quinta-feira, 25 de julho de 2024

crônica sobre meus vícios de leitura

 tenho um defeito que gosto: estou lendo a história da filosofia de dilthey ("essência da filosofia") e, depois de alguns comentários breves sobre hume, concluo que é imprescindível ler o filósofo inglês para compreender melhor esse não-sei-o-quê que estou compreendendo. essa aparente virtude da curiosidade contudo se torna um vício quando estou frequentemente aumentando o escopo de minhas leituras para além de um centro comum; especialmente porque tenho uma tendência de rejeitar as bibliografias secundárias, as histórias e comentários em geral - não por desconsiderar sua sapiência: é mais um método de trabalho, um gosto epistemológico impressionista, como se quisesse apanhar as palavras em seu momento de ação, no golpe discursivo inteiro, no instante empírico do acontecimento - e perder, consequentemente, muito tempo procurando fios e sentidos comuns. o resultado é uma confusão constante, um eterno adiamento das conclusões, e o pior, da escrita, que atrapalha a prática profissional, mas, pelo menos me divirto.

definição da razão sob o iluminismo: reflexão sobre as condições de experiência

dilthey formulou, sob o nome de "experiência da vida" ("essência da filosofia", p. 76),  um conceito de esclarecimento progressivo do desejo ao longo do tempo: uma razão crítica que, na capacidade de objetivar o mundo - e a própria vida - no curso de sua duração, é capaz assim de atingir uma plenitude e satisfação superior ao da mente inocente, que simplesmente vive, sem reflexão do como, porque e para quê. 

a poesia e a história se tornam suplementos para a experiência, formulações capazes de auxiliar a tomada de consciência do valor universalmente válido, ainda que validado universalmente dentro da perspectiva do valor particular em que se dá a vivência. 

existe uma adequação da sabedoria transcendental ao fluxo imanente da vida, e também uma separação entre aquilo que seria a sensação, a (in)consciência em estado irrefletido, pragmático e mundano, e uma consciência superior, contemplativa, característica da etapa racional verdadeira: aquela capaz de julgar reflexivamente sobre a própria experiência ainda durante o curso desta. 

nesse esquema teleológico de esclarecimento do desejo, em que o progresso do tempo representa o progresso do julgamento e compreensão, e assim, da felicidade e saciedade, da sabedoria do desejo, de caracteriza uma filosofia oposta a de freud. talvez seja essa uma diferença significativa entre a hermenêutica posta pela psicanálise e uma como a de dilthey: porque a psicanálise de freud propõe o inconsciente como uma espécie de aparelho que sempre desviaria os progressos do esclarecimento. se em dilthey há um desenvolvimento da razão sobre o desejo, um domínio crítico da consciência sobre o curso errático da experiência, freud irá inverter os termos: o desejo irá permanentemente errar a razão, e o curso da experiência irá repetidamente contrariar a crítica que supostamente se proclama dirigente desse processo. 

a conclusão mais importante dessa breve comparação é uma descrição clara do que afinal significa "razão" para um iluminista como dilthey: um saber universalmente válido capaz de julgar e refletir - desde um ponto de vista transcendental - as experiências históricas e particulares da vida. se por um lado dilthey formula a multiplicidade de experiências, sua hermenêutica se descreve pela razão - a própria filosofia - capaz de avaliá-las desde esse ponto de vista da universalidade. 

isso quer dizer que a verdade em dilthey é menos metafísica do que antropológica: diz sobre a vida, está dado no nível dos valores de cada tempo e indivíduo, legisla sobre a felicidade e seu bem-viver, e enfim: é uma verdade que poderíamos chamar de ética. 

a razão universal diz sobre a capacidade do homem julgar cada experiência particular dentro de sua particularidade, e desde esse poder cognitivo, sua força absoluta, se elevar acima da sensação, atingir o nível do entendimento, reflexão - fazer a crítica de si na duração do em-si -; enfim, se tornar ser filosófico, racional.

narcisismo e paranoia na civilização

adorno louva o sistema burguês trabalhista de hegel por formular, na perfeição bem-acabada do conceito, o mundo unificado por meio das relações de troca, da mercadoria. seria, por parte de hegel, uma espécie de intuição do espírito do tempo: a empreitada do alemão teria "inferido a partir do conceito, esse caráter sistemático da sociedade, muito antes que ele pudesse impor-se no campo acessível à experiência de hegel". 

adorno se refere à sistematização hegeliana da integração das partes com a totalidade como expressão do espírito capitalista, de um modo que a fenomenologia e o projeto filosófico de hegel poderia ser um espelho de cristal para as relações constituídas sob o signo da mercadoria, em que tudo somente pode ser em relação a um outro: "essa capacidade da produção esquecer a si mesma, o princípio de expansão insaciável e destrutivo da sociedade de troca, espelha-se na metafísica hegeliana". não queremos sugerir que conceitos não possuem tal poder de clarividência; de certo, a obra hegeliana permitiu, deu forma, as aspirações teóricas de adorno em relação ao capitalismo do século XX, assim como o mito de édipo serviu a freud para inteligir com tamanha clareza suas próprias ideias. a mitologia, essa espécie de laço espiritual, série de histórias e imagens partilhadas, funda essa possibilidade de entendimento, e mesmo comunicação. poderemos, contudo, pensar na extensão e duração dessa mitologia das partes pelo todo, uma ontologia sinedótica em que o singular somente consegue existir pelo e no olhar do outro. 

trata-se de procurar o chão histórico em que se desenvolveu o narcisismo, é claro, já que este consiste na auto-consciência doentia de si, ou ainda, uma percepção de auto-percepção persecutória, que não permite esquecer de si mesmo em nenhum momento: seu corpo, sua fala, seus movimentos, tudo e mais ainda se torna objeto de consciência para o narcisista, como se, em sua fantasia, recriasse em si e para si o olhar e julgamento do outro: só é capaz de se conceber mediante ele. se a civilização é um desenvolvimento da coesão social pela integração e alienação progressiva do trabalho, então a civilização também caracteriza um caso progressivo de narcisismo, em que o eu, na proximidade crescente com o outro, somente pode conceber a si mesmo desde seu olhar. não por acaso que, na intensificação da modernidade, a sinceridade e autenticidade surgem como questões centrais para a vida reflexiva: como ser para si mesmo? como escapar do fluxo repressivo e modelador, a violência imposta pela proximidade do outro, pela manifestação tão clara do leviatã social? 

a relação de força entre o outro e o sujeito é tema central na tragédia íntima de rousseau, cujo corpo parece fracassar, como se fosse um ser extemporâneo, incapaz de se adequar a sua própria e tão clara intuição do panótico social, cada vez mais objetivado na indústria cultural, na perseguição levado a cabo pelos instrumentos do jornalismo, na criação dessa fantasia aterrorizadora e deliciosa de ser celebridade. rousseau se deleitava, mas, também, sofria: termina sua vida entregue às reflexões intimas, cerrado em seu desejo recorrente de distanciamento e solidão, cuidando de sua mórbida velhice em uma casa de campo, longe da vida citadina e da conspiração do público. é um homem cuja obra e biografia representam, tanto ou mais que a conceituação de hegel, a tensão da vida capitalista enquanto uma ontologia do valor de troca, em que somente conseguimos nos conceber a partir da consciência de sermos consciência de um outro. o sujeito cartesiano, marco mitológico da filosofia moderna, funda-se antes de mais nada na subjetividade de si para si: e descartes precisa se isolar em um chalé taciturno para silenciar o ruído externo e ficar a sós consigo mesmo. 

a sociedade, leviatã já idealizado por hobbes em que esse todo imaginário subjuga todas as partes, é uma entidade persecutória, cujo olhar é quase impossível de se abstrair. por último, retomando ao comentário sobre a antecipação divinatória de hegel, sobre a forma com que seu sistema formaliza a vida histórica dos séculos seguintes, vale fazer uma breve hipótese de carácter histórico. a aristocracia do século XVIII francesa, como demonstra o exemplo de rousseau, já vivia sob essa condição narcísica, de se saber inconsciente ou conscientemente cindido entre um eu e uma imagem do eu ao outro, incapaz de definir o originário, e atormentado por essa impossibilidade. 

sobre isso, o exemplo de rousseau (que em certa obra, na divisão que faz de si mesmo em vários, na própria representação como terceira pessoa, encorpora tão bem) é eloquente, mas ainda podemos pensar em como, desde o século XVI, a experiência de corte na inglaterra, estimulou a thomas morus a escrita de sua utopia. ali, a  tensão entre a vida pública, a necessitada de deleitar e de cultivar um ethos particular, entra em choque com a inconveniência característica da verdade. a adequação da retórica e a extemporaneidade da filosofia se confrontam, mais uma vez, sendo esta valorizada pelo seu poder de se livrar do domínio do outro sobre si. essa, talvez, fosse a paixão que animasse ainda a filosofia de rousseau: o desejo de se libertar do outro e se ver transparente, de si para si, e não de si para o outro para si. 

em hegel, contudo, e essa talvez seja sua radicalidade em relação a seu predecessor francês, esse desejo parece caducar diante da consciência de que o sujeito é, na verdade, sujeito-objeto; de que sua apercepção - em continuidade a kant - é sempre fenomênica, uma imagem projetada dentro da projeção social, que não é outra coisa fora a história do espírito.

o infinito e o universal como liberdade

o positivismo é fascinado pelo fato e pelo dado: sua razão fria e calculista é máscara. por baixo da máscara está um fetichista cujas pupilas se dilatam, extasiadas, diante da forma-fato, da forma-dado. essa é a dimensão mais obscura da retórica da clareza. por trás das formas mais transparentes é onde melhor se ocultam segredos. (é a lição da carta roubada de edgar allan poe). e sob a forma acabada da facticidade, sob o domínio tranquilo da positividade, estão cifrados instintos terríveis, morais ancestrais, metafísicas esquecidas, que retomam, no presente nosso, a realidade reificada pelas forças invisíveis da história.

