos enjoava e nós não o entendíamos. A outra matéria era o Direito Romano, mais compreensível; porém, que professor calamitoso era o velho e ridículo Pinto Júnior! O concurso abriu-se como um clarão para os nossos espíritos. A eletricidade da esperança nos inflamava. Esperávamos, inconscientes, a coisa nova e redentora. Eu saía do martírio, da opressão para a luz, para a vida, para a alegria. Era dos primeiros a chegar ao vasto salão da Faculdade e tomava posição junto à grade que separava a Congregação da multidão dos estudantes. Imediatamente Tobias Barreto se tornou o nosso favorito. Para estimular essa predileção havia o apoio dos estudantes baianos ao candidato Freitas, baiano e cunhado do lente Seabra. Tobias, mulato desengonçado, entrava sob o delírio das ovações. Era para ele toda a admiração da assistência, mesmo a da emperrada Congregação. O mulato feio, desgracioso, transformava-se, na arguição e nos debates do concurso. Os seus olhos flamejavam, da sua boca escancarada, roxa, móvel, saía uma voz maravilhosa, de múltiplos timbres, a sua gesticulação transbordante, porém sempre expressiva e completando o pensamento. O que ele dizia era novo, profundo e sugestivo. Abria uma nova época na inteligência brasileira, e nós recolhíamos a nova semente, sem saber como ela frutificaria em nossos espíritos, mas seguros de que por ela nos transformávamos. Esses debates incomparáveis eram pontuados pela contínuas ovações que fazíamos ao grande revelador. Nada continha o nosso entusiasmo A Congregação, humilhada em seu espírito reacionário, curvava-se ao ardor da mocidade impetuosa. Prosseguíamos impávidos, certos de que, conduzidos por Tobias Barreto, estávamos emancipando a mentalidade brasileira, afundada na Teologia, no Direito Natural, em todos os abismos do conservantismo. Para mim, era tudo isso delírio. Era a alucinação e que um estado inverossímil que eu desejava, adivinhava, mas cuja realização me parecia sobrenatural. Tobias Barreto fez a sua prova de preleção oral. O orador atingiu a minha sensibilidade no auge da eloquência. Quando terminou, recebeu a mais grandiosa manifestação dos estudantes, a cujo entusiasmo aderiram os lentes unânimes".

Gumersindo Bessa, em carta dirigida a um conterrâneo, aluno da Faculdade de Direito de São Paulo, e posteriormente divulgada pela imprensa de Aracaju, registra as suas impressões no próprio decorrer do concurso. Informa, de início, que "avaliar-se em mais de mil as pessoas que têm afluído à sala dos graus não é exagero. É um barulho enorme desde as 7 horas da manhã, na Academia, para achar-se lugar". As provas orais consistiam em arguição realizada pelos próprios candidatos. Assim, no primeiro dia, coube a Lomelino Drumond inquirir a Tobias Barreto em matéria de Direito Eclesiástico. O sergipano aproveitaria a oportunidade para defender algumas de suas idéias a propósito da religião, para escândalo da banca examinadora. No segundo, a arguição estaria a cargo de José Augusto de Freitas. "Reuniu-se a baianada em grupo", prossegue o missivista", para aplaudir o jovem sábio. Os sergipanos e os maranhenses nos reunimos de outro lado para aplaudir o Tobias; e o negócio assumiu proporções de uma luta, que ainda continua e terá tristes consequências, por termos contra nós o Seabra, que se julgou desacatado pela nossa atitude a favor de Tobias". Travou-se a polêmica em torno à validade do Direito Natural. "O Freitinhas", acrescentou Gumersindo Bessa, "empregou um termo que ignorava, para exprimir que era da velha escola, da antiga filosofia. O Tobias ridicularizou-o sem piedade. A baianada retirou-se confusa e envergonhada, e o sergipano levantou-se coberto de aplausos. No outro dia, arguiu Tobias por sua vez. Foi um dia para sempre memorável".