nesse sentido, o conceito de totalidade investe contra a finitude e determinação perversa própria da historicidade. diante da objetividade, da imediatez e da auto-evidência, a totalidade abre a história para o outro, para o incondicionado, para as figuras do infinito capaz de desfazer a identidade despótica do particular e do positivo no espaço em branco, a ser criado, do negativo. vingança do presente contra o passado pelas armas do futuro: no insignificante aberto pela negação pode-se recuperar, esperamos, alguma autonomia, alguma liberdade. 

essa caracterização iluminista do infinito, que luta contra a determinação da historicidade, do tempo e do espaço, contra tudo que nos condicione por fora da reflexão ativa, não obstante seja hoje avaliada como parte de um movimento universalista, capaz de supra-sumir toda forma de não identidade na identidade total, aos iluministas ou pós-iluministas (penso em hegel, husserl, dilthey) surge, ao contrário, como possibilidade de se libertar do irracional, das forças que nos dirigem sem que nos saibamos dirigidos, da identidade inconsciente, na direção do outro, do novo, da diferença; enfim, o infinito, em tensão com o imediato da história, do aqui-agora, é força capaz de romper a potência estacionária do passado, a opressão daquilo que está pensado e esquecido como pensado, e iniciar a possibilidade de crítica e progresso.

"em hegel a totalidade não pode ser vista como negação simples do particular, como subsunção completa das situações particulares a uma determinação estrutural genérica. ela será a consequência necessária da compreensão do particular ser sempre mais do que si mesmo, de ele nunca estar completamente realizado. na verdade, ela aparecerá como condição para que a força que transcende a identidade estática dos particulares não seja simplesmente perdida, mas possa produzir relações". (glosa de safatle à "três estudos de hegel", p. 26 - 27).

o escravo dialético

a tematização do universal e do infinito, que parecem contraditórias, são no entanto relacionados: é pelo aparelho da razão, força universal, capaz de romper as determinações e condicionamentos da vida natural, e mesmo cultural e histórica, em seu estado de anestesia reflexiva, que o ser humano se põe na relação com o outro. 

a alteridade iluminista, de maneira que para o pós-estruturalismo já se tornou estranha e ideológica, parte do aparelho imperial e colonialista europeu, era somente possível de se formular dentro da perspectiva da reação da razão diante das forças condicionantes a que estava sujeita a consciência. 

desde o ponto de vista em que a filosofia do iluminismo já estava em crise, adorno irá reformular o hegelianismo a partir de sua dialética negativa, em que a síntese "não é apenas a qualidade emergente da negação determinada e simplesmente nova, mas o retorno do negado; a progressão dialética é sempre também um recurso àquilo que se tornou vítima do conceito progressivo. o progresso na concreção do conceito é sua autocorreção". (dialética negativa, p. 276). 

a perspectiva da razão corrigir a própria razão parece ser uma espécie de nova volta no parafuso: a vigilância em que a razão já havia criticamente posto a consciência irrefletida agora deve vigiar também a si mesma, aos seus próprios produtos. as negações determinadas, produzidas no movimento dialético, se fazem um conceito, é sempre um conceito parcial, que produz sua positividade ao passo que produz sua negatividade: acende uma luz tão rápido quanto apaga outra. 

não é de surpreender que o dialético, na caracterização tão representativa do próprio adorno, é essencialmente não somente um paranoico, sempre desconfiado de tudo e mesmo de si, mas também um operário do conceito, sempre a beira da exaustão, sempre a beira do colapso nevrático, já que o tempo inteiro posto na obrigação do movimento, da negação das suas negações prévias. se a verdade dialética formula um conceito de reificação do conceito, conceito em que o conceito tende, pela lei natural de seu movimento, a se esquecer de sua própria conceitualidade, a possibilidade de uma "filosofia primeira", fundamento em que irá se arquitetar, de forma crescente, do princípio as consequências, em série lógica dedutiva, a lei da verdade, está totalmente rejeitada: os princípios primeiro, pois, caducam tão logo desapareça a experiência real e histórica de sua produção. 

a filosofia só ocorre processualmente, o conceito, portanto, precisa ser continuamente recriado para assim dar vazão ao esforço do filosofar: e se o conceito é puro trabalho de levar o irracional à sua superação reflexiva e morte (três estudos, p. 163), é porque o entendimento é produto do trabalho, em oposição à sensibilidade, que antes é o dado, ou ainda, a submissão do sujeito ao trabalho pretérito, seu laço de sujeição com o trabalho conceitual prévio, que lhe determina e condiciona. "o primado do logos sempre foi um fragmento da moral do trabalho". (três estudos, p. 95). nietzsche, na sua sabedoria singular, não por acaso caracteriza sócrates, o pai de todos os dialéticos, como alguém em luta contra a natureza das coisas, que emprega a dialética para matar tudo aquilo que deveria ser simplesmente porque é. e ainda: contra todo o trabalho do conceito prévio, esquecido, mas atuante contra sócrates. o trabalho do passado atormenta e escraviza o futuro. e adorno, descendente socrático, no seu século xx, assim como maiakovski no reino vizinho da poesia, somente pode dar expressão a essa ânsia filosófica por meio dessa reflexão incessante, essa luta consigo mesmo e contra o mundo do hábito, contra a suspeição continua de tudo que existe: é sob essa forma doentia que o filósofo dialético deve existir.

"pois esse momento de tensão violenta - reflexo das necessidades da vida -, que caracteriza todo trabalho, está ligado a todo pensamento; o esforço e a tensão do conceito não são metafóricos" (p. 95). o verdadeiro filósofo, afinal, é sempre o escravo.

se marroquino nascesse na frança

se marroquino nascesse na frança seria filósofo. me entregaria a rigidez da lógica, ao alexandrino de mallarmé. escreveria esfinges, que devoraria dos enigmas todas as respostas: meu pensamento me faria poeta. olhar o céu de noite, na saída de um bar, e dividido entre as duras palavras de kant e minha namorada, tomaria meu destino para casa. provavelmente o metrô, que mergulha por dentro da terra. escreveria sinônimos, expandiria o idioma por meio de sua identidade, mas também seria destrutivo, como o martelo de nietzsche ou a gramática de derrida. como se fosse brasileiro, contudo, creio que sentiria-me fora de lugar: seria um impostor ou um fracassado, alguém que não faz sentido estar onde chegou. e por isso, seria marroquino, a sonhar com a existência que alá concedeu ao meus avós. tomaria café e fumaria haxixe com uma cerimonia que as vezes disfarçava, com vergonha de que imaginassem que me sentia ligado à terra. porque não quero ser marroquino, no entanto eu queira ser marroquino. se isso fosse um sonho, por que escolhi ser marroquino? se isso fosse um sonho, por que não a realidade? eu, um marroquino, que enxerga as coisas, pensa as coisas, sente as coisas - a empiria toma conta de todos meus pensamentos depois de tantas leituras de hume - como um marroquino, no entanto, não sou um marroquino. penso em meus ancestrais, se ajoelhando em mesquitas e comprando escravos em mercados. foi assim que aconteceu? não sei, mas sou como se fosse. perguntei certa vez a minha mãe sobre a nossa vida em marrocos. ela parecia não me saber dizer como foi juventude. parecia ter esquecido dos anos que passou em marrocos. ouvia aquelas histórias, que nada diziam, fingindo me satisfazer, mas por dentro frustrado com minha mãe. por que não me contaria de seu passado? não sei, e sem que perceba, escolho não pensar mais nisso. mas, se eu fosse marroquino, jamais conseguiria deixar de pensar nisso.

15. Travessia pelo bosque adormecido (feat. Aristóteles Fumava Balão)

Alma Nora começou a trabalhar em um escritório no mesmo prédio que trabalha o marido, Azevedo Diniz. Seu intuito de esposa preocupada é fiscalizar a interação dele com outras mulheres. Caso ela o pegue a sós com alguma funcionária, ou em situação de excessiva intimidade, essa funcionária, afirmou a senhora Nora será espancada (Alma Nora nos revelou haver um sua bolsa um cassetete retrátil). A seguir, transcrição do que mais falou Alma Nora: 

“Tô pegando o elevador para ir aonde? Lá no andar do Deus. Eu peguei um escritório no mesmo prédio dele, porque é sensacional. Porque eu vou dar um check toda hora, mulherada, para ver o que está fazendo, com quem tá conversando, se tem muita intimidade, se não tem. Se eu achar que tem intimidade de mais, eu vou bater lá. Ou bota outras pessoas, ou essa mulher vai ser mandada embora.”

O marido preferiu não se manifestar, mas nos corredores de seu escritório, os funcionários fofocaram sobre esse escarcéu. Julieta disse, enquanto pintava as unhas: 

- Estou até vendo onde isso irá dar. 

Malandrinho, o assistente, levantou a cabeça de sua prancha e exclamou:

- O que houve? Estou tentando terminar esse relatório. 

(No papel de sua prancheta, em estilo dos livros de naturalistas, está desenhado um gatinho persa trepando em uma fêmea). 

- Não soube? 

- Não soube. 

- É o novo caso de Azevedo Diniz. 

- O que estuprou a irmã? 

- Esse mesmo. 

Malandrinho fez uma careta de nojo. 

- Esse daí nunca prestou. 

- Pois é. 

- Chegou daquele jeito todo, logo no primeiro dia, lembra? 