Diversos problemas estiveram em debate, temas, em particular, filosóficos. Segundo o mesmo depoimento, "encareceu o sergipano de José Augusto de Freitas que definisse o que entendia por entidade metafísica. 'entidade metafísica é tudo o que precede e fica independente da sociedade e de suas leis positivas', respondeu Freitas. (Bravo)

"'A época terciária e quaternária mesmo, precederam a sociedade e ficam independentes de suas leis positivas, logo, as épocas terciária e quaternária são entidades metafísicas'. (Gargalhadas gerais.) Aí o Freitinhas empalideceu e disse: 'Isso não é lógica'.

"O Tobias disse: 'É muito boa lógica, Sr. Dr.; mas a lógica não entra em todas as cabeças, porque, se ela entrasse em algumas, produziria o mesmo efeito o que havia de produzir um touro bravo que entrasse em um armazém de vidros' (Gargalhadas)."

O trecho transcrito indica que o futuro professor da Faculdade recorreu sobretudo ao ridículo, durante o célebre concurso, para combater os pontos de vista dominantes no seio da Congregação.

"Chegando a vez do candidato Machado Portela de arguir Tobias", continua Gumersindo Bessa, "não se atreveu a fazê-lo. Limitou-se a pedir-lhe que explicasse a tese, segundo a qual, 'de todos os sistemas filosóficos, só o monismo pode nos dar a verdadeira concepção do direito'".

Eis como o autor da carta reagiu à oração de Tobias Barreto: "Esta é uma verdadeira novidade entre nós, e foi essa a razão pela qual todos aplaudiram a lembrança do Portela. Indaga por aí, por São Paulo, se há um só estudante, um só lente, que tenha ouvido falar em monismo. Ninguém aparecerá. Se duvidas, atira aí no meio da Academia a palavra simbólica. Suporão que tu foste arrancar da boca da esfinge, pois aqui não houve um doutor que a soubesse. Hoje todos sabem que existe um sistema filosófico chamado monismo e qual seja ele. Aprenderam de Tobias, o espírito mais adianto deste país".


MERCADANTE, Paulo. PAIM, Antonio. "Introdução". In: BARRETO, TOBIAS. Estudos de filosofia. 3º edição. Rio de Janeiro: Record; Brasília: INL, 1990, pp. 41 - 43

 

 

o racismo hermenêutico de gilberto freyre

se na antropologia do XIX o racismo era parte da dimensão ontológica da vida - a superioridade entre raças era inscrita já na ordem natural -, na obra de gilberto freyre ela se relativiza em uma hermenêutica dessa natureza. ou seja, mesmo que existam diferenças entre as raças, o racismo é um fenômeno das culturas. gilberto freyre mantém ainda a primazia da teoria racial dentro de sua sociologia; recusa, no entanto, que o valor dessas diferenças não sejam interpretadas culturalmente, a partir dos variados contextos históricos e mesológicos em que vivem.

sobre o nome

li por aqui uma crítica ao estilo nominológico, à importância demasiada da terminologia nos estudiosos pós-estruturalistas; evidente que existem aberrações, mas não me parece negativo se abrir ao poder de nomear, des-nomear e re-nomear, de explorar o nome como espaço cerrado de pensamento. como se dentro de um nome, e principalmente nos deslocamentos de sentido feitos por meio dele - usos impróprios - se produzissem fenômenos análogos a silogismos. ao contrário deste, contudo, a nomenclatura guarda para si o privilégio e maldição da inconclusão: malograda as tentativas das línguas benfeitas, compostas de termos perfeitamente definidos, os nomes, ao contrário do centrípeto silogismo, em incessante movimento no sentido da metáfora, das atribuições retóricas, fora de sentido, vem sempre a confundir a esperada designação em uma outra. como se, além do que quer dizer, todo nome carregasse um campo potencial do que ele pode vir a ser. se o silogismo manifesta o poder judicativo da linguagem (isso é isso, isso não é isso, etc), o nome, não obstante, também é capaz de juízo: somente um juízo presidido por outras leis, outra forma de pensar.

terça-feira, 14 de maio de 2024

as multiplicação das origens

Sabemos que a questão da escrita da história filosófica era caro para Michel Foucault. Podemos dizer que, em medida considerável, Arqueologia do saber é sua resposta mais direta e longa sobre o tema que, não obstante, já havia sido colocado por seus livros anteriores. 