- Apresentado pelo chefe? 

- É, como se fosse alguém graúdo. 

- O pai dele é amigo do Júlio César. Foi posto aqui no pistolão.

- Quem falou isso? 

- Sabe o Praxedes? 

- O aleijado? 

- Ele mesmo. 

- Vi ele ontem. Estava me perguntando sobre o jogo. 

- De ontem? 

- Sim, o time do São Cristóvão derrotou o América. Vi ao vivo. dois a um, gol no finalzinho. 

- Achei que o Praxedes era Bangu. 

- É nada. Esse é São Cristóvão roxo. 

- Enfim, como dizia. O Praxedes que viu. Contou tudo. 

- Nada que eu já não desconfiasse. Esse daí é um pilantra.

 - E agora essa. 

- Pois é. 

- Mas o que ele fez? Conta! 

- Dessa vez ele não fez nada. Desde que retiraram as queixas, ele está pianinho.

- O que houve então, Julieta? 

- A esposa dele, aquela Alma do escritório do lado, resolveu começar a trabalhar por aqui só para vigiar o Azevedo Diniz. 

- Quê?? 

- É, ela é esposa dele. 

- Não. 

- Veio para cá mordida de ciúme. Ele já tava de caso com aquela Maria Maria. 

- Aquela que vive com as pernas amostra? 

- Isso, que vive na Rua dos Inválidos. 

- Essa é uma vagabunda e todo mundo sabe disso. 

- Sim, não sei como toleram gente assim em nosso escritório. 

- Um escritório tão direito, tão reconhecido. 

- Gentinha. 

A referida Maria Maria era uma moça de vinte e seis anos de idade que de noite trabalhava como prostituta. Tirava seu óculos, se disfarçava com uma maquiagem pesada e uma peruca loura, e ninguém sabia que Maria Maria era Leila Beatnik. 

No fim daquele mesmo dia, Leila Beatnik foi encontrar um cliente. Se colocou deitada, somente de calcinha e sutiã sobre a cama do homem. Os pelos pubianos escuros saltavam para fora e seus peitos se esparramavam como os de cachorra prenha. 

- Gostou?, sussurra ela em tom inocente, se contorcendo toda e fazendo biquinho. O homem segura Leila Beatnik pelo pescoço e puxa-a para perto, bem perto de si. Ela grita baixo: a peruca escorrega e sai do lugar. Leila Beatnik tenta segurar, mas seus cabelos caem na cama, e depois no chão. O homem, indiferente a cor de seus cabelos, olha-a com ferocidade. Seus dedos apertam os ossos frágeis de Leila Beatnik. Ela sussurra de novo: 

- Papai não gostou? 

O homem desfaz, devagar, a sua cara de malvado em um sorriso de bêbado: 

- Você está linda, Leila. 

Os dois se beijam. Ele deita por cima dela e fazem amor no tempo do rádio tocar três músicas. Ele paga ela. Vão até a porta, trocam um beijo e se separam. Ele voltará para sua família, ela ficará contando o dinheiro da noite. Típica fantasia masculina, pensava Leila Beatnik, enojada. Misoginia e pedofilia. Preciso fingir ser uma garotinha travessa para ele ter tesão. Ai, como é cansativa essa vida de puta. Fazer ginástica, raspar todo dia os pelos da perna, passar perfumes cheirosos, loções de pele e todo gênero de farmácia, para vir um homem desses e sequer olhar para o meu corpo. Leila Beatnik pega sua câmera fotográfica. Posa na frente do espelho e tira uma foto. Depois de revelada, fica olhando a si mesmo, nua. Era bonita? Não sabia, mas ela não se excitava com seu corpo. O que excitava Leila Beatnik era que os outros reconhecessem nela a sua beleza. Se não recebia essa aprovação, Leila Beatnik sentia-se mal. Às vezes, tinha náuseas e cefaléias intensas. Chegava do trabalho do escritório e se atirava na cama. Tudo que queria era que pudesse dormir, mas a dor de cabeça intensa impedia. Sentia vontade de chorar. Gritava com o travesseiro enfiado na boca. Depois de muito tempo se queixando, resolveu aceitar a recomendação feita por Azevedo Diniz e procurou ajuda psiquiatra. 

Foi assim que passou a se consultar com Nina Rodrigues, uma psiquiatra jovem, mas que Azevedo Diniz afirmou ser muito talentosa. Para Maria Maria, Nina Rodrigues era deslumbrante. Não somente porque era bela como uma flor que lembra ter visto na infância mas que esqueceu as formas, mas Nina Rodrigues era bondosa. Sempre ouvia, com seu rosto de boa menina, tudo aquilo que Maria Maria falava. Dava bons conselhos, defendia nas horas corretas, criticava às vezes até demais, mas sempre para o bem de Maria Maria. Não sabia se era sua amiga, se sua namorada ou se sua mãe. Não podia ser todas juntas? Mas Maria Maria mesmo assim não poderia dormir com ela. Pensava, antes de dormir, no corpo nu de Nina Rodrigues, mas não via nada: a nudez de Nina Rodrigues era para Maria Maria impensável. O que devia haver por baixo da roupa da doutora? Debaixo daquele jaleco branco e cumprido. Por baixo dos óculos e do penteado de boa menina. Por baixo do sorriso treinado na arte de agradar. Por baixo das palavras que fingia. Quem falava ali, jamais era Nina Rodrigues, sabia Maria Maria. E se falava de coração aberto sobre Leila Beatnik, em troca Nina Rodrigues devolvia palavras calculadas, seguindo a risca os saberes de Freud de que o psicanalista deve ser um ator do método. 

Foi isso que o velho Freud disse para Nina Rodrigues, enquanto viam o anoitecer da praia. 

- Nina, gostaria de te agradecer.

- Pelo quê, Sigmund? 

- Por tudo. E também te dizer...

Freud desvia o olhar. Nina procura compreender o que Sigmund quer dizer, mas não compreende. Respira fundo e se aproxima: 

- Pode me contar, Sigmund. 

- Tem certeza? Não irá agradar. 

- Pode me contar. 

Freud fala baixo, perto do ouvido de Nina, mas sem tocá-la de forma alguma, evitando o contato por um escrúpulo cavalheiresco: 

- Você não é boa psicanalista. 

Nina Rodrigues arregalou os olhos, mas fingiu não sentir nada. Manteve o tom de voz disciplinado:

- Não acha?, disse, tentando parecer indiferente às palavras de Freud. Este fez cara de choro. 

- Não queria magoa-la, Nina. 

- Você nunca quer magoar. Você sempre mágoa, resmungou Nina, a indiferença subitamente cedendo a um tom maldoso de certeza irrefutável. 

- Não é assim. 

- Tá, Sigmund. Por que não sou boa psicanalista?

- Bom, Nina... você não...

- Não o quê?

- Você não está fingindo.

- Como?, exclamou Nina Rodrigues, incrédula com as palavras cínicas de Freud. Ele tentou se justificar: 

- Veja bem, Nina Rodrigues. Você não deve ser você para seu paciente. Você não deve ser nem quem seu paciente deseja. Você deve ser quem seu paciente precisa e não sabe que precisa.

- Quer dizer que estou deixando minhas paixões interferirem no meu trabalho? Freud olha para a lua entre os morros por trás da praia ao responder: 

- É necessário alguma frieza. É necessário disciplinar seu corpo.

 - O que quer dizer? 

- É necessário seguir um método, Nina. É necessário haver um dogma. Uma prescrição de conduta. O psicanalista não pode seguir somente sua intuição. 

- Você então sub-entendeu que eu não tenho entendimento: que sou toda sensibilidade. 

- Não disse isso. Disse que somente acho que você é muito livre nos seus procedimentos. Você se deixa levar pelo que sente do paciente. Você não deve desejar seu paciente, você deve desejar a psicanálise. Você deve desejar a psicanálise. Você deve desejar a psicanálise. 

Nina Rodrigues baixou os olhos, chorosa. Freud se aproximou, e incapaz de tolerar a distância, tocou no ombro de Nina Rodrigues, mas ela repeliu. Com a voz firme, mas o coração apertado, disse: 

- Melhor eu ir, Sigmund. 

Ele se afastou e colocou as mãos no bolso, olhando para a lua:

- Sim. Está ficando tarde. 

Ficaram alguns segundos sem silêncio, examinando as estrelas. Olharam um para o outro e trocaram um beijo rápido. Cada um foi para sua cama. No dia seguinte, Freud voltou para a Alemanha. Nunca mais se viram: Quando Nina foi visitar a Europa, Freud já estava morto.

Carl Jung terminou o charuto oferecido por Dr. Freud, bebendo o último gole do café. Amassou o papel que continha o sonho relatado para seu mestre e amigo durante aquela conversa, que durou aproximadamente doze horas. 

- Mais uma coisa, Sigmund, antes de ir embora. Quando a minha mãe estava morrendo, sabe o que eu disse? 

- Não faço a mínima idéia. Conte-me. 

- Eu a agradeci por tudo que ela tinha feito por mim, e que ela poderia ir embora em paz. Pois seu filho havia se tornado um homem, e estava prestes a conseguir realizar o seu maior sonho. 

- Seu ou dela?, disse Freud, com uma pontada discreta de ironia. Enfiou o charuto na boca como se fosse uma máscara capaz de ocultar suas intenções perversas. Examinou o rosto jovem e belo de Carl Jung, enquanto refletia sobre as ideias matricidas do rapaz. Não ouviu bem o que se seguiu, ocupado nesses pensamentos:

- Nosso, Sigmund. Nosso. Pois o que ela desejava é que seu filho seguisse seu próprio caminho. Era uma mulher sábia, enfrentou as piores dores ao longo de sua vida. Fui sortudo nesse aspecto. Muito sortudo.

Carl Jung parou de falar subitamente e ficou estudando o rosto de seu mestre. Imediatamente, com uma velocidade de autômato programado para devolver o enunciado ao outro, Freud respondeu:

- Eu tenho certeza disso, meu caro. Contigo, a psicanálise agora está em boas mãos. E que horas são?

- Tarde, disse Jung examinando seu relógio de bolso.

- Perdemos um pouco a hora hoje.

Dr. Freud levantou-se do sofá, batendo com uma mão no ombro de Jung, segurando o charuto aceso na outra. A fumaça de tabaco caro continuava espalhada pela sala. Serviram-se ainda com mais uma caneca de café preto, terminaram o pedaço de bolo servido pela empregada, e depois de alguma conversa, foram até a porta da casa de Freud. 

- Até a próxima, Sigmund. Tenho certeza de que seremos bons amigos. 

- Não tenha tanta certeza assim, meu caro. A juventude é uma fase de nossa vida marcada pelos equívocos. Não esteja certo de nada. É melhor perder a razão do que teimar como uma criança mimada que requer colo. Siga seu caminho, e a psicanálise, se estiver alinhada com o seu desejo. Nos vemos semana que vem. 

Se despediram e se separaram. Freud foi deitar na cama junto de sua mulher, Martha, com quem havia feito as pazes depois de um pequeno escândalo conjugal que a família conseguiu abafar com sucesso. A filha pequena do casal dormia no berço ao lado. Freud, antes de deitar, olhou para a filha e se sentiu bem. 

Lá fora, Carl Jung sentia o vento alemão castigar seu rosto.  Era um homem alto, muito robusto e tinha um olhar grave. Sombrio, como qualquer erudito. Neto bastardo de Goethe, costumava ser observado pelas mulheres em qualquer local que frequentava. Carregava em sua mala escritos filosóficos, mas não se dedicava à literatura da mesma forma que seu avô. Freud sempre dizia que Jung deveria ler mais poesia e menos ciência. O caminhar bastardo de Goethe, costumava ser observado pelas mulheres em qualquer local que frequentava. Carregava em sua mala escritos filosóficos, mas não se dedicava à literatura da mesma forma que seu avô. Freud sempre dizia que Jung deveria ler mais poesia e menos ciência. 

O caminhante de pernas fortes, cultivadas nos montes íngremes da Suíça, continuava caminhando, indiferente, como se as pernas pudessem resolver as resolver as questões internas que remoía com a cabeça. Um costume da maioria dos psicólogos naquela época, como não pude de notar em minha visita a Berlim. Estive lá no inverno do ano interior da morte de Fréderik, naquele terrível acidente no submarino. Nos reunimos com Freud, almoçamos linguiças alemãs e cerveja que jamais encontrei igual no Brasil. Com os pratos vazios amontoados em cima da mesa e nossas calças já abertas para aliviar a barriga estufada, Fréderik sugeriu darmos uma caminhada. Freud concordou dizendo que era bom para também digerirmos as ideias - os dois discutiam uma complexa questão de estética transcendental que Freud acreditava haver relevância antropológica; na maior parte do tempo, como é de meu hábito, preferia ouvir e guardar o silêncio -. 

Foi então que fiz um comentário: 

- Aqui vocês gostam de caminhar para pensar, não? 

- Claro, é natural, fisiológico. Na sua terra não se caminha também?, questionou Fréderik.

E pensei nos seresteiros sertanejos, deitados no chão cheio de poeira depois do almoço, abraçados à guitarra a dedilhar notas ao acaso e fazer mumunhas com a boca. Ia me precipitar e dizer que não, concluir que o brasileiro é um povo de pensamento preguiçoso, imóvel e leseiro, mas no instante seguinte lembrei das gafieiras cheia até as paredes com os dançarinos correndo por todo salão. 

- Não sei, respondi. 

Fréderik deu uma risada e tirou sarro de minha cara: 

- Você nunca sabe de nada, Pianeiro! É uma figura!

Tentei me justificar, ao mesmo tempo que dei um sorriso complacente:

- Não sou cientista. Não quero pensar o mundo. Basta sentir o que sinto, fazer o que faço, transformar tudo em música, e a música em um gordo salário que me pague bons jantares como o de hoje. 

- Deveria ler um pouco de Emanuel Kant, não irá se arrepender, disse Freud, sorridente. 

- Sim, concordei vagamente. 

- Mas não saber se andam na sua terra?, continuou Frederik a me debochar. Dei de ombros. 

- De certo modo, sim, respondi. 

Os dois deram boas risadas e falaram palavras em alemão que não entendia. 

- Vamos, Pianeiro, vamos, falou enfim Freud, ainda entre risadas. Me levaram a uma casa de mulheres. Lá escolhi uma austríaca branquela e loira que não cheirava bem, mas que mesmo assim chupei. No balcão, um sujeito franzino, vestido só em mangas de camisa, fumava um charuto. Pedi um drink ao taberneiro e perguntei ao homem se podia fumar um pouco no charuto dele. 

- Não sou de fumar cigarro, mas estou com um gosto ruim na boca. 

- Sem problema, me respondeu. Me entregou o charuto e uma caixa de fósforos. Me atrapalhei para acender, mas no terceiro fósforo obtive sucesso. O gosto ruim de fumaça tomou conta de mim. Quase tossi.

- Obrigado, disse ao devolver. 

- Disponha. 

- Como se chama? 

- Franz. E você, de onde é?

- Brasil.

- América do Sul? 

- Sim.

- Quente lá? 

- Muito quente. 

- Minha empresa abriu uma filial lá. 

- No Brasil? 

- Não, Argentina. 

- Ah.

- Talvez viaje para conhecer.

- Ótimo. Argentina é muito bonita.

- Conhece?

- Sim.

E depois de breve silêncio:

- E como anda a economia? 

- Da Argentina? 

- De Brasil. 

- Indo. O estado é insuficiente, mas temos grandes reservas naturais. 

- Muito potencial produtivo.

- Muito. 

- Natureza muito bonita, muito rica. 

- E cheia de grandes propriedades para nos roubar, falei, em tom de piada, mas Franz ou não achou graça ou não entendeu. Ele falou como se não tivesse ouvido: 

- E mulher? 

- E mulher? 

- Mulher. 

- Ah, mulher... 

- Muita? 

- Ô. 

- Melhor que Alemanha? 

- Muito. 

Constrangido, pedi licença e fui tomar meu drink em outro ponto do puteiro.

segunda-feira, 22 de julho de 2024

14. sobre o sumiço de azevedo diniz

estava, azevedo diniz, deitado sob o cobertor. 

há muito tempo que não ouviam falar de oliveira diniz. estava, encafifado no porão de uma velha casa, fugitivo da polícia depois do caso de estupro. 

no rio de janeiro, os amigos falavam com a voz baixa, sem querer acreditar que um rapaz direito como azevedo diniz pudesse cometer crimes na calada da noite. como aquele poeta talentoso, com um futuro enorme pela frente, a chance de se tornar um grande escritor, e brindar seu país com a primeira obra da literatura universal, poderia jogar tudo no lixo? 

era assim que comentavam no escritório.

praxedes, que jogava futebol até sofrer acidente trágico em um automóvel e perder seu pé esquerdo, falava disso a um repórter vestido em boina quadriculada e fumando cigarro mata-rato fedido. 

praxedes, pela potência do chute, era conhecido como "o canhotinha". o pé arrancado pelo acidente, justamente o esquerdo, desaparecido enquanto carne, no entanto permanecia parte daquele rapaz que fora a promessa do bangu futebol clube, fosse em suas frustrações com a carreira desperdiçada, com o dinheiro e mulheres que perdeu, com o destino de escritório medíocre, a vergonha de andar por aí com aquela prótese metálica extravagante, o jeito torto que lhe olhavam as crianças, o jeito cínico que as moças desviavam o olhar e fingiam nada ver, fosse com as dores causadas pela síndrome do membro fantasma. enquanto sentia o cotoco doer, falava ao repórter sobre ora sobre a decisão criminosa de alguém que considerava um homem bom, ora sobre a intempérie estúpida de um sujeito que achava ter todos os parafusos na cabeça. no final, chegou um fotógrafo e tirou uma foto de praxedes. 

a dupla do jornal arrebol madrugador se retirou e quando os funcionários ficaram a sós, na copa da empresa, disse anacleto, em coro ao depoimento dado por seu colega praxedes: o trabalho é tudo na vida de um homem. é o poder de ter dinheiro que permite que realize seus sonhos. que case com uma boa mulher. que possa conhecer a frança.

maria, que era religiosa, replicou, revirando os olhos com tamanho materialismo: isso porque todos os seus sonhos estão todos relacionados com dinheiro. mas só cristo é o caminho para o céu.

alma, que era socialista, entre goles de cafezinho, dá uma risada jocosa: a deus o que é de deus, a césar o que é de césar.

falou aquilo em tom de voz baixo, para que o chefe júlio césar, que estava chegando, fumando seu charuto, não pudesse ouvir o deboche.

vamos, disse o chefe, sujeito obeso e que cheirava exageradamente a colônia francesa, quero todos de volta ao trabalho. não tem mais nada para discutirem sobre essa história. e virou para praxedes, irritado: e não quero mais saber de entrevistas ao jornal, ouviu bem? 