Em As palavras e as coisas, se coloca a questão da história enquanto semelhança de origens, mas multiplicidade de desvios, como forma de se pensar a história da filosofia. "Condillac e Hume buscaram o liame entre a semelhança e a imaginação. Soluções estritamente opostas, mas que respondem ao mesmo problema" (p. 97). 

Posto historicamente o problema da gênese assimétrica entre a desordem da natureza das impressões, e o poder positivo e humano de reconstruí-la em uma ordem racional, desse mesmo ponto no tempo se desencadeia uma diversidade de outros: e dessa mesma "gênese" temos ao mesmo tempo  ou a "forma mítica do primeiro homem (Rousseau) ou da consciência que desperta (Condillac) ou do espectador estranho jogado no mundo (Hume)". 

Não cabe agora citar ao Arqueologia do saber, já que está enterrado em algum lugar no fundo de meu armário, mas afirmo por conta e risco que lá se defende a mobilidade das origens justamente a partir dessa simultaneidade que o emprego do conectivo "ou" demarca acima com clareza: a história do pensamento avançaria como diferentes respostas para um mesmo pensamento que, se no conjunto podem ser postos como equivalentes, remetentes a uma mesma origem, em sua dispersão e particularidade, não obstante, comportam diferenças radicais e se tornam originais. 

segunda-feira, 13 de maio de 2024

notas nada originais sobre o original

Foucault afirma que o saber consiste em referir (a) linguagem à linguagem. (As palavras e as coisas, p. 55) Saber é, precisamente, poder endereçar extratos textuais uns aos outros: redistribuir os encontros das retas paralelas e, assim, no espaço infinito em que se encontra toda escritura, diluir sentidos antigos e suplementar novos, fazer um texto falar pela boca de um e calar a de outro.

Trata-se de uma compreensão da linguagem enquanto uma espécie de exegese infinita - não uma exegese na lei, mas uma exegese da lei, já que esta está em perpétuo estado de movimento. 

O essencial é notar que, nessa exegese fundamentalmente sem lei, não obstante, vivemos e pensamos sob o patrimônio de um originário: somos condenados a ser nutridos desde um solo, a fazer viagens desde algum lugar, a responder em torno de um nome, em sua graça e tributo, e construir, pelos seus poderes, pelos seus sentidos, o monumento do saber. 

O reino despótico do original organiza a proliferação de seu comentário. Fixa seus limites, oferece suas possibilidades, anima seu movimento, sempre por meio da promessa de que seu segredo será restituído. Sob o zeloso trabalho do exegeta existe o patrono desse texto primeiro (que, não obstante, ainda resta descobrir. Em busca do segredo perdido: como sempre estivesse a vir-a-ser-revelado). 

A lei do original é o fundamento - solo, base (grund, para falar como alemão) de todo esforço hermenêutico: alicerce primeiro e necessário da construção.

A lei do original é a meta - ao mesmo tempo forma transcendente e alvo que procura a flecha - de todo esforço hermenêutico, mesmo que em seu trabalho se esbarre ou encontre sentidos segundos ou terceiros. Porque o original é verdadeira economia do sentido, a lei que dispõe ao redor do patronímico originário os textos subsidiários. 

O original controla a proliferação do sentido, recorta o espaço informe do saber dentro de sua medida, concede ao indefinido a concisão de seu nome. Tudo passa a existir em relação: endereçado ou desviado desse ponto originário. 

O original cria vizinhanças. Demarca territórios. Além de suas fronteiras é a terra do outro, do desconhecido: do que vem-a-ser conquistado, ou do que demarca a derrocada dessa império erguido ao redor do original.

Os mapas então serão redesenhados, os tesouros e honras pilhados, a história reescrita, os velhos nomes apagados, as províncias do saber distribuídas mais uma vez, e um novo original irá reinar soberano. 


ai, minha fama de maldito, 2

O after na casa de Pedro Fernandes estava uma bosta. Gente fumando maconha pelos cantos e fazendo aquela média com todo mundo. Artifício emo...