praxedes nada disse. todos foram de volta a suas mesas. anacleto pensando se valeria assim tanto a pena estuprar uma moça. maria pensando nos olhos de thomas plínio, que na noite passada fez-lhe promessas de amor açuradas. estavam em um velho engenho longe da cidade, e depois de fazer amor, caídos entre o monte de palha que cheirava a animais e à lubricidade recém terminada do casal, ele prometia que iria largar o seminário para casar com ela. alma pensava em como os homens somente pensam em ganhar dinheiro. o inferno para os homens enão era nenhum dos castigos excepcionais daqueles narrados no livro em versos que azevedo diniz havia emprestado-a antes de foragir (estavam tomando cerveja em um apartamento, e ele entregou o livro com uma dedicatória: "somente anjos podem verdadeiramente acreditar no céu. seu, azevedo diniz"), mas sim uma ausência total, uma negativa de qualquer desejo. e se é o dinheiro que cumpre todos desejos do homem, então não ter dinheiro que é o verdadeiro inferno. alma suspirou. tão difícil conhecer alguém, pensava, escondendo o choro entre o lenço de pano. e praxedes, mancando, pensava em como incomodava ter que andar com a perna mecânica.

o fotógrafo revela o filme. enquanto a imagem da fotografia se revela, oswaldino pereira reparou que o entrevistado da repartição era praxedes, que havia jogado na base do bangu. comenta para um colega mais velho que reconhece de imediato o canhotinha. conta a história para oswaldino, que conta de novo para o repórter, nelson rodrigues. esse fica fascinado com a junção de duas histórias diferentes. como era linda a vida!, pensava nelson rodrigues. como era trágica! duas tragédias diferentes assim ligadas, pelo acaso ou por deus. nelson rodrigues não sabia quem era o autor da realidade, mas reverenciava como um grande mestre. era, nelson rodrigues, um naturalista convicto: acreditava que as melhores histórias eram escritas pela própria vida. o bom escritor, ele explicava para quem quisesse ouvir, precisa perder menos tempo lendo um monte de historinha inventada para vender folhetim e passar a prestar atenção nos arredores. o documento era a mais elevada forma de literatura; e se os parnesianos ainda estivessem perdendo tempo com seus joguinhos de palavras, com a imaginação de mil e uma maneiras exatamente iguais de agradar um público estúpido de eruditos, bem, azar o deles. nelson rodrigues era um dos escritores mais lidos da cidade, em suas colunas diárias do arrebol madrugador. essa história desse azevedo diniz já era um achado. um jovem bonito, com emprego, poeta conhecido no círculo dos engomadinhos da academia, estuprando a própria irmã. que história! atirado em sua mesa de trabalho, nelson rodrigues fez questão de reler algumas páginas do manual de psicanálise que tinha na estante, escrito pelo médico arthur ramos. em seguida, passou a escrever a reportagem do dia seguinte. 

"o que leva um homem a desejar a própria irmã?

"doutor freud, ilustre médico alemão e inventor da psicanálise, escreveu que não existe nenhuma determinação na conduta moral do homem, nem mesmo naquilo que se refere aos seus impulsos amorosos. como todo animal, precisamos seguir as necessidades da natureza, e o impulso reprodutor não possui nenhuma prescrição fora o imperioso impulso de inseminar a fêmea. 

"certa vez, depois de uma conferência proferida na faculdade de direito, o ilustre doutor arthur ramos, que ano passado se tornou o segundo presidente do clube psicanalítico do rio de janeiro (lembremos que um de seus fundadores e primeiro presidente, o saudoso doutor fréderik nos deixou depois de um acidente em seu submarino) explicou pessoalmente que o impulso reprodutivo não possui nenhuma limitação a prioristica, mas que a civilização, pela força da lei, imprime seus desígnios ao desejo desregrado do homem. 'é dessa forma', explicou, 'que o humano deixa de ser um animal racional e se torna um animal político: pela repressão dos instintos naturais e a criação de necessidades artificiais, reações fantasiosas que passam a orientar a vida psíquica da pessoa'.

"o tabu do incesto vem a ser como forma de impedir a multiplicação dos indices patogênicos dos grupos genealógicos. o cruzamento endogâmicos, ao longo das gerações, eleva a ocorrência de comorbidades, já que multiplicam gradualmente a porcentagem dos genes defeituosos. na mesma medida que o material eugênico de-vem para sua forma especializada, o acúmulo dos caracteres cacofônicos também se acentuam até o ponto em que se faz surgir, inesperadamente, mesmo que de pais perfeitamente normais, as mais inesperadas monstruosidades.

"os casos de psiquiatria severa estão crescendo no país. alguns pensam se tratar da importação de uma forma de vida desenvolvida a um país totalmente selvagem em sua constituição. os brasileiros, compostos pelo menos em duas terças partes de material genético inferior, não possuem capacidade psíquica para viver o ritmo veloz da vida moderna. os carros não cessam de causar acidentes fatais. os casos de alcoolismo crescem. e mesmo as animalidades mais pulgentes começam a surgir, nesse caso de atavismo profundo que é a história de nosso país. os jovens, deprimidos, fracos, estúpidos, bestializados pela vida, desenraizado da tradição, perdem toda fibra moral. degeneram ao estado mais primitivo de sua genealogia. 

"esse foi o caso de azevedo diniz, que na segunda-feira do dia treze desse mês cometeu um crime horrendo. depois de um jantar na casa dos pais, foi até o quarto da irmã e violou-a. foi para casa como se nada tivesse acontecido. seu colega de trabalho, que havia jogado no bangu fc na juventude e prometia ser um grande craque antes do acidente de automóvil que amputou sua perna, o canhotinha praxedes, contou que azevedo diniz foi ainda por três dias de trabalho antes de desaparecer. não se sabe o porque da família ter ido a polícia, mas a coragem de denunciarem um crime abominável - que não mancha de forma alguma a pureza de uma mulher inocente, esposa casada e zelosa do lar - mesmo que cometido por alguém da própria família.

"azevedo diniz segue foragido. a polícia informou que não poupará esforços para enviar o criminiso à cadeia."

em uma cabana localizada em uma rua miserável de são cristóvão, azevedo diniz escrevia uma carta em que explicava não ter nada haver com aquele crime. pagou um escravo para que enviasse à casa de lola baruch. a jovem, quando reconheceu a letra de azevedo diniz, não conseguiu disfarçar o tremor. sua tia perguntou, mexeriqueira, o que era, mas lola baruch mentiu. a tia fingiu acreditar, mas lola baruch sabia que contaria para sua mãe. andaram o resto do caminho com a tia falando de um assunto qualquer, fingindo que nada havia acontecido. na cabeça de lola baruch, o que acontecia afinal? não sabemos, mas sabemos que no dia seguinte foi até a polícia, junto do pai e da mãe, e deu seu depoimento sobre azevedo diniz. dizia não acreditar que seu amigo pudesse cometer um crime desses, e contou haver desavenças graves entre o pai de azevedo diniz e ele. cogitou, para os dois detetives, a possibilidade daquilo ser uma armação. 

como provar que ela foi mesmo estuprada?, lola baruch perguntou. sua mãe levou a mão à boca ao ouvir aquela palavra. 

menina!, exclamou colérico o pai e agarrou seu braço com força. ela ganiu de dor e tentou arrancá-lo, mas os dedos eram fortes. levantou-se, puxando lola baruch, que sôfrega foi conduzida para fora da delegacia. os detetives se entreolharam. travinarus sugeriu que aquela hipótese não poderia ser descartada. seu parceiro, o comissário lemrot, era cético. ninguém difamaria a honra da filha assim, a troco de nada. quer dizer, azevedo diniz e seu pai deveriam se odiar, e somente por conta desse ódio que o pai pode entregar a vergonha da filha para toda a sociedade assistir. mas duvidava que tivesse fabricado aquela história para incriminar gratuitamente azevedo diniz. travinarus, contudo, argumentou não haver prova empírica de que a mulher foi mesmo estrupada. lemrot então suspirou, cansado, e mandou que solicitasse ao juíz um mandato para fazer o exame ginecológico na vítima. é pra já, disse animado travinarus, que adorava fazer exames ginecológicos.


quinta-feira, 18 de julho de 2024

a vontade do sujeito de saltar por sobre sua própria sombra

há entre o ser e o sujeito
um espaço indefinido e intransponível
a ser na distância interminável do tempo, 
infinitamente percorrido pelo pensamento. 

como um pêndulo que vem e vai, 
o conceito marca e perde, incansável, 
o progresso do dialético movimento.

o relógio toca, desperto.
limpo a remela amarelada,
sinto o sol quente na cara.
entram pela janela as casinhas apertadas,

                                        tijolos expostos, reboco
                                        som de risadas alta, música popular
                                        barata pras massas, o lavar da máquina,
                                        cheiro gostoso de almoço 
                                                    (carne seca, arroz, feijão, batata)

sonhava com o espaço e o tempo transcendentes.
ora era grego, zenão e heráclito, aristóteles e platão. 
ora via o reno: era alemão, em contemplação calma do absoluto.
era isso e mais tudo: corporificação do espírito absoluto.

aqui, agora, no entanto sou nada.
mas me visto, sem sequer pensar nisto, 
em esforço vitorioso do instinto 
de esquecer mesmo a razão do sentir.

é outro domingo: abro um livro, 
a fenomenologia do espírito,
e leio até o entardecer levar o sol da janela.

terça-feira, 16 de julho de 2024

uma aventura de zé agrippino e pedro antunes

o grande problema do vírus é que ele nos ensinou a temer a morte. é como estar na escola novamente, destinado a um purgatório dentro do inferno, diz josé agrippino de paula. chega sócrates e pelé, vestindo artigos esportivos. olha só quem está aqui, pelé, se não é o zé agrippino de paula, o famoso poeta marginal. ora, ora, diz pelé. josé agrippino sente-se intimidado e recua. o que querem comigo, seus cretinos?, diz, assustado. sócrates empurra josé agrippino na parede. toma, aberração! diz sócrates. pelé chuta o saco de josé agrippino. josé agrippino cai de joelhos.

todo dia em sua vida era assim. josé agrippino de paula vivia sua vida sem empolgação, mas também tinha seus bons momentos. às vezes ligava para os amigos da época da faculdade, namorava com uma menina ou outra. era apertado de grana, mas sabia viver. tinha bons amigos, gostava sinceramente de si.

josé agrippino de paula anda de skate pela cidade. eu seus fones de ouvido, toca a canção godless girl, do the chain gang of 1974. para diante dele um passaro advogado, de maletinha e tudo. com licença, senhor, mas você precisará ir ate a delegacia. pra delegacia? mas eu não fiz nada! exclama josé agrippino de paula. são as regras, senhor! diz o pássaro advogado.  josé agrippino de paula corre. peguem esse homem! berra o advogado, piando bem alto. diversos policiais pulam sobre josé agrippino de paula. dão dois socos na sua cara. ele é amarrado e levado para a polícia.

mais uma vez preso, heim, di paula! ri o delegado olavo de carvalho. cala a boca, velho. não aguento mais você falando merda. diz josé agrippino. que foi, di paula, cadê o seu interesse pela filosofia? o problema de bostinhas como vocês é que nam acreditam na verdade. diz olavo de carvalho. chega clarice lispector e segura o rosto de josé agrippino de paula, preocupada. em que merda você se meteu dessa vez, diz ela chorando e dando socos no pai. josé agrippino de paula tenta se proteger dos golpes de clarice. não queria te envolver nisso, filha. eu fiquei preocupada! diz clarice, e abraça o pai. prometo que vou diminuir na bebida, diz josé agrippino. vamos pra casa, diz clarice, olhando de cara feia para o delegado olavo. alguém quer ler mario ferreira? pergunta olavo.

kanye west está ouvindo hip-hop nas alturas. está tocando heartless, de sua autoria. 

Hey yo, I know of some things that you ain't told me, canta kanye west em um terno com neons e estampas de onça. 

Hey yo, I did some things but that's the old me, canta Kanye West, saindo de dentro de uma selva em país subdesenvolvido.

And now you wanna get me back and you goin' show me, diz Kanye West cheirando cocaína com os amigos,

So you walk around like you don't know me, diz Kanye West vendo jogo do flamengo com os amigos

You got a new friend, well I got homies, diz kanye west cheirando pô em cima das folhas de seu des rerum natura.

But in the end it's still so lonely, diz Kanye West, pulando sobre o sofá, drogado, de cuecas estampadas com pequenas oncinhas.

josé agrippino de paula chega em casa, junto de sua filha adriana calcanhotto. kanye, o que você está fazendo? não me diga que andou usando youtube de novo? diz josé agrippino de paula. ah, vai se foder velho. você é alcoólatra e tem flashbacks de lsd. não é exemplo para ninguém, diz kanye west. kanye, não fale assim com papai!, diz adriana calcanhotto. cala a boca, adriana! você só se coloca no lugar dele!, diz kanye west. você que não quer crescer, seu imbecil!, replica adriana calcanhotto. crianças, chega de discussão, diz José Agrippino. eu preciso deitar para mais tarde escrever. você sempre com essa porra eurocêntrica de escritor!, diz kanye west. foda-se, porra. vai lá samplear umas artistas jamaicanas, diz josé agrippino enquanto entra para o seu escritório. deita sobre o seu colchão e apaga a luz. puta merda, esqueci de pedro antunes.

na polícia, pedro antunes está amarrado em uma cadeira. um policial soca o seu rosto e enfia a sua cabeça em um balde.

Pedro Antunes entrega as algemas e sai da polícia. José Agrippino está do lado de fora, guardando a carteira. achei que nunca viria me salvar, Zé!, diz Pedro Antunes, aliviado. Tá tudo bem, só vamos logo para casa, diz José Agrippino. Ok, vô..., diz Pedro Antunes. E não diga pra sua mãe que você foi pego entrando em território americano com o meu DMT! diz josé agrippino. era só uma festinha em L.A., vô! a galera do brockhampton ia estar lá!

a galera do brockhampton aparece em los angeles, festejando sem sexualizar o corpo feminino. um hip-hop antenado e over-producted toca, e a banda se pinta de rosa choque. fazem dancinhas que aprenderam em intercâmbio em tribos da nova guiné. "i need a friend, i need a friend", canta a galera toda.

eu sei, eu sei, vocês querem ter o rock n' roll de vocês, interrompe josé agrippino. isso não é rock, o rock já está morto! diz pedro antunes, confuso. tá bem, tá bem, volte a ouvir às suas playlists de rock triste no spotify, diz josé agrippino de paula, impaciente. vamos de uma vez para casa! entre logo no carro! pedro antunes abre a porta e entra.

eu devia mesmo dirigir assim, doidão de DMT? pergunta Pedro Antunes. As drogas ampliam a sua mente, Pedro, diz Zé Agrippimo. Apenas concentre-se. Pedro quase atropela um mendigo. Ops, o que foi isso? pergunta Pedro, olhando pelo retrovisor. Acho que você atropelou uma capivara, Pedro, diz Zé Agrippimo. É a terceira só essa semana! Pedro abaixa a cabeça, envergonhado.

José Agrippino e Pedro Antunes entram em casa. Filho! exclama Clarice Lispector, aproximando-se. Estou bem, mãe... Ei, o que o John cage está fazendo aqui em casa? pergunta Pedro. Que John Cage? pergunta de volta a mãe. John Cage esta de pé, disfarçado de uma poltrona. não estou vendo nenhum John Cage! diz José Agrippino. Filho, o que fizeram com voce? diz Clarice enquanto abraça o filho.

é só deitar por alguns dias que ele irá estar melhor, maconha quando bate pode dar umas ondas dessas, diz José Agrippino. Sempre peço para o senhor não deixar o Pedro usar drogas! eu sei, amor! mas também sei que pedro está se tornando um homem, diz Zé Agrippino em sua defesa. Os dois saem do quarto e deixam Pedro sozinho. Puta merda, tá tudo derretendo... Saiam daqui, índios d cabeças gigantes! diz Pedro, de pijamas, revirando-se sob os lençóis. ele urra de dor. suas ideias estão turvas. um longo polvo amarra-o com seus longos tentáculos. e aí, bonitão?, diz o polvo, piscando em luzes verdes e vermelhas. seus lábios estão pintados de batom roxo e irão beijar a boca de Pedro. Zé Agrippino dá um tapa na cara de Pedro. Saia logo daí, Pedro, não temos muito tempo! diz José Agrippino. Vô, é você!, diz Pedro, escondendo a ereção entre as mãos. venha logo! diz Zé Agrippino, puxando o neto para fora de seu delírio. Os dois saem do quarto.

O que está havendo, vô? diz Pedro Antunes, tentando não esbarrar em nenhum dos monstros gelatinosos que imaginava existirem na sala de jantar. Lembra do velho Nelson Rodrigues? pergunta José Agrippino. O velho andou caindo em uma corrente do zap enviada pelo Olavo de Carvalho. Agora desatou a falar de esquerda, achando que tá ma guerra fria!

em seu escritório, Nelson Rodrigues está escrevendo sua crônica da ssmana. Deixe-me ver, deixe-me ver... diz o velho, batucando um samba sobre as teclas da máquina de escrever, os dedos como qhe dançando. toca o telefone. nelson rodrigues atende. quem... ah, oi, seu olavo! ah, sim, fico muito agradecido pelo senhor estar rezando por mim... não, tudo bem, somos católicos mesmo sem ir à missa... pois é, as esquerdas estão fogo... aquele karl marx era alcoólatra? sempre desconfiei! não irei me renunciar! amanhã mesmo irei publicar uma crônica ferina contra os costumes hipócritas de nossos revolucionários! Nelson desliga o telefone. Vira-se diante da máquina de escrever, com as mãos erguidas, ansiosas para trabalharem. mãos à obra! diz Nelson, e começa a escrever.

E aí?, pergunta Pedro Antunes. O que isso tem a ver com a gente?José Agrippino fica furioso. Responde, indignado: Foi você que achou uma boa ideia apresentar o imbecil do Olavo para o Nelson naquela festa que - ah! diz josé agrippimo de paula - eu fiquei doidão e dormi com a menina que conheci naquele grupo do facebook. Pedro se indigna e exclama: foi você que me levou para essa festa maluca! Tá bem! diz José Agrippino, limpando o suor da testa. Diz para o neto: Mas precisava ter contado pro Olavo que o Nelson lia Dostoievski? Pedro se indigna mais ainda: O silêncio estava constrangedor, Zé! eu já disse mil vezes! diz pedro. tudo bem, mas agora vai ter que me ajudar com o velho nelson, diz José Agrippino. Tá bem, tá bem... resmunga Pedro, cabisbaixo. Ele e José Agrippino saem da sala.

José Agrippino e Pedro Antunes estão no carro. Por que você está com tanta pressa? O que de tão grave poderia acontecer, é só o velho Nelson falando besteira mais uma vez! diz Pedro. Você não está entendendo, Pedro. Nos tempos delicados em que vivemos, uma crônica incendiária como a de Nelson é capaz de destruir a sociedade como conhecemos. Temos que destruir a fábrica do Correio da Manhã o mais rápido possível, diz José Agrippino. Em seguida, liga o rádio do carro. Uma primeira voz surge, dizendo: Se a pretensão do ninja é ser um assassino silencioso, não seria melhor não vestir nele uma roupa tão característica de ninja, como quem diz "olha, aqui, eu sou um ninja". Digo, seria mais produtivo andar vestido como um vivente qualquer e só esfaquear o desavisado! A segunda voz, em tom de desaprovação, diz: Sim, Rousseau! Acha que os ninjas não sabem disso? por isso que pararam de andar vestidos de ninjas. agora são todos entregadores do ifood. conseguem estar em qualquer lugar. os ninjas que você ainda vê por aí são na verdade mações disfarçados. desde que os ninjas largaram o uniforme, a maçonaria encobriu os seus rituais e negociações disfarçada de ninjas, sem que ninguém desconfiasse da sua verdadeira identidade. assim que se iniciou a grande guerra ninja maçônica, um conflito que ainda mata milhares de vida. claro que poucas sabem dessas coisas, pois ambas as partes prezam antes de mais nada pela discrição e... Rousseau interrompe e diz; Cala a voca, Voltaire, seu reacionário de merda! Escutamos o som de tiros. Parabéns, Pedro! Você causou a polarização na democracia representativa! exclama José Agrippino. Puta merda, diz Pedro. Melhor irmos de uma vez ver o Nelson. Pisa fundo e o carro acelera.

o que vocês querem? pergunta nelson. estão na casa de nelson. ele fuma cigarros e tem o colarinho de sua camisa aberta. josé agrippino de paula está impaciente: Você precisa fazer uma outra crônica resolvendo a crônica de hoje, diz. o que? como assim? é crime agora revelar que a esquerda tem problema com o povo judaico? Pedro intervém, em tom severo: porra, Nelson, eles estavam fazendo experimentos genéticos com criancinhas palestinas! Nelson retruca, como se não estivesse ouvido: e daí, uma coisa não anula a outra. José Agrippino suspira, cansado. Chega dessa palhaçada diz José Agrippino. Você não pode acreditar assim na verdade, Nelson. Ainda vai acabar vendendo a sua alma para o diabo. Tenho meu Deus aqui comigo, Agrippino. Sei bem por onde ando, diz Nelson. Então sabe que uma sociedade não pode subxistir por muito tempo polarizada assim, diz José Agrippino. Eu sei disso, Agrippino, diz Nelson. Sei muito bem disso. Estamos próximo do fim.

José Agrippino está em um bar, bebendo cerveja com Pedro Antunes. É isso mesmo? Não vamos fazer nada? diz Pedro. O que podemos fazer? O Nelson disse que não iria publicar uma retratação, e a sociedade já está até em processo de decomposição, olhe só! diz José Agrippino, mostrando um tweet em que uma empresa brinca de fazer meme. Atordoado, Pedro se afasta e senta diante da televisão. Liga aí, daqui a pouco começa o jogo, diz José Agrippino, sentado em sua poltrona. Pedro senta no sofá e liga. televisão com o controle remoto.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

a filosofia como colonização

impossível dissimular o desgosto diante da formulação de husserl, tão clara, quase cínica, da filosofia como projeto imperialista de destruição das tradições locais: 

"Ainda devemos acrescentar algo importante no que se refere a atitude da filosofia para com as tradições. Devem considerar-se duas possibilidades: ou os valores tradicionais são totalmente rejeitados ou se assume seu conteúdo a um nível filosófico e, assim, recebe uma forma nova no espirito da idealidade filosófica". (p. 75) 

não se deixem enganar com esse poder de supra-assumir os conteúdos da tradição, por favor: todo o projeto de universalidade da filosofia moderna se concentrou na destruição do diferente enquanto incidental pelas armas dessa generalidade abstrata.

o filósofo de husserl

o filósofo, segundo husserl, é apaixonado por um conhecimento que transcende a práxis da vida natural. é, para todos os efeitos, um espectador desinteressado da vida, um contemplador do mundo, alheio aos problemas e alegrias mundanas, porque de certa forma, embora dependente do mundo, o filósofo não participa, ou ainda, se esforça para não participar do mundo. o filósofo husserliano se caracteriza pela força ascética, pelo movimento de distanciamento que funda o ato da especulação filosófica, transcendente a todas atividades práticas. sua posição é um contínuo colocar-se para-fora, ou ainda, para-cima, para-além, das condições da vida. o filósofo deve mover-se para além da vida enquanto finitude, dirigir-se para fora das determinações de produção (o filósofo, para todos efeitos, não trabalha), das necessidade de reprodução (qual é a relação da filosofia com a sexualidade? com a família? não foi kant, o maior de todos filósofos, que morreu virgem, intocado?), e mesmo do imperativo da comunicação (a incompreensibilidade filosófica funda-se na necessidade de escapar da linguagem, da finitude de seu legislar, e esculpir um idioma próprio, críptico, capaz de nomear e chamar tudo aquilo que as palavras vulgares - construídas para outro mundo, para a vida ordinária, humana - não pode tocar). o filósofo de husserl quer estar não só além do bem e do mal, em sua époche cética, mas estar além do humano, além das condições que determinam o humano transcendentalmente como ser finito: o trabalho, a biologia, a linguagem. somente impondo a si mesmo essa condição sobre-humana que será capaz, enfim, de filosofar e conceber tudo aquilo que o viver-como-humano obscurece sobre o mundo em que o próprio humano vive. 

Neste surpreendente contraste surge a diferença entre a representação do mundo e o mundo real e a nova pergunta pela verdade; não pela verdade cotidiana, vinculada a tradição, mas pela verdade unitária, universalmente válida para todos aqueles que não mais estejam ofuscados pela tradição, uma verdade em si. É próprio, pois, da atitude teórica do fi1ósofo a decisão constante e predeterminada de consagrar toda a sua vida futura a tarefa da teoria, a dar a sua vida um caráter universal, e a construir in infinitum conhecimento teórico sobre conhecimento teórico

(HUSSERL, E. A crise da humanidade europeia e a Filosofia, p. 71).

quarta-feira, 10 de julho de 2024

escrever boas novelas

coloque diabos, humanos vivendo sob tentação e, claro, os anjos radiantes de virtude. todos disfarçados, a priori os mesmos. o leitor deve exercitar seu juízo moral e descobrir por si só, em situações opacas como as da vida, quem são os anjos, os demônios, e o prêmio das almas eternas. e mesmo se saibam o fim, pois o destino está assinalado no semblante das personagens, ainda assim se comovem ao assistir os caminhos expendidos oblíquos, os acontecimentos, azares, ou, simples e metafisicamente, a ação da irresistível força do bem que desfaz todas as contradições, conflitos e lágrimas na direção do final feliz. o novelista deve partir da cama de gato bem embolada para terminar num fio do barbante bem tricotado de cachecol velho e felpudo de vovó que faz comentários racistas na mesa de jantar. disse adam smith o seguinte sobre a novela: "a história consiste na justa distribuição de bênçãos e punições para o bem e o mal; seu mecanismo transcendental, inscrito imanentemente nas ações individuais, é exercício do acordo da história universal imposto por deus ao diabo na origem de tudo".

"a origem da tragédia" de nietzsche

 "a origem da tragédia" é um livro que supera minhas expectativas. livro de crítica afiada, naquele estilo que realiza a chama análise formal, mas que acrescenta ao afã  analítico, característicos de uma ciência da coisa literária ou retórica, à tentativa de formalizar uma analítica pura da forma e isolar seus elementos constituintes, justamente aquilo que por tais purismo seria desprezado: o excesso e desmedida de um vocabulário das coisas concretas, ou conceitos que demarcam aquela relação promíscua entre a historicidade da obra e do crítico. é abertura do julgamento e da crítica ao mundo do valor que o estudo puro das formas quer interditar. difícil tarefa essa, de definir esse outro do analítico, já que ele seria somente o que esta ideologia busca recalcar: não existe verdadeira oposição entre os dois, pois esse outro é também o próprio do analítico, mas aquilo que ele busca reprimir e deixar na sombra. se no entanto o formalismo elementar em crítica literária é essa força ascética, repressiva e controladora da linguagem, a sua contradição é a força libertina, multiplicadora e desregrada; o crítico que não vai na direção do um, do acabamento perfeito, na língua comum, desprovida de enigma e desencantada, mas na direção da construção de uma outra linguagem, na expansão do instrumental formal para além do que seria convencional instrumento de ciência. 

essa ultrapassagem, que no fundo, em mundos não obcecados pelo gozo objetivista da análise, é desprovida de qualquer glamour ou novidade, somente re-abre a linguagem do crítico para um mundo verbal que, pela disciplina, lhe seria proibido. nietzsche, que certamente não conhecia, pelo menos no grau altamente formalizado e enrijecido que algumas formas de ciência literária viria a adquirir nos cenáculos acadêmicos, esse gênero de crítica, faz então sua análise com instrumentos que poderiam parecer impróprios, em forma que nos parece, em última instância, informe, devido sua liberdade e aparente desordem. o analista de hoje, tal qual anaxágoras, trás inscrito no seu interior, silêncio gravadas por gerações de pregadores insistentes: "no princípio tudo estava confundido; veio então o intelecto e criou a ordem". sua inocência é imaginar que são os paladinos da ordem; sua decadência, precisamente, a cegueira do intelecto. assim como o dioniso nietzscheano, excessivo, contra-intelectivo, a crítica de nietzsche aponta o sentido contrário: ir da ordem intelectualizada para a confusão ensaiada dos conceitos. 

um procedimento que ainda está não a ser entendido exatamente, mas re-descoberto e re-feito.

o acadêmico e o artista

cada dia é mais claro que não sou, não serei e que nem quero ser culto. essa é uma fronteira que me separa do mundo dos artistas, que circundo, demonstro interesse, e até frequento como turista. minha vulgaridade é contudo indisfarçável. mais confortável estou entre os acadêmicos, entre gente mal vestida, que não sabe se portar à mesa, que se assemelha ao profissional burguês, em vestes de trabalho: não possuem aquela graça aristocrática na fala e modos, o instinto de agradar, a arte da boa vida, a elegância travestida de boemia, traços característicos do tipo artista e culto. o acadêmico pode até mesmo ser erudito; seu discurso pode impressionar pela inteligência, mas nunca pela retórica. desajeitado e bruto, ele conhece, somente. daí sua dificuldade instintiva com as palavras e o amor inato às ideias.

crônica sobre a história do aceleracionismo

o meio em que conheci a escola talvez cause repulsa ou confusão em alguns. participava de um grupo no facebook chamado "left-libertarianism", dedicado a discutir ideias e teorias que envolvessem economia de mercado, liberdade econômica com pautas de esquerda. essa foi a circunstância com que tomei contato com o nome aceleracionismo. pouco depois, não lembro o ano, fui em um evento do ifcs - não tinha mais que dez pessoas - em que o uriel, um dos vanguardistas do aceleracionismo - deu uma péssima aula, via conferência de vídeo, sobre o tema. a impressão que me causou não foi suficiente para que seguisse atrás do assunto. só ouviria a falar de aceleracionismo novamente quando voltei a frequentar o twitter.

outro realista

a raiz de muita estupidez remete ao conceito darwinista-liberal de sobrevivência do mais forte. uma de suas formulações está na concepção da virtude enquanto adaptação psicológica à realidade dos fatos. os fracos, diria esse pequeno darwinista da subjetividade, são aqueles que falsificam o real, elaboram sonhos de fuga, se entregam às fantasias desregradas, ao sexo, ao vício, aos jogos, e tudo aquilo que lhe dá prazer e que ocupa o tempo que, em sua imaginação que não ultrapassa a profundidade de um pires, o homem realista deveria deveria fazer com comedimento, com moderação , com cálculo, com economia. o pobre miserável vive em greve de fome, e quando come, é aos alimentos mais pobres. seu paladar é de gente que prefere hambúrguer de fast food a um bom jantar. para esse gênero de psicólogo, que se põe na a ponta dos pés para se passar gigante, essa é a única forma de nutrição. o pobre ignorante, que desdenha daquilo que não consegue ter. a ascese profunda é seu único cardápio. assim foi esse pobrezinho desnutrido criado. vive em greve de fome, talvez, como o personagem de kafka, por nunca ter descoberto nenhum alimento que lhe agradasse. entregue à baixeza da realidade, aprendeu a se deliciar com o gostinho de seu estômago a roncar, com a dor pela gastrite que sobe pela sua garganta. enquanto subexiste com o fruto do trabalho burguês e o sexo católico para a reprodução, olha de canto de olho esses gulosos e embriagados incompreensíveis, que vivem muito e morrem cedo, que não se contentam com a magra carne da realidade, seca a saliva que escorre da boca e diz para esposa (que detesta) que precisa ir ao banheiro realizar suas necessidades.

o banheiro

quando nos cagamos em público pela primeira vez aprendemos que o cocô é motivo para vergonha. somos reprimidos, às vezes gentilmente, outras de formas mais grosseiras, por gritos e insultos. tão logo ganhamos consciência de nosso cocô, aprendemos que ele não é coisa-pública. é o cocô que, antes do sexo, nos introduz na existência do segredo. e é o banheiro que, antes da alcova, se torna o primeiro cofre para o depósito desse segredo tão vil. não devemos nos surpreender, então, a relação profunda, sucessiva, que se cria entre o sexo e o banheiro. a criança, tão logo descubra que o sexo está proibido pelo público, irá realizá-lo consigo mesmo, às escondidas, no banheiro. o banheiro é o primeiro e mais persistente templo do amor de muitas crianças que, quando depois de casadas, redescobrem no chuveiro e no vaso esse espaço de gozo, tão sujo e secreto quanto o cocô. são duas coisas que todos sabemos que fazemos, mas que precisam ser feito às escondidas: o sexo e o cocô. e o banheiro une as duas: o único espaço inquestionável de solidão.

o utilitarista e o hedonista

do utilitarismo, pelo fato de, como toda construção ética, buscar a felicidade, facilmente se confunde com o que se chama, vagamente, de hedonismo, mas somente pela confusão que toda mente utilitária, fundada na ascese e na economia, faz entre felicidade e prazer. essa é a convergência fatal entre filosofia epicurista e utilitarista: o gesto ascético, o controle do desregramento como imperativo de felicidade. o hedonismo verdadeiro, contudo, possui sempre um quê de trágico, um quê de dionisíaco, e mesmo de sádico, em que toda economia somente pode ser justificada perante o acúmulo de um dispêndio ainda mais imperioso. é a moral de marques de sade: o gozo mais intenso somente é possível por meio do cálculo e disciplina preliminar. nisto, talvez, separa-se dois gêneros de hedonista: o vicioso, ou ainda, o viciado, preso na imediatez, na repetição frenética, que acaba por esvaziar todo o prazer lento da espera e da conquista, e aquele hedonista sádico, que faz da demora, da cerimônia e expectativa um meio não de adiar o orgasmo, mas de intensificá-lo. e se o hedonista sádico se assemelha ao utilitário pelo vício na economia, no controle sobre si, é preciso distingui-los pelos seus fins, pelas diferentes felicidades de cada um: se o sádico hedonista antevê e pratica, pela elasticidade e demora do meio, seu desejado gozo, o utilitário como que transforma o meio em fim: seu orgasmo é o acúmulo infinito, o gozo de jamais romper a economia em dispêndio: nesta retenção infinita que justifica toda sua vida. e quando seu corpo, em algum ponto, não tolera tamanha repressão, se ceder, será com dor. todo utilitarista, se vier a ser um hedonista, será para se arrepender, mesmo que para se arrepender mil vezes do prazer que nega outras mil desejar. daí a singular confusão do utilitarismo entre felicidade e prazer: sua felicidade está justamente em negar, pelo culto da utilidade, o dispêndio que tanto lhe daria prazer

um realista

a definição de inteligência, razão ou verdade a partir da adequação precisa da subjetividade às relações objetivas, que hoje organiza a prática de clínicas e psicólogos, possui sua razão no seio de uma sociedade naturalista como a capitalista. as correspondências entre a teoria de charles darwin e o liberalismo inglês foram muito rapidamente vistas por karl marx, não obstante a admiração deste pelo biólogo. uma teoria como a seleção natural, que determinava o sucesso e multiplicação estatística das formas de vida mais aptas às duras condições de vida, se por um lado é uma descrição cínica, sem desembaraço, da vida sob o imperativo do capital, por outro lado, é a lição por baixo da capa de auto-ajuda, muitas vezes açucarados, dos psicólogos e psicólogas que pretendem chamar de volta seus improdutivos pacientes à realidade das coisas (ou seja, a realidade do mercado, da produção). e quem irá dizer que estão objetivamente errados? não é, afinal, um corpo burguês que se recusa ou é incapaz de trabalho um corpo doente? vejam bem: um corpo aristocrático análogo é perfeitamente saudável, mas o burguês - e claro, mais ainda, o proletário - é definido como essa subjetividade economicamente produtiva, que deve desejar ser independente, constituir sua história de sucesso, ser self-made man, etc. que devem fazer os psicólogos e clínicos em geral não sei, mas sua reação é dada desde essa condição de enfermeiros do capital, remediadores de subjetividades darwinistas, que no entanto não se adequam às necessidades - seja necessidades econômicas, ou seja, objetiva, de conquistar dinheiro e meio de subexistir, seja as subjetivas, as demandas feitas para si próprio -. 

o castor, afinal, precisa, antes de mais nada, cortar madeira e montar seu dique para existir. deixo no ar, no entanto, o que seria o ser humano para além desse castor exemplar, completamente saciado no gozo do trabalho que aprendeu e deseja poder amar.

contra o empirismo

 estou lendo desde ontem os "primeiros princípios" de herbert spencer (para quem não sabe, o maior filósofo inglês do XIX), que para elucidar sua teoria da evolução, naturalmente, prossegue desde os primeiros conceitos - possibilidade de verdade, existência de deus, tempo e espaço, relatividade e conciliação de todo conhecimento possível, o incognoscível, a filosofia e a religião, matéria, movimento e força, etc -, em um gênero filosófico que me remete imediatamente às minhas leituras longínquas de jorge luis borges, principalmente a de francis herbert bradley (que, no entanto, pelo que me lembro, era bem mais idealista do que o empirista spencer). parece que na forma de construção da filosofia, essa ordenação da menor causa para as maiores, da menor parte como condição de conhecimento da maior, experimento um daqueles gozos mnemônicos proustianos - que, aqui e agora, no entanto, não possui cheiro, gosto, toque, som, forma, não se trata de lembranças inscritas no fenômeno sensível, ou então, é uma sensibilidade intelectual, da fruição de formas abstratas, como a ordenação de um tratado e a forma de uma ideia -.

escrevo tais coisas que para escrever contra o empirismo, no sentido da primazia da matéria como suporte para a inscrição e escritura. existe uma ordem criada por nós que abre o espaço da linguagem sem que seja necessário uma ordem de diferença pré-estabelecida, dada pela matéria. ou seja, a "coisa empírica", sua ordem de diferenças, não é dada pela natureza, mas por nossas intuições transcendentais, que de certa maneira, fundam as partes, as divisões, a forma, do objeto empírico.

CAPÍTULO 1.

- não entendo uma geração que não gosta de carros, disse o pai, ainda sentado na apertada mesa de jantar de plástico coberta por uma toalha ...